terça-feira, 30 de novembro de 2010

28 DE NOVEMBRO

Pe. Alfredo J. Gonçalves, CS

A Congregação dos Missionários de São Carlos (Scalabrinianos) teve aprovação por parte do papa Leão XIII no dia 28 de novembro de 1887. Sua fundação, portanto, encontra-se estritamente vinculada às mudanças rápidas e profundas que sacodem o século XIX. Três renomados historiadores, cada um com sua obra monumental e com um enfoque distnto, trazem luz sobre os antecedentes e o contexto desse período conturbado da história: Fernand Brudel, Eric. J. Hosbsbawm e Peter Gay. Utilizando uma expressão desde último, a Congregação nasce no final do “século do movimento”, cuja melhor metáfora é o trem.

Ontem

O próprio movimento assume o caráter de grande metáfora do século XIX. Em várias dimensões, a sociedade se movimenta em marcha acelerada e estonteante. Para começar, no decorrer de todo o século, constata-se um movimento inédito de pessoas. O êxodo rural esvazia os campos europeus e as cidades se incham de forma caótica. A cidade de Manchester, por exemplo, berço da Revolução Industrial, pula de 70 mil habitantes em 1820 para mais de 700 mil antes de 1900. Em maior ou menor grau, o mesmo ocorre do outro lado do canal da mancha – Munique, Paris, Milão, Berlim, Viena, etc. – e do outro lado do Atlântico – New York, Chicago, Detroit, etc.

No velho continente europeu, boa parte de contingente de migrantes internos era absorvido pelas fábricas que se multiplicavam de forma vertiginosa. Outros, porém, a partir das cidades ou diretamente do campo, viam-se forçados a cruzar os oceanos em busca de novas oportunidades de vida nos Estados Unidos, Brasil, Argentina, Austrália, Nova Zelândia, entre outras localidades. Ainda de acordo com Peter Gay, entre 1820 e 1920, cerca de 62 milhões de pessoas deixam a Europa em direção às terras novas. “Das várias regiões da Itália”, escrevia em 1899 Dom João Batista Scalabrini, bispo de Piacenza , “um número considerável de camponeses e operários emigra a cada ano. Espalha-se pelo mundo em busca de trabalho”.

Numa rápida retrospectiva da época, não é difícil estabelecer uma relação curiosa entre o Fundador Scalabrini, Leão XIII e o historiador citado. Enquanto este se refere ao trem como a metáfora do século em movimento, o pontífice, na abertura da Rerum Novarum, de 1891, documento inaugural da Doutrina Social da Igreja (DSI), escreve sobre a “sede de inovações” e a “agitação febril” que domina a sociedade. Se, por uma parte, o Papa estava preocupado com a “condição dos operários”, subtítulo da encíclica, por outro lado, Scalabrini tinha os olhos fixos naqueles que sequer conseguiam um posto de trabalho em seu país e se viam obrigados a deixar suas terras, seus parentes e emigra para o novo continente.

É conhecida, notória e comovente a sua descrição dos emigrantes amontoados na Estação de Milão, cujos “pórticos laterais e a praça adjacente” encontram-se “invadidos por trezentos ou quatrocentos indivíduos” E Scalabrini continua: “eram velhos curvados pela idade e pelas fadigas, homens na flor da virilidade, mulheres que levavam após si ou carregavam ao colo suas crianças, meninos e meninas todos irmanados por um único pensamento, todos orientados pra uma meta comum”. Às centenas, aguardavam o trem que os levariam ao porto de Gênova, de onde deveriam tomar o navio para uma aventura por mares e terras bravias. Eram migrantes que depositam suas esperança no sonho de “far l’America”. Não é à toa que a cena da Estação de Milão torna-se uma espécie de ícone para a trajetória de toda a Família Scalabriniana.

Além do deslocamento em massa de pessoas, o século XIX é testemunha de um movimento sem precedentes no campo da produção e comercialização de matérias primas e de novos bens de consumo. A era da máquina multiplica por dez, cem, mil vezes o ritmo e a capacidade de produzir mercadorias e conforto. Por outro lado, a revolução nos meios de transporte e nos meios de comunicação – trem, navios modernos, telégrafo, telefone, etc. – praticamente subvertem a noção de tempo e espaço. O ímpeto inebriante da Revolução Industrial põe em velocidade acelerada pessoas, coisas e capital.

O século XIX representa, ainda, um movimento de passagem do tradicional para o novo. Desde o início dos “tempos modernos”, passando pelo renascimento e pelo iluminismo, os valores tradicionais são sendo postergados por uma crescente avalanche de inovações. A novidade passa a ganhar o status de valor primordial. De maneira progressiba, a pirâmide medieval estática, assentada sobre a origem do berço, da linhagem e do sangue, dá lugar a uma sociedade dinâmica, onde o dinheiro teoricamente democratiza o acesso livre ao conjunto da população. O teocentrismo é substituído pelo antropocentrismo racional, ao passo que a ciência e a tecnologia dissecam e desvendam os mistérios da natureza, da história e do corpo humano. Surge o mundo secular e “desencantado”, para usar as palavras de Max Weber.

Também na Igreja verifica-se certo movimento, traduzido pela emergência de uma nova sensibilidade social. Uma série de “santos sociais” encontra-se na origem de novas congregações religiosas, marcadamente voltadas para o apostolado. Se por um lado a Revolução Industrial trouxe avanços significativos nos transportes, nas comunicações, na medicina e no conforto das casas, por outro gerou efeitos nocivos no tecido social. As transformações, para o bem ou para o mal, são sempre causa de ansiedades. O novo interpela, desinstala, joga uma pedra sobre o lago da inércia natural, assinala Peter Gay. A segunda metade do século XIX é pródiga em obras assistenciais que procuram ir ao encontro das necessidades fundamentais de determinados grupos e/ou situações sociais ameaçadas pela avalanche das mudanças.

S. João Bosco volta a atenção para os jovens, um pouco perdidos num mundo sem horizontes precisos e que foge debaixo dos pés; a inspiração de Antoine F. Ozanam, embora nascida décadas antes, desenvolve-se como obra vicentina predominantemente nesse período; os padres e irmãs Oblatos de Maria Virgem preocupam-se com a situação das mulheres prostituídas; os órfãos e viúvas interpelam a Congregação das Irmãzinhas da Imaculada Conceição; Dom Scalabrini e Madre Cabrini dirigem seu olhar para os emigrados; a obra Kolping procura desenvolver círculos operários cristãos... Tudo isso irá encontrar sua expressão mais universal no final do século, com a Carta Encíclica Rerurm Novarum, como já vimos. Não estariam aqui os precursores do Concílio Ecumênico Vaticano II? Por outro lado, a “onda ou maré vermelha” do socialismo ganhava terreno particularmente entre os operários de toda Europa. Convém não esquecer que o Manifesto Comunista tinha vindo à luz em 1848, quase meio século antes da encíclica de Leão XIII e, em 1844, F. Engels havia publicado sua obra sobre a condição dos operários nas cidades da Inglaterra, mesmo tema da do documento pontifício que dá início à DSI.

