Um dos fenômenos mais importantes da atualidade é o processo de mobilidade humana (cf. DA 73), com sua dupla expressão: migrantes e itinerantes. Migrantes são os que se deslocam por motivos econômicos (internos ou internacionais), os refugiados, as pessoas objeto de tráfico de seres humanos, os apátridas e os estudantes internacionais. Itinerantes são os nômades (ciganos, circenses e parquistas), os turistas e os peregrinos, os marítimos e pescadores, os viajantes e trabalhadores de aeroportos, ferrovias e estradas (cf. Pontifício Conselho para os Migrantes e Itinerantes).
O texto a seguir segue o método dos ROSTOS, ROTAS, RAÍZES E ESPERANÇAS da mobilidade humana no país. No primeiro momento, trata-se de fotografar o rosto da mobilidade humana, identificando os principais protagonistas; no segundo, de perguntar de onde vêm e para onde vão os migrantes e itinerantes, traçando o mapa da mobilidade humana; no terceiro, de apontar alguns elementos que possam levar às causas dos deslocamentos humanos. No quarto apresentar a ação pastoral da Igreja do Brasil nesse campo, apontar lacunas e identificar os principais desafios que se apresentam à essa ação pastoral junto aos migrantes e itinerantes.
Mais do que uma visão sociológica do fenômeno da mobilidade humana, com números, estatísticas e quadros, o que se pretende é um olhar de pastor, menos interessado na precisão matemática dos dados e mais sensível, solidário e solícito às feridas e cicatrizes que marcam esse rebanho e ao remédio necessário à sua cura. Trata-se de um olhar acima de tudo, de quem reconhece migrantes e itinerantes como sujeitos de promoção humana e evangelização, e portanto, pessoas com grande potencial de contribuição à caminhada da Igreja que Peregrina no Brasil.
O ROSTO DOS MIGRANTES
Podemos começar colhendo uma fotografia da mobilidade humana no território nacional. Nela, tratemos de identificar os principais rostos dos migrantes e itinerantes: os que chegam de fora, os que saem e os que se deslocam no interior do próprio país. De início, constata-se o predomínio de jovens na população migrante, grande parte abaixo dos 30 anos. Mas há também pessoas adultas e até famílias inteiras envolvidas nesse fenômeno. Vem crescendo, por outro lado, a presença feminina entre os vários fluxos migratórios.
Apesar da população migrante ser composta ainda na sua maioria por jovens, o PNAD revela que, em relação à pesquisa anterior, os migrantes apresentaram “estrutura etária mais envelhecida em decorrência de as levas migratórias caracterizarem-se pela maior concentração de pessoas adultas que se deslocam, principalmente, em busca de melhores oportunidades de trabalho. Com o aumento da faixa de idade, verificou-se progressivo crescimento na proporção de migrantes”[1].
Ainda de acordo com esses dados, “as pessoas de 18 a 59 anos de idade correspondiam a 55,7% da população de naturais da Unidade da Federação e 71,6% de não-naturais. Em decorrência de sua mais elevada proporção de adultos jovens e de meia-idade, o nível da ocupação (percentual de pessoas ocupadas na população de 10 anos ou mais de idade) do contingente de não-naturais superava o dos naturais da Unidade da Federação de residência. O nível da ocupação situou-se em 56,4% para as pessoas naturais da Unidade da Federação de moradia e alcançou 60,5% para as não-naturais”[2].
É constante o número de hispano-americanos em território brasileiro. Do total de imigrantes no País, em 1940 representavam 5,48% e, no censo de 2000, atingiam 23,35%[3]. Concentram-se especialmente nas grandes cidades do centro-sul, como São Paulo, Rio de Janeiro, Curitiba, Florianópolis e Porto Alegre, mas também nos municípios limítrofes, como Guajará Mirim, Tabatinga, Ponta Porã, Foz do Iguaçu, Corumbá, além da grande Manaus, por exemplo.
Entre os hispano-americanos, não poucos permanecem no país em situação de indocumentados. Submetem-se não raro a condições de trabalho infra-humanas, como por exemplo, os bolivianos nas pequenas indústrias têxteis de São Paulo, ou os peruanos e paraguaios no setor de serviços. Em geral, tomam sobre os ombros os trabalhos mais sujos e pesados, mais perigosos e mal remunerados, vulneráveis que se encontram a todo tipo de exploração. Além disso, não contam com proteção trabalhista e assistência médico-hospitalar. Seus filhos enfrentam dificuldades para estudar nas escolas públicas.
A acolhida a refugiados tornou-se, nos últimos anos, um chamado nacional à solidariedade. Além dos refugiados procedentes, tradicionalmente, de países africanos – Angola, Burundi, Serra Leoa, Somália, Sudão, Costa do Marfim, Etiópia, Libéria – o Brasil recebe hoje solicitantes de asilo da Colômbia e Iraque, e refugiados reassentados Palestinos. Na totalidade, há no Brasil aproximadamente 3.500 refugiados reconhecidos, de 59 diferentes nacionalidades. Em torno de 30% são mulheres. Um dos maiores desafios que se apresenta para os países sul-americanos é questão da Colômbia que, devido à guerrilha, à ação dos militares e dos paramilitares, ocupa o segundo lugar no mundo, depois do Sudão, no número de refugiados e deslocados internos, com cerca de 3 milhões, de acordo com a ONU.
São pessoas traumatizadas pela violência que sofreram, e chegam com alto índice de sofrimento psíquico e necessidade de atendimento psicológico. Carregando o peso da impossibilidade total de regresso ao próprio país, agravam-se as consequências de sua expulsão dos países de origem e a condição de terem que reconstruir sua vida num local que não escolheram, além da migração forçada a que foram submetidos. A diversidade cultural é também um aspecto de dupla dimensão: contributo positivo e desafio para a integração.
Marcante é também o número de migrantes temporários, chamados muitas vezes sazonais por estarem vinculados às safras agrícolas. Mas há os que se deslocam temporariamente em busca de grandes obras, como barragens, ou em direção aos serviços urbanos em geral. Em numerosos casos, são cidadãos de duas pátrias, o que vale dizer de nenhuma. Deixam suas famílias por 5, 6 ,7 meses, passam esse “tempo de trabalho”em pensões ou alojamentos precários, retornando a casa com alguns trocados para garantir a sobrevivência dos seus. A saída é muitas vezes a única forma de permanecerem ligados à terra natal. Outras vezes, após alguns anos de saídas temporárias, acabam migrando definitivamente. Devido a esse tipo de migração, em muitas regiões subdesenvolvidas de Minas Gerais e dos estados nordestinos, se ouve falar de “viúvas de maridos vivos” ou de “órfãos de pais vivos”. É comum os filhos crescerem com a figura do pai como um estranho que aparece de vez em quando. Menos comum – mas também ocorre – é esse “estranho” arrumar outra família no local de trabalho. Enfim, esse trânsito mais ou menos freqüente entre os pólos de origem e destino, costuma ocasionar sérios danos aos laços familiares.
Entre os migrantes temporários destacam-se os trabalhadores do corte de cana que trabalham no tipo de colheita manual. Oriundos, na sua grande maioria, do interior dos estados nordestinos, onde as perspectivas de trabalho são menores, muitos acabam tornando-se vítimas do trabalho escravo ou degradante. De acordo com a União da Agroindústria Canavieira (UNICA), na safra de 2006, foram contratados cerca de 70 mil trabalhadores para o corte da cana em São Paulo. Com o crescimento do mercado do Biodieesel, estima-se que até 2010, serão implantadas 90 novas usinas no Brasil, “incorporando uma área plantada de cana de 2,7 milhões de hectares aos 6 milhões de hectares já ocupados pela lavoura no país. Só em São Paulo serão 39 novas usinas”. (Folha de S.Paulo, 19.2.2006) Isso sem dúvida irá demandar um número maior de mão de obra e intensificar esse tipo de fluxo migratório.
