quarta-feira, 20 de maio de 2009

A paz é fruto da justiça

Pe. Alfredo J. Gonçalves, CS

Paz e justiça são dois conceitos recorrentes. O segundo é base indispensável para a realização do primeiro. Ambos são indissociáveis. Semelhante raciocínio está bem expresso no termo que intermedeia as duas palavras. É como se a justiça fosse uma árvore cujo fruto principal é a paz. Vale lembrar aqui toda a reflexão da Campanha da Fraternidade de 2009, como também a célebre frase do Papa Paulo VI, na encíclica Populorum Progressio, publicada há mais de 40 anos: o desenvolvimento é o novo nome da paz! Fica claro que desenvolvimento aqui é sinônimo de justiça se prosseguirmos na leitura: “As excessivas disparidades econômicas, sociais e culturais provocam, entre os povos, tensões e discórdias, e põem em perigo a paz” (PP, nº 76).

Mas podemos abordar a questão por outro ângulo, de forma mais ligada ao nosso dia-a-dia. Como podem ter paz as pessoas que são vítimas da injustiça? Olhemos o mapa do mundo, depois da América Latina e Caribe e, por fim, do Brasil. Neles não será difícil identificar os grandes bolsões de pobreza, miséria e fome causadas por aquilo que o Documento de Medellín, também há mais de 40 anos, já chamava de “injustiça institucionalizada”. Por vezes são continentes inteiros, ou todo um país, mas o mais das vezes são as zonas abandonadas e esquecidas dentro de cada nação.

No chamado Primeiro Mundo, são comuns os bairros marginalizados onde impera a pobreza em meio a uma ampla classe média. Grande parte desses bairros é formada por imigrantes, com boa proporção de clandestinos. No Terceiro Mundo, ilhas de luxo e bem-estar num oceano de abandono, miséria, violência e droga. Após essa identificação, também não seria difícil colorir esse mapa de acordo com o grau de marginalização. Segundo as últimas estimativas da FAO, mais de 900 milhões de pessoas não ingerem o número suficiente de calorias necessárias para uma boa nutrição. No Brasil, por exemplo, apesar do projeto Bolsa Família e de outros programas sociais similares, os indícios apontam para um significativo aumento de favelas.

Sob tais condições de flagrante injustiça, evidente que não pode haver paz. Basta pensar nos pais de família desempregados ou subempregados, com salários insuficientes: como podem ter paz com os filhos chorando em volta? Ou pensar nos pequenos produtores rurais, praticamente abandonados e pressionados pelo agronegócio: facilmente o sonho da paz vira pesadelo. Pensar nos aposentados que, com a crise mundial, talvez venham a constituir-se as primeiras vítimas da falta de liquidez: onde está a paz de uma velhice tranqüila? Pensar nos jovens, rapazes e moças, que vêm os horizontes de fecharem cada vez mais: a paz é trocada pelo mundo da violência e da droga. Pensar nas mães e pais com filhos adolescentes: ao temor de uma gravidez precoce, agrega-se o medo de um namoro ou noivado que pode terminar em tragédia. A lista poderia multiplicar-se indefinidamente. Ainda por cima, são nesses bolsões de miséria onde os serviços públicos de infra-estrutura, saúde, educação, transporte, habitação, entre tantos outros, são os mais caros, raros e precários. Qual a saída? Onde buscar paz?

A migração acaba se tornando uma janela para um novo horizonte, uma alternativa. Ás centenas, milhares, milhões, sós ou em família, as pessoas põem-se em marcha. As estimativas apontam para cerca de 200 milhões o número de pessoas que residem fora do país em que nasceram. Mas no caminho da migração, os obstáculos tornam-se numerosos e difíceis. Da África para a Europa há a travessia do mediterrâneo, controlado e perigoso; da América Latina e Caribe para os Estados Unidos, há o funil da Guatemala e do México, com seus muros e autoridades hostis, além das ondas do Golfo do México; da Ásia para a Europa ou os Estados Unidos, há leis mais duras que muros, como a Diretiva do Retorno; tanto na migração estrangeira como na migração interna, há famílias que se partem, se bifurcam e se desintegram... Enfim, por toda parte as mesmas fronteiras que se abrem ao capital, às mercadorias, à tecnologia e aos serviços, cerram-se sobre os trabalhadores e trabalhadoras migrantes. Nas zonas de trânsito ou na travessia não há paz!