Hoje

Passado mais de um século da obra e morte de Scalabrini, o fenômeno migratório só fez aumentar. As migrações parecem figurar na história como ondas aparentes e superficiais de correntes ocultas e subterrâneas. Constituem uma espécie de termômetro de mudanças profundas, as quais são sempre precedidas ou seguidas de movimentos populacionais significativos. Os abalos sísmicos no campo socioeconômico, político ou cultural em geral vêem acompanhados de consideráveis deslocamentos geográficos. As migrações são “sinais dos tempos”, como insiste o papa Bento XVI. Atestam a existência de terremotos reais, mas às vezes imperceptíveis.

Hoje em dia, os deslocamentos humanos de massa tornaram-se simultaneamente mais intensos, mais diversificados e mais complexos. Mais intensos, na medida em que envolvem maior quantidade de pessoas. Estima-se em mais de 200 milhões o número de imigrantes que residem fora do país em que nasceram. Se a isso acrescentarmos as migrações internas e temporárias, a cifra alcança cifras bem mais expressivas. Segundo alguns analistas, porém, o “exército de reserva” (K. Marx), ou seja, o potencial de trabalhadores dispostos a levantar a tenda e correr atrás de qualquer sinal de trabalho, pode ultrapassar os 500 milhões. Nesse montante, predominam os jovens e cresce a percentagem de mulheres.

Nem precisa dizer que grande parte desse contingente vive em situações extremamente precárias. Como migrantes em potencial ou como migrantes de fato, experimentam no corpo e na alma a condição pobreza ou de clandestinidade; são submetidos os serviços mais degradantes, sujos, pesados e mal remunerados; muitos acabam sendo vítimas do tráfico internacional de seres humanos para fins de exploração trabalhista ou sexual; sem documentação e com dificuldade de um emprego estável, dificulta-se igualmente o acesso à escola, saúde, enfim, aos direitos de uma cidadania digna.
As migrações são também mais diversificadas. Atualmente, poucos países do planeta estão fora de seu circuito. Como lugares de origem, trânsito ou destino, todos se vêem envolvidos nesse imenso vaivém planetário. Novos povos, raças e grupos entram a fazer parte desse cenário nacional, regional e internacional do fenômeno migratório.
Países historicamente marcados pela imigração passam a apresentar fortes contingentes de emigrantes, como Brasil, Argentina, México, entre outros. Destinam-se predominantemente aos Estados Unidos, seguidos da Europa e Japão. Por outro lado, os países europeus, que no século XIX e início do século XX foram palco de saída, hoje recém imigrantes hispano-americanos, africanos e asiáticos.

Diversificam-se também os fluxos e as rotas. A direção sul-norte é de longe a mais movimentada, mas, após o declínio da União Soviética, cresce o fluxo leste-oeste. Nos países do Terceiro Mundo, aumentam igualmente os deslocamentos regionais no interior da África, da América Latina e da Ásia, bem como o êxodo rural desenfreado e as migrações internas. Voos curtos e voos médios, dentro de um mesmo país ou entre países vizinhos, normalmente são etapas preparatórias para voos mais longos, de continente para continente. As assimetrias e desigualdades sociais, a violência de todo tipo, as guerras e guerrilhas, o tráfico de pessoas, o intercâmbio de técnicos e estudantes, o vaivém para as safras agrícolas, o trabalho doméstico e os serviços em geral, o turismo – são alguns dos fatores predominantes da mobilidade humana. Sem falar dos que se deslocam por profissão ou cultura, tais como motoristas, marítimos, aeroviários, ciganos, itinerantes, etc.

Nos grandes centros urbanos é comum o encontro diário com “os mil rostos do outro”. Jamais o mundo e o outro/diferente estiveram tão próximos, como uma gigantesca aldeia global. Novas revoluções na área dos transportes, especialmente a democratização do avião, na tecnologia das comunicações, com destaque para a televisão, e no campo da informática, com a Internet em primeiro lugar, aproximam como nunca povos, culturas e raças. A notícia torna-se cada vez mais simultânea, instantânea. Tudo isso acaba sendo, ao mesmo tempo, causa e efeito de novos fluxos migratórios.

Por fim, as migrações no momento presente apresentam um quadro cada vez mais complexo. Se, em tempos passados, os fluxos migratórios tinham uma origem e um destino mais ou menos determinados, atualmente o panorama da mobilidade humana apresenta as mais variadas direções. O mapa das idas e vindas se complexificou. À pergunta sobre a origem do imigrante deve acrescentar-se a pergunta sobre sua proveniência imediata. Isto porque grande parte das pessoas que se deslocam o faz por uma, duas, três e mais vezes. Arrancada a primeira raiz, facilmente o migrante se torna um peregrino de muitos e repetidos caminhos. Não mora, acampa!

No passado predominavam as migrações de colonização. Os trabalhadores migravam com suas famílias para fixarem-se num novo lugar. Aí tratavam de recomeçar a vida. É verdade que havia grande quantidade de terra “vazia e ociosa” para a instalação de grupos de colonos. Os casos dos Estados Unidos, Argentina, Austrália e Rio Grande do Sul, Brasil, ilustram isso. Nos dias atuais, ao contrário, é comum os migrantes fazerem experimentos migratórios. De etapa em etapa, vão tentando progredir em seu projeto de vida. Fixam-se por algum tempo, preparando uma espécie de trampolim para outro pulo mais arrojado. Uma vez mais, vivem montando e desmontando a tenda. Exagerando numa caricatura, muitos roçam de endereço quase como se troca de roupa.
Mas não dá para generalizar. Já nos séculos passados existiam aventureiros que se lançavam a uma migração constante e repetida, da mesma forma que também hoje existem jovens e famílias que procuram um galho firme para construir seu ninho. Ou uma terra sólida onde mergulhar as raízes de um sonho duradouro, o alicerce de uma nova vida. A realidade é sempre mais rica e dinâmica que nossos pobres esquemas mentais.

Amanhã

Após a análise dos itens anteriores, duas constatações são inevitáveis. A primeira é de que com a aproximação e o estreitamento dos povos e nações, aprofunda-se o pluralismo cultural e religioso. Valores e contravalores se chocam, se entrelaçam e se enriquecem simultânea e reciprocamente. Os desafios de ordem pastoral e política se tornam mais exigentes. O seguimento de Jesus e de Scalabrini requer uma “fidelidade criativa” cada vez mais atenta. Vale sublinhar que fidelidade não é imitação. Imitar pode ser a pior forma de seguir. Na medida em que muda o contexto histórico, mudam igualmente as perguntas e respostas levantadas pela realidade das migrações.

Isso nos leva à segunda constatação: nunca o carisma scalabriniano esteve tão vivo e atual com nos dias de hoje. Aqui o maior grande desafio é como atualizar a herança de Scalabrini no contexto da mobilidade humana do século XXI. “A fenômenos novos, organismos novos”, dizia o Fundador. Não se trata de voltar ao saudosismo do passado, mas de avançar para as novas fronteiras. Simbolicamente, não se trata de construir museus, e sim de abrir trincheiras. Ou melhor, estudar os museus com os olhos e os passos voltados para novos horizontes. No espírito da fidelidade criativa, se imitar pode significar traição aos novos desafios ou cristalização histórica, o verdadeiro seguimento exige uma criatividade permanente diante da dinâmica das migrações.