Segundo o Serviço Pastoral do Migrante de Guariba (SP), nos períodos de safra dos anos de 2004 a 2007 morreram 14 cortadores de cana na região canavieira de São Paulo em decorrência do excesso de trabalho. Esses trabalhadores tinham idade entre 24 e 50 anos, e eram migrantes, de outras regiões do país (norte de Minas, Bahia, Maranhão, Piauí).
Cada vez menos acelerado, mas ainda intenso, segue há décadas o êxodo rural. Sabemos que desde os anos 70 a população urbana se sobrepõe à população rural, mas hoje ela já passa de 80% dos brasileiros e brasileiras. Essa urbanização acelerada e muitas vezes caótica, constitui uma transição marcada por sonhos e esperanças, sem dúvida, mas não raro gera traumas e feridas incuráveis, seja nas pessoas individualmente, seja nos grupos de relacionamento primário. Acrescidas do desemprego, da falta de moradia e das condições de vida da periferia de numerosas cidades, essas feridas podem levar – e levam com freqüência – a casos de anomia, desespero e até loucura.
Nas fronteiras do Brasil com os países vizinhos, assiste-se diariamente a um intenso vaivém de pessoas, um fluxo e refluxo marcado por tensões e conflitos, mas também por novas formas de encontro e solidariedade. Cidades como Foz do Iguaçu, Corumbá, Uruguaiana, Tabatinga, etc. são cenários desse “formigueiro humano”, onde se mesclam rostos, culturas, moedas, línguas, interesses comerciais. É característica a ambigüidade desses “complexos fronteiriços” para usar uma expressão cara à sociologia. Constituem hoje um dos retratos mais vivos da economia globalizada, com a livre circulação de capital, mercadorias, serviços e pessoas, mas, ao mesmo tempo, abrem espaços para a ação do crime organizado e para o contrabando e o tráfico de drogas, armas e seres humanos.
A escandalosa organização do tráfico de pessoas para fins de exploração de trabalho ou de exploração sexual revela o rosto sofrido, especialmente, de crianças, adolescentes e mulheres. Segundo dados da Organização Internacional do Trabalho (OIT), o lucro anual produzido com o tráfico de pessoas chega a 31,6 bilhões de dólares e, somente no ano de 2005 teria feito 2,4 milhões de vítimas em todo mundo. A OIT estima que 43% dessas vítimas sejam subjugadas para exploração sexual e 32% para exploração econômica. De acordo com a UNIgift, o Brasil ocuparia o terceiro lugar no ranking dos países latino-americanos exportadores de pessoas para esse fim, precedido por República Dominicana e Colômbia.
Nas últimas décadas, o Brasil converte-se em país de emigrantes. A exemplo de outros países latino-americanos, historicamente terras de imigração, sem deixar de receber estrangeiros, o Brasil passa a provocar forte emigração e vê, quase passivamente, seus cidadãos deixarem o País para buscar trabalho no exterior. Estima-se hoje em cerca 4 milhões o número de brasileiros residindo fora do país sendo 58% na condição de indocumentados[4]. São pessoas predominantemente jovens (entre 20 e 40 anos), de ambos os sexos, mas com acento maior para os homens. Buscam nos países centrais o sonho de um futuro que a terra natal lhes nega. São os migrantes de vôos longos, se comparados aos que se deslocam do campo para a cidade ou aos que vão em direção aos países vizinhos, respectivamente migrantes de vôos curtos e médios.
Os emigrantes brasileiros são trabalhadores/as em busca de melhores oportunidades de trabalho e renda e estão no auge da sua potencialidade produtiva. Caracterizam a inserção dos brasileiros no mercado de trabalho no exterior as longas jornadas, o trabalho sem contrato formal (de modo especial os indocumentados), a participação em postos de trabalho já não ocupados pelos nacionais (muitas vezes aquém da qualificação profissional que possuem) e a provisoriedade na ocupação.
Na bagagem, além do desejo de construir uma vida um pouco melhor, carregam valores, e são reconhecidos positivamente pelas características do povo brasileiro: a alegria, a informalidade nas relações interpessoais, a disposição para o trabalho árduo e, acima de tudo, uma forte religiosidade identificada pela fé nos santos, pelo desejo de partilhar a vida de comunidade, pela solidariedade, visivelmente expressa no envio de dinheiro para ajudar os familiares que ficaram no Brasil e acolhida aos novos brasileiros que chegam em busca dos mesmos sonhos.
De modo particular, o envio de remessas para o Brasil relaciona-se às condições de vida e trabalho desses brasileiros no exterior que costumam ser traduzidas em termos de sacrifício e privação, por um lado, e de ajuda e sustento às famílias distantes, por outro. Somente no ano de 2006, de acordo com relatório Sending Money Home (Mandando Dinheiro para Casa), formulado pelo Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) e pelo Fundo Internacional da ONU para o Desenvolvimento Agrícola, os brasileiros residentes no exterior enviaram um total de US$ 7,37 bilhões[5] de dólares (o equivalente a R$ 13,5 bilhões), em remessas para o Brasil. As remessas de brasileiros e dos latino americanos de modo geral, “evidenciam sua capacidade de sacrifício e amor solidário a favor das próprias famílias e pátrias de origem. É, geralmente, ajuda dos pobres para os pobres.” (DA 416)
O ROSTO DOS ITINERANTES
A fotografia da mobilidade humana revela ainda outros rostos: os itinerantes. Os milhares de caminhoneiros, cruzando e recruzando as estradas do país; os grupos nômades, como ciganos, circenses, parquistas; os trabalhadores das águas – rios lagoas e mar – tais como marítimos e pescadores; os aeroviários, turistas e trabalhadores ligados ao mundo do turismo.
Identificados pelas vestimentas coloridas, dentes de ouro, chapéus e botas, de tradição nômade, os ciganos são portadores de língua e cultura particulares. A Pastoral dos Nômades estima em cerca de 800 mil ciganos espalhados pelo Brasil. Os primeiros ciganos chegaram ao país ainda no período colonial e se dividem em dois grupos diferentes: Rom e Calon. São constantemente vítimas do preconceito, fruto das superstições que se criaram a seu respeito. Dedicam-se ao comercio ambulante de mercadorias e animais, ao trabalho com artesanato, nos circos e parques de diversão. Possuem tradição oral, o que muitas vezes dificulta a alfabetização na língua portuguesa. Sofrem com as aceleradas mudanças sociais que cada vez mais homogeneízam costumes, bem como, tem dificuldades, pelas suas peculiaridades, de inserir-se no mercado de trabalho. A Pastoral dos Nômades estima que 80% dos ciganos seja analfabeta, o que acarreta muitos prejuízos para sua integração social e acesso aos direitos básicos".
Os caminhoneiros carregam grande parte da riqueza produzida no Brasil sobre rodas, cruzando o país de um extremo ao outro. Há no Brasil cerca 1.500.000 caminhoneiros, predominantemente homens, chefes de família que passam longos períodos entregues à solidão da estrada. Além desses, as rodovias brasileiras revelam ainda outro rosto: o povo rodoviário. São os operadores e trabalhadores (as) dos postos de combustíveis, dos restaurantes e paradouros, das lanchonetes, das borracharias, das oficinas mecânicas.
Milhões de pessoas, anualmente, deixam suas casas e saem em viagem, pelos mais diversos motivos. Muitas dessas viagens são possíveis graças a economias feitas ao longo do ano. O turista – e, mais ainda, o peregrino – é um ser inquieto e, ao mesmo tempo, aberto a novas experiências. No Brasil a indústria do turismo movimenta anualmente grandes cifras e o número de turistas cresce continuamente em proporção geométrica. Junto a esses está ainda um grande contingente de trabalhadores (as) que ocupam postos de trabalho formais ou informais nos grandes centros turísticos do país. Preocupam as constantes denúncias do turismo sexual, principalmente aquelas que envolvem crianças e adolescentes.