Mas a justiça e a paz constituem um sonho. Nada e ninguém podem detê-lo. O migrante persiste: parte, arrisca, insiste, cruza mares e desertos, enfrenta adversidades para poder construir um futuro mais promissor. Está em jogo a dignidade humana e o reencontro da própria família. De teimosia em teimosia, muitos conseguem cruzar a fronteira territorial ou geográfica, mas não conseguem cruzar a fronteira política. Esta está na lei, na política migratória de cada nação, no Congresso Nacional, na capital do país. Não poucos sonhos se quebram aí. Sem documentação, passam a viver como “clandestinos” em terra estranha. A situação de ilegalidade os expõe a todos os riscos, desde a super-exploração de seu trabalho até a ameaça da deportação, passando pelo medo e a insegurança diários. Poderíamos enumerar aqui tanto os hispano-americanos em São Paulo, Porto Alegre, Manaus e nas cidades fronteiriças dos países vizinhos, quanto os brasileiros e outros nos Estados Unidos, Europa, Japão e Austrália. Em alguns casos os próprios imigrantes mais antigos acabam explorando os recém chegados.

Outros, mesmo após ter cruzando a fronteira geográfica e política, com os papéis em dia, ainda têm de enfrentar discriminação e preconceito, vivendo em meio a tensões e hostilidades, ou formando guetos fechados para defender-se. Ou seja, não conseguiram cruzar uma terceira dimensão da fronteira, a cultural, isolando-se e freando a possibilidade de uma integração mais profunda com a comunidade de destino.

Felizmente, uma parte considerável, logra cruzar as três dimensões da fronteira. Formam ricas comunidades, seguem expressando sua religiosidade e suas expressões culturais e, num mundo cada vez mais plural, contribuem para o enriquecimento mútuo dos povos. Do ponto de vista religioso, e citando o Documento de Aparecida, são imigrantes ou emigrantes que podem se transformar de discípulos em apóstolos. Como lembrava Scalabrini, a migração, na medida em que cada povo mantém seus valores e sua riqueza, pode ser meio para a evangelização.

Outro lado positivo é que, tantos estes que foram bem sucedidos quanto os trabalham na clandestinidade, não raro sustentam de longe seus familiares que ficaram na região de origem. O fenômeno das remessas dos emigrantes torna-se cada vez mais expressivo e vem intrigando os estudiosos do tema. O Brasil, com seus 3 a 4 milhões de emigrantes já faz parte desse rol de países. Não deixa de ser uma forma de manter a família integrada, apesar das distâncias.
No caso da migração interna, em especial as trabalhadoras e trabalhadores temporários, é também o sonho da paz que os move. Como move igualmente muitos jovens para a zona urbana, numa tentativa de levantar um vôo mais alto. Mas aqui a injustiça e a desilusão costumam quebrar uma porção desses sonhos. Na migração temporal ou sazonal, as condições de alojamento, saúde, transporte e alimentação, como o excesso de trabalho, são os obstáculos que sempre batem à porta, chegando a levar alguns à morte. É o caso dos cortadores de cana, dos que “fazem” a safra da laranja ou do café, dos que trabalham nas carvoarias. O sonho voa com as asas quebradas nas cartas e telefonemas entre as regiões de origem e destino desses migrantes. Os agentes pastorais que trabalham cá e lá são as melhores testemunhas dessa comunicação dolorosa e constrangedora. Vale destacar, porém, a força e a garra desses trabalhadores em sustentar a família, ainda que seja em meio a um pão duro e regado de lágrimas.

Para os que se dirigem à cidade, as coisas não são muito diferentes. A falta de qualificação os leva a entrar no mercado de trabalho pela porta dos fundos: serviços domésticos, subemprego, bicos, ajudantes gerais, e uma série de outros postos, muitas vezes sem carteira assinada. Alguns, com esforços inauditos, trabalhando e estudando ao mesmo tempo, conseguem vislumbrar alguns lampejos do sonho da paz. A grande maioria, entretanto, permanece à margem do trabalho, da escola e da vida. Como na emigração/imigração, aqui também não são raros a discriminação e o preconceito. Não poucos, a exemplo dos que se aventuraram no exterior, se sentem fora da pátria no próprio país em que nasceram.

Os sonhos, porém, renascem das cinzas e dos escombros. Muitos se juntam, se organizam. Nos sindicatos, nos movimentos sociais, em associações ou na Igreja, eles buscam tornar o sonho individual em sonho coletivo. Criam-se grupos, que se interligam em redes, e pouco a pouco, de reivindicação em reivindicação, a luta avança. A esperança se refaz, e se refaz coletivamente.

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