Como traduzir a expressão “organismos novos” para responder eficazmente aos “fenômenos novos” de que nos fala Scalabrini? O Congresso Scalabriniano sobre Migrações e Modelos de Pastoral, realizado em Triuggio, Itália, nos meses de maio/junho de 2005, traz muitas luzes e aponta caminhos concretos. Entre eles poderíamos destacar: análise atualizada e permanente do fenômeno migratório, através dos Centros de estudos Migratórios; introdução das temáticas migratórias no currículo da formação scalabriniana, tanto de religiosos quanto de leigos/as; atuação incisiva nos pontos nevrálgicos onde a migração e mais viva e efervescente; casas de migrantes e/ou Centro Pastorais de Acolhida, com assistência imediata e serviços de documentação, especialmente nas regiões fronteiriças e nas capitais; paróquias multiétnicas e pluriculturais, como espaço de encontro e de intercâmbio para os diversos povos e nações; parcerias e colaboração com outras forças vivas que atuam no campo da mobilidade humana, seja em termos de Igreja, organizações governamentais ou órgãos do poder público; presença articulada nos pólos de origem, trânsito e destino; sensibilidade das Igrejas Locais e da sociedade como um todo; defesa dos direitos do migrante, tanto trabalhistas quanto sociais; presença em organismos eclesiais e sociais que tenham incidência em seus respectivos campos de atuação; atividades específicas junto aos marítimos, itinerantes e outras categorias de trabalhadores ou de povos em mobilidade; maior divulgação das ações em prol dos migrantes, com vistas, por exemplo, a mudanças na Lei de Estrangeiros...

Em tais modelos de pastoral, para seguir com a terminologia de Triuggio, impõem-se quatro linhas de ação: a) a acolhida ao outro/estranho/diferente como coluna vertebral de toda a ação scalabriniana; b) a presença e defesa da causa do migrante frente a outros desafios da sociedade moderna ou pós-moderna; c) o Evangelho, a Eucaristia, o rosto dos migrantes e a espiritualidade do caminho como fontes que nutrem e sustentam a missão; d) o passo do multiculturalismo ao interculturalismo, onde não basta a tolerância e a coexistência pacífica entre as distintas expressões culturais, mas é preciso avançar para o confronto sadio e o intercâmbio mutuamente enriquecedor.

Conclusão

Ontem, hoje, amanhã e sempre – do ponto de vista scalabriniano – as pegadas de Jesus Cristo, do Bem-aventurado Scalabrini, de Maria mãe dos peregrinos e dos migrantes operam um tríplice apelo à conversão: na fonte, nos levam a beber a água cristalina das origens, que revigora e reaviva as raízes de nossa espiritualidade, nosso carisma e nossa missão; no caminho, transformam nossas casas em tendas, não somente abertas à acolhida dos caminhantes, mas aberta também dispostas a levantar acampamento e seguir adiante, dada a provisoriedade de nossa passagem pela face da terra; no horizonte, buscam a pátria definitiva, a Jerusalém celeste, sem olvidar que ela tem seus alicerces fundados na justiça e na solidariedade da cidade terrestre.

LAMA NO VENTILADOR

Pe. Alfredo J. Gonçalves, CS

O título lembra outro, bem mais popular, mas também mais chulo. De qualquer modo, com uma ou outra maneira de falar, a expressão remete à maré de mensagens e contra-mensagens que vem sendo veiculada pela Internet sobre a temática religião e eleições. Pessoas individuais de renome, grupos mais ou menos representativos, instituições conhecidas e internautas anônimos – todos juntos produzem uma avalanche estonteante de notas, e-mails, acusações, defesas, apelos... Uma montanha de informações e contra-informações jogada diariamente na praça pública da Internet. A ponto de não mais sermos capazes de discernir o oficial do oficioso, o certo do errado, o ético do antiético, o lixo do reciclável.

Entre os defensores de Dilma Rousself, por um lado, e de José Serra, por outro, torna-se difícil distinguir de onde vem mais peso e mais poluição. Ambos os lados expressam, antes de tudo, uma ansiedade mórbida em desqualificar a todo custo o opositor ou opositora. Nessa guerra, que insistimos em chamar de processo eleitoral, entra-se sem escrúpulos na vida particular, fabricam-se factóides sobre factóides, exageram-se dados e obras realizadas, compara-se o governo FHC com o governo Lula... O fato é que a quantidade de informações se avoluma, sem que seja possível decidir o que é falso do que é verdadeiro.

Como fica o eleitor? Como separar o joio do trigo? O que existe efetivamente por trás desse afã de reduzir a escombros a estátua política do adversário ou adversária? Por que essa ânsia de jogar lama sobre a história e os feitos da outra coligação, preservando a própria de qualquer tipo de ato-crítica? Como acumular elementos para uma decisão consciente e madura? Felizmente, ainda é pequena, embora crescente, a porcentagem de cidadãos que se rege pelas dicas da Internet. Mas, infelizmente, tudo isso respiga para a televisão, o rádio e os jornais. De toda essa cacofonia virtual resulta uma verdadeira caricatura, seja do candidato ou candidata, seja do pleito como tal. A dificuldade de chegar aos fatos é diretamente proporcional à montanha de boatos que vão se avolumando.

Sem sombra de dúvida, estamos diante de uma questão falsa ou de um pseudo-problema. Não apenas por reduzir a defesa da vida ao combate ao aborto ou à famosa frase “desde a concepção até a morte natural”. Na verdade a vida está ameaçada não somente no ventre materno, mas também, e às vezes com maior grau de violência, nas ruas e praças de nossas cidades; nos morros, favelas e periferias das grandes metrópoles, na tortura oculta no interior das unidades do sistema prisional; no tráfico de armas, droga e de seres humanos; no trabalho escravo, degradante e infantil; na miséria, fome e subnutrição de milhões de crianças que, por todo o mundo, convivem com o luxo e o desperdício; na inviolabilidade do lar, onde mulheres e crianças suportam anos a fio de uma violência silenciosa e silenciada, no extermínio de jovens entre 15 e 25 anos, seja por parte da polícia, seja na luta das gangues pelos pontos de tráfico... Sem falar de guerras, conflitos armados, violência aberta, acidentes de trânsito e de trabalho, atropelamentos, e assim por diante.

Há mais uma razão, entretanto, para classificar essa baixaria da campanha eleitoral de pseudo-problema. Tenho insistido, e repito, que no pleito de 2010 não estamos diante de uma disputa entre dois projetos de nação, e sim entre duas maneiras de governar o mesmo projeto. Uma rápida retrospectiva das décadas de 1980-90, mostra uma disputa entre um “projeto popular para o Brasil”, por uma parte, e um “projeto liberal/neoliberal”, por outra. Enquanto o primeiro, com raízes históricas de longa data, é representando nessas décadas pelo Partido dos Trabalhadores e pela figura de Lula, o segundo também tem raízes no tempo da Colônia e, mais recentemente, é incorporado por políticos como José Sarney, Itamar Franco, Fernando Henrique Cardoso e Fernando Collor. De fato, o programa do PT e de Lula não surgiu como um meteoro, mas mergulha seu alicerce e suas motivações nas lutas, movimentos e iniciativas populares dos últimas 50 anos.