A ampla costa brasileira é outro espaço que demanda não apenas a atenção governamental, mas também pastoral, voltada aos milhares de trabalhadores do mar, dos cruzeiros marítimos, dos pesadores, dos estivadores. Em conseqüência da globalização e das privatizações, se observa uma diminuição do número de marinheiros e estivadores e, ao mesmo tempo, um empobrecimento das pessoas que executam esses serviços. Ao mesmo tempo os armadores de navios optam por bandeiras de conveniência, o que permite burlar a legislação e violar os direitos sociais e trabalhistas dessa população.
Os pescadores artesanais sofrem por não poderem competir com os operadores de pesca industrial. Também são prejudicados por dificuldades provenientes de fenômenos climáticos e pela deteriorização do meio ambiente: lagoas, córregos e rios poluídos.
Por trás desses rostos, existem esperanças, riquezas pessoais e culturais, força e vontade de trabalho, disposição de reconstruir a própria vida e construir com a sociedade, elementos que têm ou, no mínimo são potencialidades, de impacto positivo nas comunidades de destino. São pessoas e vidas, lutas e sonhos, existências cruzadas e entrelaçadas.
Contudo, existem também, no corpo e na alma desses migrantes e itinerantes, duros golpes e profundas cicatrizes. São rostos muitas vezes perdidos e desfigurados que interpelam a sociedade e a Igreja. Como levar-lhes “o conforto da fé e o sorriso da pátria”, como dizia Scalabrini, pai e apóstolo dos migrantes? Sabemos por uma série de pesquisas (Cfr. CERIS, entre outras) quão numerosos são os que, devido ao processo migratório, acabam desvinculando-se da tradição católica e buscando, por exemplo, os movimentos pentecostais. Outros passam a transitar livremente entre as várias “opções religiosas” ou simplesmente deixam de freqüentar qualquer religião, apesar de manterem a crença em Deus. Perderam a fé ou lutam desesperadamente para não perdê-la?
ROTAS DA MOBILIDADE HUMANA
O olhar voltado para rosto de migrantes e itinerantes convida-nos a um segundo passo: traçar um mapa da mobilidade. Ou seja, de onde vêm e para onde se dirigem migrantes e itinerantes? Quais os principais fluxos e tendências do fenômeno migratório? A fotografia do item anterior já nos apontava algumas direções. Vejamos por partes.
Os dados da última Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) revelam algumas das características gerais da migração no Brasil. Em 2006, as pessoas não-naturais do município de residência correspondiam a 40% da população do País e as não-naturais da Unidade da Federação em que moravam representavam 16%. Em termos regionais, no que se refere à naturalidade em relação ao município de residência, na Região Centro-Oeste, a população não-natural (54,2%) superou à natural. Nas demais, a Região Nordeste registrou 31,5% de não-naturais do município; a Região Sudeste, 41,3%; a Região Norte, 42,2%; e a Região Sul, 44,3%.[6]
Quanto à naturalidade em relação à Unidade da Federação em que residiam, 35,8% dos moradores da Região Centro-Oeste eram não-naturais, mais uma vez representando o comportamento de todos os Estados da região, contudo, desta vez, o destaque foi do Distrito Federal, onde 51,8% dos moradores eram não-naturais. No Brasil, destacaram-se Roraima - Unidade da Federação com o maior percentual de moradores não-naturais, 53,7% - e, ainda, o Rio Grande do Sul - estado com o menor percentual de residentes não-naturais, 3,8%[7].
As migrações temporárias e/ou sazonais, por exemplo, tem como pólos de origem as regiões subdesenvolvidas do país, com destaque para o norte-nordeste de Minas Gerais e o agreste e sertão do Maranhão, Piauí, Paraíba, Ceará, Rio Grande do Norte e Pernambuco. Mas podem originar-se também de alguns municípios do Paraná, Goiás e São Paulo, marcados pelo mono-cultivo da soja ou da cana. Quanto aos pólos de destino, estão, sobretudo, as regiões onde se desenvolve o agro-negócio e onde as safras agrícolas da cana-de-açúcar, do café, da laranja, etc. necessitam de mão-de-obra intermitente. O sul de Minas Gerais, o sudoeste da Bahia, Goiás, Mato Grosso do Sul, São Paulo e Paraná são os pontos de convergência de muitos desses trabalhadores. Mas há também os que se dirigem do campo para a cidade – muitas vezes jovens mulheres – em busca de serviços de caráter temporário, migração que, com o passar de alguns anos, pode converter-se em definitiva. O incentivo ao agro-negócio, como veremos adiante, leva por tabela ao aumento da mão-de-obra temporária.
As ondas de migrantes que em décadas passadas subiram dos estados do sul e, passando pelo Paraná, se bifurcaram, parte dirigindo-se ao Paraguai e parte ao centro-oeste e norte, hoje tende a estabelecer-se nas cidades limítrofes do Brasil com os países vizinhos, como Ponta Porã e Guajará-Mirim, ou na zona urbana da região norte, como Ji-Paraná, Porto Velho, Cuiabá, etc. Mas, cabe a ressalva de que muitos destes migrantes já se deslocaram para outras regiões ou mesmo regressaram às regiões de origem. O censo de 2000 aponta para a urbanização acelerada no norte do país. Outras regiões de intensa urbanização são, por um lado, as cidades litorâneas de todo país, onde o turismo atrai trabalhadores para uma série de serviços de infra-estrutura; e, por outro, os municípios que compõem a malha urbana da periferia das grandes metrópoles, as cidades médias de alguns estados e o entorno do Distrito Federal. O fluxo nordeste-sudeste, intenso em décadas anteriores, tem desacelerado nos últimos anos, verificando-se inclusive um movimento de retorno de nordestinos em direção aos estados de origem.
A origem dos hispano-americanos passou também por modificações recentes. Em décadas passadas, provinham, sobretudo, dos países do Cone Sul (Uruguai, Argentina, Chile, Paraguai), de onde, por razões predominantemente políticas, eram forçados a sair. Imperavam os regimes militares. Hoje os imigrantes vizinhos se originam especialmente dos países do altiplano andino (Colômbia, Peru, Bolívia, Equador, além do Paraguai), migram por motivos marcadamente sócio-econômicos, à exceção dos colombianos que partem devido à perseguição. Por outro lado, nos chamados “complexos fronteiriços” ou zonas limítrofes, como vimos acima, o vaivém entre as fronteiras se intensifica em todas as direções.
No caso da emigração de brasileiros, como de resto dos emigrantes de todo o hemisfério sul do planeta (Ásia, África e América Latina), o destino preferido são os países centrais, de economia desenvolvida, com predominância para os Estados Unidos (cerca de 1.140.850)[8], e a Europa (1.148.546)[9].
Após os atentados de 11 de Setembro houve um grande recrudescimento na política imigratória nos USA. Isso contribuiu para um aumento do número de imigrantes indocumentados. Segundo dados levantados junto ao governo americano pela da CPMI da Emigração Ilegal, no ano de 2005 foram apreendidos pela Patrulha de Fronteira 30.843 brasileiros.
De acordo com a organização Mensageiros do Amor que atua em prol dos migrantes na fronteira dos USA com o México, dos aproximadamente 500 migrantes que, em 2006, morreram durante a travessia da fronteira entre o México e Estados Unidos, sepultados como indigentes no cemitério da cidade de El Centro, 183 eram brasileiros. Esses são os que não lograram fazer a travessia pela inóspita fronteira, seja pelas condições climáticas, do terreno, ou vítimas dos próprios coiotes.
A Europa tornou-se um pólo atrativo de migrantes em função de alguns fatores: o recrudescimento da política imigratória dos USA ; a valorização da moeda (euro) em relação ao dólar americano; a possibilidade de ingresso sem visto em alguns países e o crescimento de postos de trabalho já não ocupados pelos nacionais.