A vitória de Lula em 2002, porém, significou uma virada do jogo. O projeto popular foi preterido em favor de uma administração lulista do projeto neoliberal. Três razões levaram a isso: a) primeiro, as expectativas da eleição de um migrante-operário a Presidente da República estavam muito acima das forças reais de organização popular. Havia uma disparidade entre tais expectativas e a capacidade efetiva de mobilizar a população. O voto no Lula, mais do que uma decisão consciente, representou um “voto de transferência”. O cidadão transfere o exercício da cidadania para seu representante político. É um dos males da democracia representativa; b) em segundo lugar, diante desse desencontro entre expectativas e forças vivas, Lula escreve uma carta endereçada ao povo brasileiro, mas dirigida ao mercado financeiro nacional e internacional, no sentido de g arantir que o Brasil honraria com todos os seus compromissos. Trata-se de aplacar o medo de mudanças drásticas; c) por fim, Lula precisava governar: fez então uma aliança onde entraram em jogo os setores mais diversos da sociedade brasileira. Ao invés de contar com as forças sociais, Lula buscou apoio à direita e à esquerda, incluindo tradicionais oligarquias, historicamente retrógradas e avessas a qualquer tipo de mudança.

Começa então o jeito Lula de governar. Pouco mexe no vespeiro das oligarquias há tempo assentadas no poder, e que no fundo comandam o Estado (bancada ruralista, setor financeiro, tele-comunicações, indústria, empreiteiras, agronegócio, etc.), mas abre algumas janelas para os pobres (bolsa-família, micro-crédito, cotas para universidade, aumento do salário mínimo, obras do PAC, etc.). Ou seja, procura contentar os dois extremos: por um lado, o topo da pirâmide formado pelas famílias mais ricas do país; por outro, a base da pirâmide, onde se encontram as camadas C e D da população. A classe média, se é que existe isso no Brasil, se vê pressionada de todos os lados, especialmente pelo volume de impostos. Tudo isso temperado com boa dose de populismo, personalismo, centralismo e outros “ismos”. Pai dos pobres e mãe dos ricos? Getulismo reciclado? São avaliações possíveis! Mas talvez se deva estudar mais de perto o “lulismo”, como já o fazem alguns analistas.

Decorre daí que em 2010 José Serra e Dilma Rousself representam duas maneiras de levar adiante o modelo neoliberal brasileiro, de um país periférico ou emergente, como se queira. Uma dessa maneiras de governar certamente seguirá com as janelas abertas aos mais pobres, embora seja difícil chamar isso de políticas públicas. Mais parecem ensaios provisórios que ganharam caráter definitivo. A outra maneira de governar segue sendo uma incógnita a esse respeito. Cortar esses benefícios pontuais seria um tiro no pé! O ponto mais grave talvez esteja no programa de aprofundamento das privatizações, se bem que o governo Lula também não deixou de privatizar (concessão de estradas, por exemplo).

Concluindo, é difícil ver rupturas tão substanciais de FHC a Lula e deste ao próximo presidente. Há mudanças secundárias, sem dúvida, mas o núcleo do modelo permanece intocável. Aliás, as ondas de transformações superficiais muitas vezes escondem a continuidade das correntes subterrâneas, na economia, na política e na ação social. Numa palavra, não vejo motivo para jogar tanta lama no ventilador e, com isso, ofuscar mais do que elucidar os verdadeiros problemas da nação. Reduz-se a discussão eleitoral a uma troca de farpas que acentua a miopia nacional, ao invés colocar sobre a mesa os temas relevantes do destino do destino do país. A pauta se empobrece e, em lugar de luz para enxergar o caminho, o povo se vê diante de uma fumaça enganadora.

No atual momento, é quase impossível reverter os estragos feitos pelo ventilador da Internet e dos meios de comunicação social em geral. Multiplicar notas, desculpas ou esclarecimentos parece que só faz aumentar a confusão. Não é isso o que se espera de um debate sério e robusto como requer o processo eleitoral. Onde estão temas como preservação do meio ambiente, reforma agrária e agrícola, sistema público de saúde, transportes de qualidade, extensão da malha ferroviária, marco da educação, alternativas energéticas, propostas de reciclagem, combate à violência no campo e na cidade, ciência e tecnologia, bioética e engenharia genética – entre tantos outros!?...

ANJOS E DEMÔNIOS

Pe. Alfredo J. Gonçalves, CS

Terminado o pleito eleitoral, baixado o tom das disputas e silenciadas as farpas ruidosas, não custa deter-se um momento nos rastos e impressões deixados pelo caminho. De início, poucas vezes se viu uma polarização tão acentuada e, ao mesmo tempo, tão superficial se confrontada com os grandes problemas que assolam uma economia emergente. Determinadas expressões usadas no calor dos embates, bem como o comportamento dos candidatos e respectivas coligações, não deixam dúvida quanto ao extremismo do duelo.

Temos, de um lado, a ligação de José Serra com o retorno da barbárie e da onda de privatizações, como se a economia estivesse prestes a sofrer abalos sísmicos diante de sua possível vitória. Chegou-se até a ressuscitar o tom do famigerado eu tenho medo da Regina Duarte, nas eleições de 2002, quando se tornava clara a ascendência de Luiz Inácio Lula da Silva à Presidência da República. Como se ganhar o direito a sentar na cadeira presidencial fosse controlar as forças do Estado, manifestas ou ocultas.

De outro lado, o mesmo eu tenho medo, mais sutil e com nova roupagem, reveste a expressão turma da Dilma, numa tentativa de satanizar a campanha da coligação liderada pelo Partido dos Trabalhadores. E nessa turma elencavam-se nomes de figuras políticas historicamente vinculadas aos momentos mais turbulentos da gestão Lula, tais como Sarney, José Dirceu, entre outros. A ansiedade de ambos os lados revela e esconde, simultaneamente, interesses nem sempre confessados.

Mas a demonização da política foi mais longe. Usou-se a abusou-se do confronto entre as gestões de FHC e Lula. O que para uns era anjo, para outros vinha revestido de demônio, e vice-versa. Num regresso a práticas execradas pela história, procurou-se traçar as fronteiras entre o céu e o inferno, entre o bem e o mal, entre o erro e a verdade. Os vilões de um lado eram necessariamente heróis do outro, os mocinhos de uma coligação apareciam como bandidos da outra. De repente vimo-nos conduzidos aos filmes da infância, onde a cavalaria medieval e o farwest norte-americano demarcavam desde o começo os limites entre anjos e demônios!

As próprias forças religiosas se prestaram a isso. No final do primeiro turno e começo do segundo turno, criou-se um barulho infernal com questões de ordem moral, como, por exemplo, o aborto e o casamento gay. Como se fossem esses os temas centrais e inegociáveis da campanha. Notas, desmentidos, reafirmações, mensagens e opiniões de todo tipo invadiram a praça pública da Internet. Difícil orientar-se diante de um rumor tão inescrupulosamente espetacularizado. Nesse clima, cada posição, cada palavra ou cada defesa, de um ou outro lado, só faziam jogar mais lama no ventilador. A praça virtual se contaminou de tal forma que os internautas corriam o risco de quedar-se surdos e cegos para outros tipos de morte no cenário da violência cotidiana, ou outros tipos de assuntos relevantes para as populações pobres e excluídas de uma verdadeira cidadania.

Mas os enfrentamentos de caráter mais pesado (ou mais baixo!) se deram entre as próprias coligações em jogo. De parte dos tucanos, e com a cumplicidade de grande parte da mídia, montou-se todo um espetáculo grandiloquente por causa de uma agressão que, afinal de contas, não passou de um embate corriqueiro de qualquer campanha. De parte dos petistas, o próprio Presidente da República, trovejando de palanque em palanque, pousou de cabo eleitoral assumido.

Nada disso, porém, abalou os subterrâneos da economia. Os ruídos e bravatas da campanha eleitoral permaneceram na superfície. É costume afirmar que, em certos momentos, o mercado está de mau humor ou está nervoso. Neste pleito, podemos igualmente afirmar que o mercado tinha consciência de que estava garantida a continuidade do modelo político e econômico brasileiro. Não se viu carrancas descabidas na bolsa de valores, tentativas de fuga dos especuladores nacionais e internacionais, ou uma gangorra desenfreada da cotação do dólar. Apesar das ondas bravias que polarizaram a eleição, as correntes ocultas da economia permaneceram serenas e tranqüilas. Não obstante tanto ruído, nada foi capaz de perturbar o sono do gigante chamado capitalismo neoliberal!

Os itens acima nos levam a uma observação pertinente de Beltrand Russel. Segundo este autor, a democracia ocidental, em sua trajetória acidentada, conseguiu eliminar as dinastias políticas. O poder monárquico ou imperial, dos séculos passados, transmitido de paia para filho, muitas vezes coroado e abençoado pelos poderes eclesiásticos, foi totalmente banido dos países ocidentais. O governo passa a ser um Contrato Social (Rousseau, Hobbes) entre as forças sociais: teoricamente, emana do povo, pelo povo e para o povo.

Por outro lado, ainda de acordo com Russel, a democracia ficou a meio caminho. Não conseguiu chegar aos subterrâneos mais intricados da economia. Neste campo do patrimônio acumulado, as fortunas passam de pai para filho, e as dinastias continuam intactas. Ninguém questiona o direito natural dos descendentes herdarem os bens de determinado milionário ou bilionário, pouco importando a forma como tal riqueza foi adquirida. Terras, contas bancárias, edifícios, ações, patentes, marcas, etc. são bens de família a serem distribuídos entre os filhos e netos.

Ocorre que os detentores das dinastias econômicas acabam recriando as dinastias políticas. São eles que podem pagar o alto preço de campanhas eleitorais, que podem bancar os marqueteiros e que podem expor o rosto e o pensamento na grande mídia. O poder econômico compra o poder político e este, a seu turno, garante acesso a outras formas de riqueza. Fecha-se o círculo vicioso do ter e do poder: um bom patrimônio tem condições de fazer uma boa campanha e ganhar as eleições, o que abre portas para o acúmulo de novos bens. Não é à toa que alguns donos do poder (Raymundo Faoro) vão se perpetuando numa espécie de cadeira cativa no Senado, na Câmara e em outras funções de grande prestígio.

Mais grave ainda quando tudo isso vem reforçado pela força da máquina administrativa. Quando prefeitos, governadores e presidente, além de vereadores, deputados e senadores, se atiram de corpo e alma ao processo eleitoral, fica difícil para o eleitor estabelecer um linha demarcatória entre o que é governar e o que é fazer campanha. Aliás, fica difícil para o próprio político. Também aqui as fronteiras se borram com frequência inusitada. Tanto no moralismo entre o bem e o mal, quanto na opção ética entre exercer o mandato ou atuar como cabo eleitoral, os limites se mesclam e se confundem.

Nos dois casos, falta ao país o que se poderia chamar de uma cultura democrática ampla e plural. Uma espécie de campo de disputa independente dos personalismos, autoritarismos, centralismos e moralismos religiosos, por um lado, e independente, por outro lado, das grandes fortunas, das oligarquias sobreviventes, do tráfico de influência, do prestígio e privilégio das classes dominantes e do poder exacerbado da mídia. Para isso se impõe a necessidade de criar e/ou fortalecer novos canais de participação popular, novos mecanismos e instrumentos de controle do poder e do orçamento públicos. Falar de democracia direta é um sonho, mas é possível avançar para um debate político e político-partidário onde os diversos setores da população tenham maior incidência e poder de decisão.

Nesta perspectiva, não basta eleger políticos democráticos, que não raro acabam sendo manipulados pelas forças de um Estado historicamente viciado em manter os privilégios da Casa Grande em detrimento dos direitos da Senzala (Gilberto Freire). É preciso estabelecer estruturas democráticas de gestão da rex publica, as quais independam dos mandatários de plantão, por uma parte, e, por outra, possam ser controladas por representações da sociedade civil organizada. Somente com raízes bem fincadas no solo das reivindicações populares solo úmido de suor, lágrimas e sangue de tantos cidadãos é que a árvore da gestão política pode esquivar-se à manipulação das raposas que há séculos controlam a ferro e fogo o mando da nação.

O ENIGMA DA CRUZ

Pe. Alfredo J. Gonçalves, CS

A cruz é maldita. Instrumento de tortura e morte do mundo antigo: atroz e duradouro, reservado aos rebeldes mais execrados. “Maldito todo aquele que é suspenso no madeiro”, diz São Paulo na Carta aos Gálatas (Gl 3,13), citando o Livro do Deuteronômio. Deus está ausente da cruz, pois, ainda conforme a citação do Deuteronômio, “aquele que é pendurado é um objeto de maldição divina” (Dt 21,23). O Pai não pode comungar com a violência extremada dos homens, especialmente quando esta se abate sobre um inocente que “passou pela vida fazendo o bem” (At 10,38). Daí o grito atormentado e incompreensível do Filho, agonizante no alto da cruz, citando o salmo 22: “Elói, Elói, lamma sabactáni?”, “Meu Deus, meu Deus, por que me abandonastes?” (Mc 15,34).

Mas é igualmente incompreensível que, em momento tão crucial (e este adjetivo tem origem na cruz), o pai abandone o filho. É este, aliás, que torna presente o amor do Pai no seu gesto humano-divino, o gesto mais inaudito e surpreendente de todos os tempos: “Pai perdoai-lhes porque eles não sabem o que fazem!” (Lc 23,34). Aqui o contraste se eleva à máxima potência. À ação violenta das autoridades que o julgaram e dos soldados que o executam, Jesus responde com o perdão. A manifestação mais extremada da violência se confronta com a própria personificação da misericórdia. Enquanto, de um lado, os verdugos se atiram como que embriagados sobre a presa inocente, de outro, Deus “se vinga” oferecendo a dádiva do perdão. Sendo Jesus Cristo a revelação do amor divino, o verbo feito carne, este é sem dúvida o momento sublime de tal revelação.

Nesta linha de reflexão, exclui-se completamente a idéia de que o Pai entrega o Filho em sacrifício pela salvação da humanidade. Hoje é unânime entre os estudiosos o consenso de que a morte brutal de Jesus é fruto de seu profetismo e testemunho, ambos de uma radicalidade sem precedentes. Nessa trajetória em defesa da justiça e dos pobres, o nazareno se bate com as forças conservadoras da época, representando tanto o poder judaico quanto o império romano. São as autoridades constituídas que manipulam o povo, exigindo deste um “crucifica-o, crucifica-o” que, irremediável e fatalmente o levará ao calvário. E o Pai, permanece silencioso, indiferente, alheio à cena do Gólgota? O silêncio de Deus é a condição da liberdade humana. Deus é fiel porque cala, respeitando as opções de cada um. Em tudo, menos no pecado, Jesus experimenta a condição humana (Hb 4,15).