O fluxo emigratório para o Japão possui características singulares. A comunidade nikkey (coletividade de imigrantes japoneses e seus descendentes, independentemente da geração) no Brasil gira em torno de um milhão e quatrocentas mil pessoas. O movimento emigratório de brasileiros/nikkey para o Japão cresceu significativamente a partir da década de noventa, coincidindo com o período em que o governo japonês flexibilizou suas regras migratórias de modo a facilitar a entrada de mão de obra para as grandes empresas. Desde então, nisseis e sanseis[10] passaram a ter assegurado o visto de entrada para trabalho através do critério de consangüinidade. Tal política de imigração facilitada aos nikkeis relaciona-se com o déficit de mão-de-obra, com o baixo custo desse tipo de mão-de-obra quando comparado ao custo da nacional, e com a manutenção da homogeneidade cultural e racial japonesa.
Atualmente existem pouco mais de 300 mil brasileiros no Japão, o que corresponde ao terceiro maior contingente de imigrantes naquele país (atrás somente dos chineses e coreanos). Contudo, esse número pode ser ainda maior quando se considera o fluxo total de brasileiros que entram e saem do Japão por ano. De acordo com o governo brasileiro, se levarmos em conta o número de retornos poderíamos afirmar que “o total de brasileiros que passaram (e estão passando) pela experiência de viver/trabalhar no Japão, certamente, ultrapassaria os 500.000, isso numa estimativa conservadora”. (BRASIL, 2006, pg 231)
Alguns pólos de saída têm sido bem notórios: interior do estado de Minas Gerais (especialmente Governador Valadares, sul do estado e vale do Jequitinhonha); Criciúma, estado de Santa Catarina; Londrina e seus arredores, estado do Paraná. Goiânia e outras regiões de Goiás, e o Estado de Rondônia. Ultimamente, devido à recente crise dos Estados Unidos, o retorno de brasileiros tem tomado espaço nos telejornais. Não podemos esquecer, por fim, que o segundo país em número de residentes brasileiros continua sendo o Paraguai, embora parte considerável dos chamados “brasiguaios” esteja também retornando ao país e se fixando nas cidades limítrofes, como Foz do Iguaçu, Mundo Novo, entre outras.
O tráfico de pessoas desenha uma rota onde se percebe a relação entre a falta de oportunidade de emprego e esse tipo de prática. As mulheres e adolescentes aliciadas por quadrilhas internacionais saem principalmente das cidades litorâneas (Rio de Janeiro, Vitória, Salvador, Recife e Fortaleza), mas há também registros consideráveis de casos nos estados de Goiás, São Paulo, Minas Gerais e Pará com rota para o Amapá e Suriname. Os destinos principais são a Europa (com destaque para a Itália, Espanha e, mais recentemente, Portugal) e países da América Latina (como Paraguai, Suriname, Venezuela e República Dominicana).
As rotas dos refugiados são diversificadas. Procedentes, em sua maioria, de países africanos, do Iraque, da Colômbia, e do campo de Refugiados de Ruscheid (Jordânia), os refugiados em geral chegam ao Brasil por diferentes fronteiras e meios. O aeroporto de Guarulhos é o mais freqüente, mas os que ali chegam se distribuem pelo País. Outro caminho de entrada é a região norte, especificamente o Estado de Roraima e as cidades de Tabatinga e Manaus (AM); no Mato Grosso do Sul, a cidade de Corumbá, corredor de passagem para Campo Grande; vários portos (Rio Grande, Recife, Santos, Itajaí, Paranaguá, Ilhéus e outros), onde chegam em baixo número, mas em circunstâncias extremamente vulneráveis (vêm em porões de navios, sem documentos, às vezes jogados ao mar antes do navio ancorar). Cabe, aqui, uma observação no sentido de que freqüentemente as pessoas que chegam nos portos, nestas precárias condições, acabam não sendo reconhecidas pelo Governo brasileiro como refugiadas, por não se configurar o elemento “perseguição” no país de origem. São, sim, “perseguidos” pela fome, miséria e outras violações de direitos, mas, não sendo perseguição por motivos de raça, religião, nacionalidade, opinião política ou grupo social, estão fora do amparo da legislação internacional pertinente. Acabam engrossando o grupo dos migrantes indocumentados ou são deportados aos países de origem.
Atualmente, a maioria dos refugiados está no Rio de Janeiro e em S. Paulo. Mas, há expressivos grupos, particularmente em relação aos refugiados que entraram no país nos últimos 5 anos, localizados em: Porto Alegre, Caxias do Sul e outras cidades do RS; Natal (RN); Manaus (AM); Brasília (DF); Belo Horizonte (MG); Fortaleza (CE); e, embora em número menos expressivo são encontrados em muitas outras localidades onde há entidades que integram a Rede Solidária para Migrantes e Refugiados, composta 85% por entidades da Igreja Católica.
Em relação aos itinerantes, as rotas são bem diversificadas. Os ciganos, nômades por tradição, deslocam-se regionalmente. Contudo, muitos por força da subsistência, estão sendo obrigados a se fixar. Os do Nordeste do Brasil, estão em grande número nos estados da Bahia, Sergipe, Rio Grande norte, Alagoas, Paraíba e, em sua grande maioria são calon. No sudeste e no sul do país, existe a presença Rom e Calon Já centro-oeste, existem grupos ciganos no estado de Goiás e Distrito Federal (Brasília). Nas demais regiões pouco se fala da presença de ciganos.
Não há limites para o turista: começa querendo conhecer as cidades o rodeiam; depois, deseja conhecer seu país; em seguida, sonha com viagens internacionais. O peregrino, mais do que ir a um lugar determinado, procura, mesmo que sem saber, ir ao mais profundo do próprio coração. Por isso, não se cansa de voltar a lugares que lhe permitiram fortes experiências religiosas. As rotas turísticas seguem o caminho dos grandes pólos já constituídos, principalmente no nordeste brasileiro, enquanto os peregrinos deslocam-se em direção aos grandes santuários.
Grande parte do comércio internacional é viabilizado por navios de transporte que carregam mercadorias, cruzando mares de norte a sul, de leste a oeste. Via de regra, essas viagens podem durar meses. A tripulação desses navios, os marítimos, é freqüentemente composta por pessoas de nacionalidades, culturas e religiões diferentes que devem conviver por muito tempo, num espaço físico limitado e sem possibilidade de entrar em contato com familiares e amigos. Chegar a um porto é sempre motivo de expectativas, de ansiedade e de temores. Esses trabalhadores do alto mar acompanham as rotas do mercado internacional, de comércio, a rota da circulação do capital.
Já os pescadores artesanais, presentes em praticamente toda extensão litorânea do Brasil, são condicionados a procurar lugares cada vez mais distantes e perigosos para exercer seu ofício, com conseqüências adversas no âmbito humano, familiar e comercial.
Enfim, pode-se afirmar que o mapa da mobilidade humana tem sofrido grandes mudanças. Se, em tempos passados, era possível identificar com certa regularidade os pólos de origem e destino, hoje os fluxos e tendências se deslocam em todas as direções. É raro o estado, como também é raro o país, que hoje não esteja afetado pelo fenômeno da mobilidade humana, seja como país de saída, seja como país de trânsito ou destino, ou ambos ao mesmo tempo. Três adjetivos podem nos dar uma idéia desse emaranhado de linhas que constitui hoje o mapa migratório: os movimentos humanos tornam-se cada vez mais intensos, diversificados e complexos.
Se os rostos dos migrantes e itinerantes interpelam a sociedade e a Igreja, o mapa de suas rotas também levanta desafios crescentes. Entre eles, como superar estruturas eclesiais às vezes demasiado pesadas, geograficamente circunscritas a territórios limitados, criadas para um mundo estável? De outro lado, como criar instrumentos e mecanismos de evangelização mais leves e flexíveis, que possam mover-se com os migrantes e itinerantes, independentemente dos limites geográficos? Em uma palavra, como a Igreja pode ser “peregrina com os peregrinos”? Citando mais uma vez Scalabrini, “onde está o povo que trabalha e sofre, aí está a Igreja!”.