Semelhante reflexão remete à obra de René Girard, particularmente A Violência e o Sagrado e O Bode Expiatório. Nesses estudos, o autor sustenta que a resposta de Jesus ao seu julgamento e execução tão bárbara quebra o círculo vicioso da violência, tão comum nas religiões antigas. Nestas, a violência cotidiana exigia um ritual esporádico, igualmente violento, para refazer a coesão e a paz social. Assim se equilibrava e se neutralizava o ciclo espiral dos atos violentos. Era como se o sangue das vítimas – humanas ou animais – aplacasse a fúria das multidões, refletida na ira dos deuses. A reciprocidade violenta ajudava a conter o círculo repetitivo do caos indiferenciado, gerado por algum tipo de agressão. Dessa forma, a vida em sociedade era como que re-fundada periodicamente em rituais de sacrifício. A civilização estava alicerçada na violência recíproca.

Em outra obra, As coisas escondidas desde a criação do mundo, o mesmo autor esclarece como o perdão, oferecido no alto da cruz e no auge do sofrimento, instaura a fundação de outro tipo de relações humanas e sociais. Aqui os laços nascem não do medo e do equilíbrio entre as forças em permanentes choques violentos, e sim no amor e na solidariedade, inclusive para com os inimigos. Jesus inaugura a possibilidade de outro princípio para própria civilização, desta vez alicerçada em redes solidárias recíprocas. As duas grandes guerras mundiais, o holocausto e a guerra-fria, períodos cáusticos e tragicamente pontilhado por milhares de cadáveres insepultos, pode ser outro resultado da violência mútua.

Retomando o tema, o Pai encontra-se, ao mesmo tempo, ausente e presente na cruz onde o Filho dolorosamente agoniza. Ausente na fúria humana que desencadeia a tormenta assassina sobre o profeta dos últimos tempos. Fúria que se reproduz ao longo dos tempos sobre milhões e milhões de vítimas da história, crucificadas pela pobreza, a miséria, a fome e a violência em suas mil formas. Mas Deus está presente no ato de perdão do Filho que, desse modo, revela com todas as luzes o coração misericordioso, compassivo e amoroso de Deus. Coração do bom pastor, do bom samaritano ou do pai que espera ansioso pela volta do “filho pródigo”. Nesse contraste inédito entre a violência e o amor, há como que um curto-circuito, uma faísca, um raio – que ilumina o mistério da cruz. O gesto gratuito de perdão como resposta aos algozes que o torturam constitui uma semente. Uma semente que não pode morrer!

Por isso Jesus não é enterrado, mas semeado. Um grupo de leigos, majoritária e sintomaticamente formado por mulheres, se encarrega de descer do madeiro o corpo do Crucificado. São as personagens do momento da crise, da tragédia, da escuridão. Os demais, até mesmo os futuros apóstolos e colunas da futura Igreja, haviam se dispersado. Mas aquele punhado de pessoas toma sobre si a tarefa de prestar as últimas homenagens ao falecido. Não é difícil imaginar com que dor e com que tristeza tais pessoas o fazem. Tampouco é difícil imaginar com que carinho e com que delicadeza elas o transportam ao túmulo. Aí o corpo, de acordo com o costume da época, é cuidadosamente perfumado, envolto em lençóis limpos e “semeado”.

A ternura e o esmero que revestem semelhante tarefa parecem acompanhadas de uma profunda intuição: aquele corpo é uma semente e a semente, quando o lavrador lança-a à terra, o faz na esperança de que possa brotar. Inconscientemente, para aqueles poucos fiéis, o retorno à vida parece ser um fruto inevitável frente a uma entrega tão grandiosa. Como se a ressurreição precedesse a própria morte: resultado inequívoco de uma vida que não pode ser apagada nas marcas deixadas na pedra viva da história. Os ventos furiosos da morte não podem desfazer as pegadas de um amor tão belo, tão inteiro e tão profundo. No ato mesmo de “semear” o corpo de Jesus no túmulo está impregnada a intuição de que sua obra e seu gesto final constituem uma semente. Semente que, no solo úmido e aparentemente estéril, irá amadurecer e se levantar. Lançará raízes no terreno da história humana, para depois erguer-se triunfante rumo ao ar livre, ao céu azul, à luz do sol, à Casa do Pai. A ressurreição está em germe, no coração contrito e entristecido daquele pequeno grupo. Talvez para ele o túmulo vazio não tenha representado nenhuma surpresa!

Em outras palavras, na árdua travessia do deserto, quando tudo se faz escuro e parece não haver saída, quem toma nas mãos as rédeas da “história da salvação” é um grupo de leigos, especialmente mulheres. De fato, o espaço compreendido entre a cruz e a ressurreição é tempo de trevas, de desespero. As expectativas com relação ao Reino de Deus se frustram. Tudo parece acabado, o medo tomou o lugar da esperança. Diante dos acontecimentos trágicos, os antigos discípulos sentem-se órfãos, sós e perdidos com a morte do Mestre: enquanto um o havia traído e outro negado, os demais se põem em fuga. Com a exceção do discípulo amado, a debandada contamina a todos.

Emblemático a esse respeito é o episódio dos discípulos de Emaús (Lc 24,13-35). Tristes, impotentes, medrosos e cabisbaixos, retornam para o seu povoado, dando por encerrada a aventura de Jesus de Nazaré. Se o líder terminou suspenso no alto da cruz, o que não poderá ocorrer com eles! O mais seguro é deixar os arredores de Jerusalém e refugiar-se tranquilamente em casa. O mesmo episódio, porém, marca uma reviravolta. Se a ida de Jerusalém a Emaús é o caminho do medo e do fracasso, a volta de Emaús a Jerusalém representa o despertar da chama encoberta pelas cinzas: “não ardia nosso coração quando Ele nos explicava as Escrituras?” Os antigos companheiros de Jesus, que empreendiam uma dolorosa fuga, o reconhecem ao partir o pão. Imediatamente se lhes abre os olhos e o coração para a nova realidade. A brasa ressurge, se reaviva, e ambos regressam com asas nos pés para anunciar a Boa Nova. Todo o episódio representa um parto em que o discípulo desalentado se torna missionário ardoroso, para usar a expressão do Documento de Aparecida. A semente lançada à terra começa a germinar.

TUDO POSSO NAQUELE QUE ME DÁ FORÇA

Pe. Alfredo J. Gonçalves, CS

[www.provinciasaopaulo.com]

A sensação de impotência é certamente um dos sentimentos mais arraigados na natureza do ser humano. São inúmeros os fatores que paralisam nossas ações, embora não nos falte muitas vezes a saúde, a coragem e a firme vontade de acertar. Mas estas fortalezas aparentes acabam sendo minadas pelo vírus do medo ou da angústia. Forças negativas e ocultas parecem se sobrepor às energias positivas. Facilmente então somos tomados pelo pessimismo que nos deixa inermes e inertes.

De fato, quantos medos residem em nossa alma? Quantas vezes a vontade de empreender algo é tolhida por temores vagos e indefinidos? Quantas vezes vemos o caminho aberto à nossa frente, mas os pés se recusam a avançar com receio do imprevisível que pode haver por trás de cada curva? Até mesmo os mais genuínos gestos de solidariedade podem ser mutilados pela falta de confiança, ou por algo mais obscuro e inconfessável que se revolve em nossas entranhas. Inconfessável ou simplesmente incompreensível e indescritível.