RAÍZES DA MOBILIDADE HUMANA
Quais os motivos que se ocultam por trás dos rostos, dos números e do mapa da mobilidade humana? O que leva as pessoas a deixarem sua terra natal e aventurar-se por “mares nunca navegados”? Uma rápida retrospectiva à trajetória histórica da humanidade e de cada país bastaria para dar-se conta de que a mobilidade humana costuma figurar como uma espécie de termômetro de mudanças mais profundas. Os grandes deslocamentos migratórios em sentido amplo são como que as ondas superficiais de correntes subterrâneas, parte visível de fenômenos invisíveis. Numa palavra, as migrações (migrantes, refugiados, apátridas) e os itinerantes, em geral, precedem, sucedem, apontam ou dão expressão as transformações de ordem econômica, política, social ou cultural dos povos.
As guerras, a indústrias das armas, a instabilidade política, os conflitos étnicos, sociais, políticos e religiosos, as perseguições estão à raiz do contingente de 32 milhões
[11] de refugiados, deslocados internos, apátridas, retornados, que hoje se encontram sob a proteção e mandato do Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (ACNUR). Deste contingente, um pequeno número (3.500 refugiados) se encontra em nosso País. Em sua maioria são vítimas de conflitos bélicos (iraquianos, afegãos), guerra civil, conflitos internos, perseguições religiosas (angolanos, liberianos, somalis, sudaneses, iranianos (Bahai’s), colombianos, cubanos e outros).O fenômeno da globalização afetou igualmente a outros grupos de mobilidade humana. Os ciganos se viram obrigados a modificar o perfil de sua forma de subsistência; os marítimos, devido às novas tecnologias utilizadas nos portos, viram diminuir sensivelmente o tempo de permanência em terra. Caminhoneiros, para acompanhar a rapidez com que o mundo globalizado exporta, importa e distribui mercadorias cumprem longas jornadas de trabalho, sob pressão e ainda vendo reduzido seu tempo de estada com a família. Ainda no âmbito dos efeitos da globalização, a redução de tempo para percorrer longas distâncias impulsiona o turismo, de modo especial a abertura dos portos comerciais para atividades turísticas, incrementa os grandes cruzeiros marinhos.
Abertura de novos mercados para o comércio exterior, também cria um contingente de empresários e funcionários de grandes empresas que, com regularidade, saem e retornam ao país, buscando no exterior ampliar suas perspectivas de negócio.
O desenvolvimento da economia em termos globais, nas últimas décadas, está na raiz de inúmeros movimentos de massa, especialmente do hemisfério sul para o hemisfério norte do planeta. O corte neoliberal de tal desenvolvimento tende a aprofundar a assimetria entre países/regiões centrais e países/regiões periféricos, agravando ainda mais as desigualdades sócio-econômicas. Evidente que as contradições e conseqüências nocivas desse processo de globalização recaem com maior intensidade sobre as economias subdesenvolvidas ou “emergentes”, como o Brasil. O resultado é a fuga de trabalhadores e de cérebros do sul para o norte, do leste para o oeste e em mil outras direções. Apesar de leis migratórias cada vez mais restritivas, de crescentes grupos de xenofobia e da criminalização de muitos imigrantes, particularmente a partir dos atentados ao World Trade Center, em 11 de setembro de 2001, os migrantes seguem o movimento do capital, das mercadorias, da tecnologia e dos serviços.
Isso nos leva à constatação do caráter estrutural do fenômeno migratório nos dias atuais, como enfatiza a Instrução Erga Migrantes Caritas Christi, do Pontifício Conselho para a Pastoral dos Migrantes e Itinerantes, insistindo que as migrações hodiernas envolvem mais de 200 milhões de seres humanos em todo planeta e acarretam desafios de ordem econômica, política, cultural, social, religiosa e pastoral.
Fatores desse gênero, ligados à nova organização da economia mundial, fazem muitos hispano-americanos cruzarem as fronteiras de seus países. Temporária ou definitivamente, buscam os países vizinhos e alguns países do norte. Como vimos anteriormente, se excetuarmos o caso típico da Colômbia, onde a guerrilha continua produzindo “desplazados” aos milhares, a maioria dos latino-americanos migrantes o são por causas sócio-econômicas. Buscam fora de seus países oportunidades de vida e trabalho que a pátria não tem condições de dar-lhes.
No caso do Brasil, além da saída de jovens, a crise ou abandono da agricultura familiar e do pluri-cultivo, por um lado, e o incentivo ao agro-negócio, às empresas agro-industriais e ao mono-cultivo, por outro, estão na origem de grande parte das migrações temporárias e urbanas. Enquanto muitos agricultores são forçados a deixar a terra, outros, já sem terra e sem rumo, são levados de um lado para outro, adequando-se perfeitamente à necessidade temporária da mão-de-obra agrícola, e outros acabam caindo na periferia da cidade. Convém não esquecer, por outro lado, a lentidão dos últimos governos quanto à realização de uma reforma agrária e agrícola com a necessária profundidade.
As grandes extensões de soja, cana-de-açúcar e pasto, no campo, e as novas tecnologias, na cidade, com a conseqüente concentração da terra e da renda, fazem aumentar a grande multidão dos “sem”: sem raiz, sem terra e sem rumo! Multidão que, sem emprego estável e sem perspectivas de futuro, passa a deslocar-se conforme os ventos da atividade econômica. Essa migração circular ou pendular atinge hoje fatias expressivas da mão-de-obra brasileira e mundial. Parte dessa mão-de-obra, como vimos, desloca-se para o litoral brasileiro, entre outras regiões, em função do turismo. Nos bastidores dos cenários turísticos, um imenso “formigueiro humano” disputa trabalho estável e instável em bares e restaurantes, hotéis, táxis, comércio informal, etc.
Um elemento novo, no que se refere às migrações internas, está relacionado ao projeto de desenvolvimento que vem sendo incrementado pelo governo federal. A título de exemplo, podemos citar a construção da ferrovia Transnordestina (1.800 km), que nos próximos dois anos deverá gerar um espantoso deslocamento de pessoas, seja por que contratadas por empreiteiras, seja atraídas pela possibilidade de conseguir um emprego, seja atraídas pela oportunidade de exercer atividades informais (nem sempre lícitas) de acordo com as necessidades que se geram nesses casos.
De modo geral, podemos dizer que essa multidão é sem dúvida um novo sinal dos tempos, como lembra o Papa Bento XIV em sua mensagem para o Dia do Migrante de 2007. De fato, os migrantes e itinerantes são, ao mesmo tempo, símbolo profético de denúncia e anúncio. Denúncia de estruturas nacionais e internacionais excludentes, que condenam milhões de pessoas a uma cidadania de segunda ou terceira classe; anúncio da necessidade de mudanças necessárias e urgentes nas relações entre países, regiões e pessoas, para que o mundo seja a pátria de todos. Se é verdade que no coração de cada ser humano e no coração de cada cultura há sementes do Verbo, os as pessoas em mobilidade podem ser mensageiras e protagonistas de novos espaços de evangelização. Rompendo fronteiras, geográficas ou culturais, elas apontam o horizonte para uma nova cultura da solidariedade. É o que levou Scalabrini a afirmar que “a migração alarga o conceito de pátria”.
A AÇÃO DA IGREJA
Cabe-nos agora indagar, que rosto de Igreja se apresenta diante desse desafio? Quais os caminhos feitos até o presente no sentido de vivenciar o ser Igreja Peregrina com os Peregrinos? Quais lacunas se apresentam como desafios?
A atenção à mobilidade humana como uma área pastoral surge no contexto das grandes transformações sociais e culturais da modernidade. Pio X, em 1912, instituiu o “Ofício para o cuidado Espiritual dos Imigrantes”, junto à Congregação Consistorial. Em 1914, Bento XV instituiu o Dia do Migrante, no intuito de organizar a assistência pastoral para os prisioneiros de guerra.