Prevalece então a lei da inércia. O desconhecido contém algo de selvagem e a assusta. É melhor seguir as trilhas já batidas. O novo é um desafio perene em nossa vida, especialmente na existência agitada e febril do mundo moderno e urbano. Mas o novo exige energias sempre revigoradas, na medida em que todo terreno inexplorado representa uma ameaça. Mais fácil se orientar pelo firmamento de estrelas conhecidas. O resultado disso costuma ser uma esterilidade ineficaz.

Se é verdade que a inércia traz a calma da água parada, também é certo que a água parada acumula dejetos, detritos e esgoto. O lixo atirado nos lagos tende a apodrecer. Aliás, tudo o que se acumula e tudo o que se detém estacionado, está fadado a se decompor. Quando o sangue deixa de circular no corpo, começa o estado de putrefação. O próprio tempo, quando ocioso e sem novidades, engendra o tédio, que não deixa de ser o tempo podre.

Medos e angústias são sentimentos naturais e não há quem não os carregue. O problema é quando tais sentimentos se engrandecem a ponto de se tornarem mórbidos, doentios, incontroláveis. Toda e qualquer ação fica paralisada por entraves que nos chegam de zonas sombrias. Raramente sabemos ao certo o que amarra nossas pernas e braços ou o que nos prende ao chão. Por que os pés parecem de chumbo e o corpo se recusa a qualquer reação? Ignoramos na maior parte das vezes. E isso, evidentemente, nos torna mais vulneráveis ainda à inércia do deixar-se levar.

O lago tranquilo, de águas calmas e serenas, convida ao sossego e ao sono. Por que despertar? Por que arrumar sarna para se coçar? O mais lógico é deixar tudo como está para ver como fica, diz o ditado popular. Ocorre que no calcanhar dessa tranqüilidade amadurece uma inquestionável sensação de tédio. Por trás das águas em repouso, escondem-se correntes subterrâneas. Maremotos profundos que podem desencadear ondas bravias na vida pessoal, familiar ou social.

Além dessas ondas que emergem do mais oculto de nosso ser, pode ser que o lago seja agitado por alguma pedra atirada sobre a água. São os fatores externos que mexem com a tendência a uma vida fechada a qualquer tempestade. Ventos furiosos rugem em nossas janelas, penetram sorrateiramente por baixo de nossas portas hermeticamente cerradas, revolucionam o interior de nossa vida e de nossa casa. Como os enfrentamos? Estamos preparados para as tormentas imprevistas? Temos ouvidos para os gritos que chegam de fora dos muros e olhos para avaliar a situação que nos rodeia? Claro que é mais cômodo permanecer cegos e surdos às turbulências da história. Mas nem por isso será menor o clamor e a sensação de indiferença.

E aqui se levanta uma pergunta inevitável: como conciliar tamanhos desafios, internos e externos, com a impotência que nos paralisa? Que respostas prontas oferecer às perguntas sempre novas e quase sempre sem remédio imediato? Num mundo movido pela novidade e anestesiado por todo tipo de analgésico, como tirar lições do fracasso e do sofrimento? Como agir se nossos membros parecem mutilados diante de tarefas tão gigantescas? Como superar os limites e fraquezas e projetar-se numa ação libertadora, se nós mesmos nos sentimos prisioneiros do medo? Não é preferível, uma vez mais, trancar-se no mundo próprio, imune a todo tipo de embates? É forte a tentação do isolamento, de encaramujar-se sobre si mesmo.

Nesta altura, introduz-se a frase do título, tirada da Carta de São Paulo aos Filipenses: tudo posso naquele que me dá força. Mas é bom não esquecer que essa confiança do apóstolo é precedida de palavras que expressam vivência e sabedoria profundas: sei viver na miséria e sei viver na abundância; eu aprendi o segredo de viver em toda e qualquer situação, estando farto ou passando fome, tendo de sobra ou sofrendo necessidade (Fl 4,12-13). Na Segunda Carta aos Coríntios, Paulo vai ainda mais longe: por conseguinte, com todo ânimo prefiro gloriar-me das minhas franquezas, para que pouse sobre mim a força de Cristo. Por isto, eu me comprazo nas fraquezas, nos opróbrios, nas necessidades, nas perseguições, nas angústias por causa de Cristo. E conclui com a mesma confiança de sempre: pois quando sou fraco, então é que sou forte (2Cor 12,9-10).

Conclui-se que a ansiedade diante do medo e da impotência tem algo a ver com a falta de confiança e de fé naquele que me dá força. Quando colocamos as expectativas em nossas próprias forças, o fracasso será proporcional a essas mesmas expectativas. Quando achamos que os resultados dependem de nossa eficiência ou eficácia, a falta deles nos deixa prostrados. Se, ao invés, depositamos a esperança em Deus, cedo ou tarde a obra se realiza. O problema é que queremos, ao mesmo tempo, semear e colher. Vale aqui a lição do lavrador: prepara o solo, joga a semente, cuida da planta, mas sabe que não pode realizar a parte do tempo, ou de Deus. Se colocarmos sobre os próprios ombros a tarefa nossa e a do Espírito Santo, o peso estará acima de nossas forças, e o preço será a sensação de impotência acompanhada de uma ansiedade mórbida. Centralizamos a ação sobre nós mesmos e não iremos dar conta dos entraves que a história nos reserva.

Daí novamente o alerta de Paulo: trazemos, porém, este tesouro em vasos de argila, para que esse incomparável poder seja de Deus e não nosso; somos atribulados por todos os lados, mas não esmagados; perseguidos, mas não abandonados; prostrados por terra, mas não aniquilados (2Cor 4,7-9). O apóstolo dos gentios conhecia bem o provérbio popular citado pelo Quarto Evangelho: um é o que semeia, outro o que ceifa (Jo, 4,37). Mais explicitamente diz o grande apóstolo: eu plantei, Apolo regou, mas era Deus quem fazia crescer (1Cor 3,6). Em tempos de crise, de dúvidas, de incertezas, de deserto, de escuridão ou de encruzilhada, o importante é semear, deixando a colheita nas mãos de Deus. Se teimarmos em semear e colher, a impaciência histórica frustra todas as expectativas.

Semelhante reflexão não diminui nossa responsabilidade, mas nos torna mais serenos diante do amanhã. Disse alguém: trabalhar como se tudo dependesse de mim, rezar como se tudo dependesse de Deus. Como o camponês, fazemos a nossa parte e confiamos a colheita a outros. O importante é dar-se conta que todo e qualquer gesto solidário é fator de mudança na história: um olhar amigo, um sorriso, um toque, uma palavra, uma visita, um abraço, uma idéia, um movimento, uma organização nada disso se perde pelo caminho. Tudo acumula forças para o salto qualitativo da transformação social. As mudanças, como a flor, a espiga e o edifício, se levantam do chão. Amadurecem lentamente no escuro úmido da terra. Antes de buscar o sol, o ar livre e o céu, mergulham as raízes no solo de onde extraem os nutrientes necessários. Mudanças não são feitas de espetáculos, e sim de gestos simples e silenciosos que fecundam o chão aparentemente estéril.

E assim quem sabe, ao fim da vida, possamos repetir as palavras de Paulo a Timóteo, sem falsa modéstia e sem orgulho: Quanto a mim, já fui oferecido em libação, e chegou o tempo de minha partida. Combati o bom combate, terminei a minha carreira, guardei a fé. Desde já me está reservada a coroa da justiça, que me dará o Senhor, justo juiz, naquele dia; e não somente a mim, mas a todos os que tiverem esperado com amor a sua aparição (2Tm 4,6-8).