Depois da Segunda Guerra Mundial, em 1952, foi instituído por Pio XII o “Conselho Superior para as migrações” junto à mesma Congregação, agora denominada Congregação para os Bispos. No mesmo ano, e sempre junto ao mesmo Dicastério foi instituída a “Obra do Apostolatus Maris” para o atendimento aos marítimos. Em 1958, Pio XII confiou à Congregação para os Bispos a incumbência de providenciar a assistência espiritual dos fiéis com específicos encargos ou atividades a bordo dos aviões, como também dos passageiros que viajavam com tais meios de transporte; a estas instituições deu-se o nome de “Obra do Apostolatus Coeli ou Aëris”.
Já em 1965 foi Paulo VI que fundou, sempre junto à Congregação Consistorial, o “Secretariado Internacional para a direção da Obra do Apostolatus Nomadum”, no intento de “levar conforto espiritual a uma população sem morada fixa e também para aqueles homens que vivem em condições semelhantes”. Em 1967 a Congregação para o Clero foi dotada de um Ofício que devia garantir a assistência religiosa para todas aquelas pessoas que se encontrassem no âmbito do fenômeno do turismo.
É de Paulo VI, com o documento Apostolicae Caritatis, de 19 de março de 1970, a instituição da “Pontifícia Comissão para a Pastoral dos Migrantes e Itinerantes”, a quem foi atribuída a incumbência do estudo e a dinamização da pastoral para “as pessoas em movimento”: migrantes, exilados, refugiados, deslocados, pescadores e marítimos aeronavegantes, os que trabalham com os transportes terrestres e nos parques de diversões, nômades, circenses, peregrinos e turistas. Enfim, para todos aqueles grupos de pessoas que, por diferentes formas, estão envolvidas no fenômeno da mobilidade humana, como os estudantes estrangeiros, os trabalhadores e os técnicos, que, em função do tipo de trabalho ou para pesquisas científicas a nível internacional, devem transferir-se de um País para outro. Antes de 1970, a competência para os vários setores da mobilidade humana era atribuída a diferentes Ofícios atuantes junto às Congregações Romanas.
Com o Motu Próprio Apostolicae Caritatis, as competências para os vários setores da mobilidade humana confluíram na “Pontifícia Comissão para a Pastoral dos Migrantes e Itinerantes”, que foi colocada à subordinação da Congregação para os Bispos. O texto da AC ressalta que “Tendo-se multiplicado as relações entre os diversos países e os encontros entre os homens” a Igreja se vê “obrigada a orientar o zelo pastoral não só para os que vivem dentro dos limites circunscritos das paróquias, das associações ou instituições similares, mas também para todos aqueles que, espontaneamente ou impelidos por alguma necessidade, se afastam das suas residências habituais”. Posteriormente, com a Constituição Apostólica Pastor Bonus, de 28 de junho de 1988, esta área se constituiu no Conselho Pontifício para a Pastoral dos Migrantes e Itinerantes, que atualmente está sob a presidência do Cardeal presidente do Pontifício Conselho para a Justiça e a Paz.
No Brasil, a atenção a vários segmentos da área da mobilidade humana possui uma caminhada, a iniciar pelas Congregações scalabrinianas, atuando junto aos migrantes europeus desde o final do século XIX, e a Congregação dos Marianistas, na atenção aos migrantes japoneses. Em termos de organização específica para diferentes grupos sociais, várias pastorais surgiram há mais de 20 anos: pastoral nipo-brasileira (1967), pastoral dos pescadores (1968), pastoral da estrada/caminhoneiros (1976), ação junto aos refugiados (1976), pastoral dos migrantes (CF/1980), pastoral dos nômades (1985), apostolado do mar -, outras são de início mais recente, como é a pastoral do turismo (2004). Na CNBB, o Setor Mobilidade Humana surge em 2003, como articulação dessas Pastorais e estímulo a promover a atenção a outros grupos ainda não atendidos.
Findas as correntes migratórias históricas do século XIX e as decorrentes das guerras mundiais, agora então a partir dos anos 60, foram surgindo outras necessidades no âmbito das migrações. De modo particular a acelerada implementação da indústria de base intensificou o processo de urbanização do país criando correntes migratórias que deixavam o interior do Brasil em direção aos núcleos urbanos mais desenvolvidos. Esse inchaço dos centros urbanos, com grande concentração de migrantes nas periferias desafiou a Igreja a deslocar-se dos centros mais tradicionais e ir ao encontro dos migrantes nos limites das cidades. A pastoral do Migrante vai se consolidando em meio a essas mudanças e, em 1985 é criado o Serviço Pastoral dos Migrantes, que desde então tem se organizado por regionais, reunindo agentes para formação e promoção de ações em prol dos migrantes. Nesse contexto também, é instituída a Semana Nacional do Migrante (18-25junho).
Para atender aos numerosos brasileiros e brasileiras que deixam o País, a CNBB cria, em 1996, a Pastoral para os Brasileiros no Exterior (PBE), ligada à Comissão Episcopal Pastoral para a Ação Missionária e Cooperação Intereclesial. Nesse período a PBE buscou abrir o diálogo com outras conferências no sentido de facilitar a assistência aos emigrantes nos países de destino e enviar missionários brasileiros para atender as comunidades nos lugares de maior concentração de brasileiros emigrados. Nesta perspectiva, a PBE já enviou missionários nos Estados Unidos, Japão, Inglaterra, Canadá, Itália, e acompanhou ou acompanha comunidades em Portugal, Bélgica, Paraguai.
Em 2002, em parceria com outras entidades, realizou-se em Portugal o I Encontro de Brasileiros no Exterior, com particular atenção aos problemas enfrentados pelos emigrados residentes na Península Ibérica. E agora, em 2007, foi realizado o II Encontro, em Bruxelas, do qual participaram brasileiros residentes em 11 países europeus. Foi o passo fundamental para a criação de uma rede que já atua na defesa dos direitos dos milhares de emigrados, bastante esquecidos pelos governantes e também pela Igreja.
A atenção aos refugiados e refugiadas é realizada por várias organizações da Igreja, especificamente as protagonistas de ação: Caritas Rio de Janeiro e Caritas Arq. De S.Paulo. A partir da década de ’90, a ação das Irmãs Scalabrinianas também se volta aos refugiados e a partir do 2001, inicia-se um processo de articulação de outras instituições da Igreja. A iniciativa avança, sob a coordenação do Instituto Migrações e Direitos Humanos, até formar-se a Rede Solidária para Migrantes e Refugiados, composta, hoje, por mais de 40 instituições, presentes em 19 Estados, das quais 85% são entidades da Igreja católica.
Estas instituições estão voltadas e seus agentes capacitados para a acolhida e a solidariedade que são, fundamentalmente, a expressão primeira a que somos chamados na atenção sócio-assistencial e religiosa aos refugiados, inclusive favorecendo o acesso às próprias confissões religiosas. O Documento “Os Refugiados, um Desafio à Solidariedade”, do Pont. Cons. para a Pastoral dos Migrantes e Itinerantes e Pont. Conselho Cor Unum, assinala: “A Igreja oferece o seu amor e a sua assistência a todos os refugiados sem distinção de religião ou de raça: respeita em cada um deles a dignidade inalienável da pessoa humana, criada à imagem de Deus” (cf. Gn 1,27).
Um espaço de forte atuação é, igualmente, o da documentação e das políticas públicas, recomendado, aliás, pela Instrução EMCC: a “Igreja encoraja a ratificação dos instrumentos internacionais (...) e a assistência cada vez mais necessária, por ex. os Centros de atendimento, as Casas de acolhida, os Escritórios para a atenção humana, documentação, ‘assessoramento’ jurídico, etc.)” (n.6). O mesmo documento recomenda “considerar a possibilidade de instituir um adequado ministério de acolhida”.
Nos portos, os Centros do Apostolado do Mar atendem e auxiliam marítimos nas suas necessidades, oferecendo acolhida a todos e, de modo especial, os sacramentos e celebrações eucarísticas aos que são católicos. O trabalho também compreende o acompanhamento social, bem como o acesso a elementos básicos: jornais, revistas, boletins informativos, folhetos educativos, livros, vídeos, materiais úteis para lazer e entretenimento e possibilidade de comunicação com a família distante.
No Brasil existem três núcleos Stella Maris em atividade (Portos do Rio, Guarujá e Sepetiba), entretanto a demanda é bem maior (Portos de Macaé, Rio Grande, Recife, Paranaguá e Vitória). O acompanhamento pastoral a essa realidade desafia a Igreja no campo da ação ecumênica, visto que uma grande parte dos marítimos não são católicos, desafia a uma maior sensibilidade pastoral aos espaços que ultrapassam aqueles circunscritos pela estrutura paroquial, desfiam a formação de agentes para atuar nessa área.
A Pastoral Rodoviária no Brasil está voltada a oferecer serviço religioso aos profissionais do transporte, principalmente os caminhoneiros. Surgiu do encontro de duas sensibilidades: de D.Geraldo Micheletto Pellanda, DD, então Bispo de Ponta Grossa-PR, diante do volume de tráfego rodoviário nas estradas que cortavam a Diocese e do Pe. Márian Litewka, MS, que diante dessa realidade se dispôs a dar início ao trabalho.
Atualmente, a Pastoral Rodoviária possui três equipes volantes que percorrem as estradas brasileiras com um caminhão capela, realizando cerca de 260 missas anuais (são 50 mil Km rodados!). Visitam postos, restaurantes e paradouros prestando atendimento pastoral aos caminhoneiros e povo rodoviário. Um dos desafios é fazer frente a algumas realidades testemunhadas pelas equipes, presentes na estrada: prostituição (inclusa a infantil) e meios adequados e eficazes de denúncia; acompanhamento aos “chapas” (trabalhadores que ficam à beira das estradas vendendo sua força de trabalho como meio de sustento).
Apesar de algumas dioceses e paróquias possuírem ação pastoral junto aos usuários e trabalhadores da estrada, essa ainda permanece um grande desafio. A caminhada dessa pastoral desafia a Igreja a estender às dioceses e paróquias a acolhida e acompanhamento pastoral dessas realidades, ou no dizer do coordenador dessa pastoral, “sería sumamente necessário "encarnar" a pastoral rodoviária nas estruturas pastorais não-específicas”.
Em 2007, numa parceria da CNBB com o governo, foi lançada a cartilha dos “Dez Mandamentos do Trânsito” incluso no Documento “Orientações para Pastoral da Estrada” do Pontifício Conselho Pastoral para os Migrantes e Itinerantes.
A Pastoral dos Nômades no Brasil possui uma caminhada de 20 anos junto ao povo nômade. Sua missão é ser presença junto aos ciganos, parquistas e circenses. Conta com um grupo de agentes que atuam em meio a sacrifícios, mas com muita disposição. Apesar das limitações, a Pastoral dos Nômades no Brasil é uma das mais organizadas da América Latina. Recentemente ganhou maior visibilidade, organização e estruturação e tem levado sua experiência para outros países através da participação de encontros no CELAM.
A atuação dos agentes se dá em terreno por vezes espinhoso devido ao preconceito em torno dos ciganos. Pelas suas peculiaridades, (nomadismo, cultura, língua) ciganos, circenses e parquistas, muitas vezes são relegados à uma invisibilidade, não só social, mas também eclesial. Recentemente, uma parceria da Pastoral dos Nômades e Pastoral da Criança, fez um levantamento das comunidades ciganas no país. Do resultado desse trabalho, espera-se uma maior visibilidade da necessidade de acolhida e acompanhamento pastoral aos nômades. Devido às limitações citadas, outras igrejas vem ganhando espaço, inclusive liberando agentes para o trabalho exclusivo com os ciganos.
A experiência da pastoral dos nômades no acompanhamento aos ciganos tem colaborado para que essa pastoral possa incida e contribua com outras entidades e com o governo, na proposição de políticas públicas para o povo nômade. Uma das conquistas partilhadas com os Ciganos foi o reconhecimento dos Ciganos como etnia e a instituição do dia 24 de maio como o Dia Nacional do Cigano.
A Pastoral do Turismo, no Brasil, dá os primeiros passos. Sabe-se que há muitas iniciativas feitas em locais turísticos e, particularmente, em santuários. Está sendo realizado um levantamento dessas iniciativas e dos nomes dos que estão à sua frente, para organizar a articulação dessas iniciativas. Entre os desafios estão a realização um primeiro encontro nacional dos agentes diocesanos da Pastoral do Turismo, bem como o enfrentamento à prática do turismo sexual.
Desde 2003, quando da criação do Setor Pastorais da Mobilidade Humana, ligado à Comissão Episcopal para o Serviço da Caridade, da Justiça e da Paz, há um bispo responsável, assessores, uma equipe de apoio e, a partir de 2005, a secretaria executiva, situada nas dependências do Centro Cultural Missionário, conjugada à secretaria da PBE.
Foram realizados dois encontros nacionais (2005 e 2007) e uma reunião da equipe ampliada nacional (2006). Da partilha da caminhada emergiram inquietações, esperanças que traduzem desafios, não só para as pastorais isoladamente ou para o setor, mas para a ação evangelizadora da Igreja no seu conjunto.
Para além dos esforços das pastorais, percebe-se que existem vazios, lacunas na atuação pastoral da igreja na área da Mobilidade Humana, decorrentes principalmente da limitação às estruturas tradicionais (paróquias, com vinculação à área geográfica) que não alcançam as pessoas em mobilidade. Os documentos da Igreja alertam neste sentido. Assim, toda a Igreja e todas as igrejas particulares deveriam ser as primeiras responsáveis pelo campo da mobilidade humana e pela acolhida aos migrantes e itinerantes.
As poucas e limitadas iniciativas e diálogo entre as igrejas de origem e de chegada dos migrantes também indicam um vazio. Muitas vezes os fluxos migratórios (de saída, de trânsito, ou chegada) passam desapercebidos aos olhos de lideranças pastorais, presbíteros e pastores. A realidade migratória impacta sem dúvida a vida de uma comunidade ou paróquia (participação nas celebrações, catequese), contudo raramente figura nos planos de ação pastoral dessas.
Quando voltamos os olhos para o exterior, então, constatamos por um lado que existe um grande número de brasileiros e brasileiras que, por não encontrarem acolhida e espaço na própria igreja, passam a freqüentar outros grupos religiosos e, por outro lado, testemunhamos o crescimento de comunidades que se organizam e caminham sem poder contar com a figura do presbítero ou de lideranças, seja da igreja de origem, seja da de chegada.
Observa-se ainda um constante crescer da organização de associações e instituições de migrantes brasileiros no exterior, bem como a mobilização política desses. Recentemente o II Encontro, realizado em Bruxelas (Bélgica), reuniu cerca de 70 brasileiros emigrados, representando instituições de 11 países, que atuam com emigrados brasileiros ou são foram por eles fundadas. Desse encontro nasceu uma REDE de articulação que tende a crescer e ligar-se a outras redes de brasileiros presentes em outras regiões do mundo. Isso atesta o potencial de integração e transformação dos migrantes, nas realidades locais, em prol de vida e vida com dignidade. A Igreja precisa estar com eles.
O caminho criativo percorrido por migrantes e itinerantes, rompendo fronteiras estabelecendo novos laços culturais, obrigando governos a formular ou reformular políticas que atendam as demandas e necessidades, desafiando uma ordem global pautada pela supremacia dos valores econômico-financeiros, apenas com a força da solidariedade, resistindo à cultura de massa através da preservação de formas peculiares de vida social, são sinais de uma profunda e acelerada mudança dos tempos e de uma força criativa inovadora de que são portadores estes que precisam ser sujeitos de sua história.
Ao mesmo tempo os rostos do padre caminhoneiro, do padre embarcado, do padre cigano, da liderança migrante, da refugiada e refugiado movido pela esperança e coragem, da catequista do interior de Minas que vive de bico em Bruxelas e nos finais de semana ajuda na comunidade, do estudante asiático que vai ao nordeste fazer trabalho voluntário, da multidão dos peregrinos dos santuários, representam e são um ainda pequeno traço do rosto de uma igreja que busca ser de acolhida, samaritana, Peregrina.
Diante do que ouvimos, percebem-se os desafios e oportunidades que a mobilidade humana traz para a caminhada eclesial. Não podemos deixar de ressaltar que migrantes e itinerantes são para a Igreja a oportunidade de viver concretamente sua vocação à universalidade, ou como refere a V Conferência de Aparecida, de ser uma Igreja sem fronteiras: “A Igreja, como Mãe, deve sentir-se como Igreja sem fronteiras, Igreja familiar, atenta ao fenômeno crescente da mobilidade humana...” (DA 412).
A ESPERANÇA CRISTÃ, ALENTO DIANTE DA “CANSEIRA DO CAMINHO”
A exemplo de Jesus que se põe a caminho com os peregrinos de Emaús e com eles partilha suas dores e esperanças, que presença somos chamados a ser, como Igreja Peregrina, junto ao povo em mobilidade, muitas vezes cansado do caminho, e ao mesmo tempo percorrendo um caminho de busca e realização? Logo no início da Carta Encíclica SPES SALVI encontramos uma indicação muito precisa: “O presente, ainda que custoso, pode ser vivido e aceito, se levar a uma meta e se pudermos estar seguros desta meta, se esta meta for tão grande que justifique a canseira do caminho.” (nº 1)
A dimensão de fé e esperança e a ligação estreita entre a plenitude da fé e a imutável profissão de esperança que o Papa Bento XVI confirma a partir da Carta aos Hebreus são o fundamento e o chamado a trabalharmos tal plenitude e fundamento da fé na atenção aos refugiados, aos migrantes,aos itinerantes (cfr. n.2).
Um refugiado, particularmente, só sobrevive porque uma esperança profunda o move, o impulsiona. Ele se entrega, se submete a uma verdadeira e radical prova, para salvar a vida. Os migrantes, os itinerantes, ainda que em circunstâncias menos dramáticas do que os refugiados, são, igualmente, a esperança a caminho. E nesta jornada está o espaço para a fé que nossas instituições são chamadas a semear... De outro modo, eles seguirão, até mesmo por necessidade, deuses discutíveis, como diz a Spes Salvi, e dos seus mitos não emanará qualquer esperança. Terão deuses, mas estarão sem Deus. (n.2)
Se é de esperança que se movem migrantes e itinerantes, a fé cultivada e alimentada no caminho faz brotar nos peregrinos “a convicção de que a vida não acaba no vazio”. Seu peregrinar não é vão. “Essa certeza do futuro modifica e orienta o presente. Assim, o evangelho não é apenas mera comunicação de uma verdade (informático), mas uma comunicação que muda a vida e lhe confere novo sentido (performático). Pela esperança de segura redenção nós podemos enfrentar as dificuldades que surgem durante nossa vida. Deus é a razão de nossa esperança”.
A Encíclica faz, ainda, um alerta: “Se a Carta aos Hebreus diz que os cristãos não têm aqui neste mundo uma morada permanente, mas procuram a futura (cf. Heb 11, 13-14; Fil 3,20), isto não significa de modo algum adiar para uma perspectiva futura: a sociedade presente é reconhecida pelos cristãos como uma sociedade imprópria; eles pertencem a uma sociedade nova, rumo à qual caminham e que, na sua peregrinação, é antecipada (4). Assim, migrantes e itinerantes revelam uma importante dimensão de toda Igreja: Povo de Deus a caminho do Reino definitivo. E mais: “a esperança em sentido cristão é sempre esperança também para os outros. E é esperança ativa, que nos faz lutar para que as coisas não caminhem para um ‘fim perverso’” (34)
Na travessia em busca dessa sociedade nova e diante de aceleradas mudanças em meio a gritantes contradições, o que podemos esperar? “O seu reino não é um além imaginário, colocado num futuro que nunca mais chega; o seu reino está presente onde ele é amado e onde o seu amor nos alcança” (31). Na encíclica, Bento XVI traz o exemplo de Santa Josefina Bakita, criança traficada, jovem explorada, pessoa escravizada em sua terra, na África; é levada, por motivos de trabalho, ao exterior (no caso, à Itália). Em outro ambiente e realidade, é alcançada pelo amor de outro “patrão”, como diz, o amor de Deus.
Bento XVI na Spes Salvi, alerta para os limites do humano que nunca poderá “construir” o reino de Deus com as próprias forças, pois o que construímos será sempre reino com os limites da natureza humana.... mas exorta sobre a responsabilidade, o dever de solidariedade com os que sofrem, em cujo elenco, indubitavelmente, está o rosto do migrante, do refugiado, do itinerante: «A grandeza da humanidade determina-se essencialmente na relação com o sofrimento e com quem sofre. Isto vale tanto para o indivíduo como para a sociedade. Uma sociedade que não consegue aceitar os que sofrem e não é capaz de contribuir, mediante a compaixão, para fazer com que o sofrimento seja compartilhado e assumido mesmo interiormente é uma sociedade cruel e desumana» (n. 38). Nesta sociedade, estamos todos e todas – Igreja, pastores, agentes, fiéis.
No Brasil, migrantes latino-americanos, migrantes internos, refugiados, ciganos, caminhoneiros, marítimos, celebram a Virgem de Caacupé, de Lujan, de Copacabana, da Conceição Aparecida, da Estrada, Estrela do Mar, dos Navegantes, de Guadalupe, dos Migrantes, do Carmo, da Luz, de Fátima e tantas outras denominações. Esta devoção ajudou e ajuda a manter a fé, mesmo na ausência de estruturas eclesiais.
Na conclusão da encíclica Spes Salvi, pastores e fiéis, somos chamados a caminhar sob a proteção da Virgem Peregrina, Mãe da Esperança, que congrega o povo, que é presença e luz nas travessias e rotas deste caminhar. A ela confiamos migrantes e itinerantes e a caminhada pastoral da Igreja.
Equipe de Elaboração do texto: Dom Maurício Grotto de Camargo, Pe. Alfredo Gonçalves, Ir. Rosita Milesi, Pe. Cláudio Ambrozio, Ir. Maria do Carmo S. Gonçalves, Ir. Felicita Rosset, Ir. Marizete Schiavon. Colaboraram ainda: Dom Murilo Krieger, Pe. Wallace Zanon.
[1] IBGE. Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio, 2006.
[2] Idem.
[3] IBGE In ZAMBERLAN Jurandyr. O processo migratório no Brasil. Porto Alegre: Pallotti, 2004. p. 75.
[4] Fonte: MRE/TRE-DF. Atualizados em 2007.
[5] www.ifad.org/events/remitances/maps/brochure.pdf, p. 14. Acessado em 24/fev/08. IFAD: International Fund for Agricultural Development (IFAD), agência especializada das Nações Unidas.
[6] IBGE. Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio, 2006.
[7] Idem
[8] Ministério das Relações Exteriores (MRE) – estimativa de brasileiros residentes no exterior a partir de dados obtidos em 2005 e divulgados em 2006; e Tribunal Regional Eleitoral do Distrito Federal (TRE-DF) – número de eleitores no exterior atualizado em 30/05/2007.
[9] Idem
[10] Isseis (imigrantes japoneses), nisseis (filhos), sanseis (netos) e Yonseis (bisnetos)
[11] Fonte: www.unhcr.org/statistics, acessado em 12fev08
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