SIMPLESMENTE JOSÉ

Pe. Alfredo J. Gonçalves, CS

José é uma das figuras mais silenciosas nas narrativas evangélicas. Ao mesmo tempo, porém, aparece sempre na hora certo e no lugar certo. Quando se trata de proteger a família mãe e filho lá está ele. Verdade que conta com os anjos, mensageiros de Deus, que o alertam sobre as maquinações dos filhos das trevas. Mas, alertado dos riscos que correm Jesus e Maria, põe-se logo em marcha, seja fugindo para o Egito, seja de lá retornando. Exerce certo protagonismo na infância de Jesus, porém, não há registro de sua presença na vida adulta do profeta itinerante. Pouco ou nada se sabe de seu destino. É lícito supor que também ele estaria ao pé da cruz, na hora trágica da morte de Jesus!...

Tudo indica que se trata de um caráter discreto, homem de poucas palavras e de guardar segredos. Podemos também ver nele um profissional de experiência, o carpinteiro de Nazaré, trabalhador sério e respeitado. Sinais de uma sabedoria inata que, em lugar de ações intempestivas frente aos imprevistos da vida (como a gravidez de Maria, por exemplo), prefere o silêncio, a escuta e a espera. Aqui também temos a intervenção dos mensageiros de Deus, como atores principais, mas é José que toma as providências práticas e necessárias. Os seres alados necessitam dos pés e das mãos de José para garantir a segurança da Sagrada Família.

Não obstante, o humilde carpinteiro permanece como uma espécie de ator de bastidores. Raramente aparece em cena. Hoje diríamos que não parece gostar de holofotes, câmeras e microfones. Como se não se sentisse à vontade no palco, em evidência diante dos espectadores. Menos à vontade ainda no cenário dos acontecimentos que, mais tarde, irão se desenrolar com seu filho adotivo. Se de Jesus se diz que passou pela vida fazendo bem, de José teremos poucas notícias. Não faz barulho, como quem caminha de pés descalços, silencioso e oculto.

Os estudiosos da Bíblia, particularmente do Novo Testamento, nos alertam que não podemos olhar para essas narrativas sobre a infância de Jesus como fatos históricos. Constituem antes acomodações pós-pascais ao nascimento do Filho de Deus, isto é, grandioso, misterioso, milagroso. Mas isso não invalida a reflexão sobre a presença simultaneamente discreta e oportuna de José nesses relatos. Fictícias ou não, os autores dessas páginas apresentam a figura do pai adotivo de Jesus como alguém com um papel secundário, embora relevante.

Partindo do pano de fundo dos parágrafos anteriores, surpreende o número de pessoas que, no mundo inteiro e ao longo da história, foram batizadas com o nome de José. Desnecessário deter-se em pesquisas para constatar que esse é o nome mais recorrente em praticamente todos os povos e culturas do mundo ocidental. No judaísmo, no cristianismo católico ou protestante e nos movimentos religiosos derivados, José se impõe como nome quase obrigatório de um dos filhos de não poucas famílias. Mesmo entre os que recebem outro nome de pia, muitos tratam de intercalar o José como intermediário entre nome e sobrenome.

A surpresa é ainda maior se nos detemos sobre determinadas manifestações da devoção popular a São José. É sem dúvida uma das mais disseminadas no universo católico. No nordeste brasileiro, por exemplo, o dia do santo, a 19 de março, constitui, ao mesmo tempo, um marco para a carência ou a abundância de chuvas e, consequentemente, um marco para o novo plantio. De acordo com uma crença popular bastante generalizada, se a estiagem se prolongar além do São José, o ano tende a ser pobre em feijão, milho, batata, mandioca, inhame, etc. Por outro lado, não são poucos os religiosos e os sacerdotes que, respectivamente, fazem sua profissão perpétua, ou se ordenam presbíteros, exatamente nesse mesmo dia.

Como explicar essa dupla homenagem a São José? Implícita ou explicitamente, é fácil identificar-se com o José dos Evangelhos. Na sociedade do espetáculo (Guy Debord) em que vivemos e nos movemos, são poucas as estrelas e incontáveis os planetas. Algumas pessoas se destacam e brilham com luz própria, mas a imensa maioria apenas reflete o brilho dos astros mais eminentes. O culto ao corpo e à celebridade se difunde juntamente com a exacerbação do subjetivismo e do individualismo. Porém, raros são os senhores Fulano, Sicrano ou Beltrano, e mais raras ainda as beldades, princesas. A tirania do prazer ou o império do efêmero (para usar expressões de Jean-Claude Guillebaud e Gilles Lipovetsky), só é possível graças a dezenas, centenas ou milhares de coadjuvantes. Estes são os Josés, inúmeros e desconhecidos, com o sobrenome de Silva, Souza, Santos, Oliveira, Gonçalves, e assim por diante.

No entanto, é preciso estar atento às pérolas ocultas por trás das mãos calejadas, dos rostos impenetráveis e das almas rudes desses Josés. Mais do que apoiar-se no sucesso momentâneo e fugaz, eles seguem com os pés firmes no cotidiano, ainda que cheio de surpresas e adversidades. Mais do que colher as luzes de espetáculos fulgurantes e efêmeros, eles procuram lançar sementes no solo úmido e escuro da terra. Mais do que explodir rojões que sobem e iluminam os céus, mas com a mesma rapidez descem e viram cinzas, eles acreditam que as mudanças se erguem do chão, através de pequenos gestos de solidariedade.

Há, contudo, um segredo ainda mais misterioso, um tesouro escondido, ao qual esses Josés costumam ter acesso imediato. Sabem pela experiência que a felicidade duradoura não está no sucesso, no dinheiro, na conta bancária, nos privilégios, nos títulos, no patrimônio acumulado mas numa prática diária e silenciosa do bem. Surfar sobre a onda dos sucessos equivale a surfar nas depressões dos fracassos. Uns são direta e alternadamente proporcionais aos outros. Expectativas inflacionadas, tal como os balões de ar, murcham com facilidade e geram frustrações igualmente infladas. Todo domingo de festa, regado a comida, bebida e embriaguez, é seguido de uma segunda-feira de ressaca. Se a cruz aponta para a ressurreição, esta supõe aquela.

Os Josés evitam os saltos de lebre. Preferem o passo lento e firme da tartaruga ou do jumento, nosso irmão, diria o nordestino. Depositam sua confiança não nos pulos em falso, mas num caminhar laborioso, regular e persistente. Sabem como extrair alegrias miúdas de uma palavra, de um olhar, de um gesto, de uma visita, de um sorriso, de um beijo, de um abraço, de um toque... E sabem que é nessas mínimas coisas que reside uma felicidade menos volátil e mais sólida. Aprendem a tirar água de pedras, a colher flores no deserto estéril, a acender uma vela no meio da escuridão. Raramente se deixam levar pela aparência de grandiosidade, desconfiam dos passos largos. Mais ainda: desconfiam da própria energia, colocando-se nas mãos de uma força que desconhecem, mas em que crêem.

Normalmente não sobem muito alto, mas tampouco ficam expostos a quedas bruscas. Mais facilmente descem ao coração da terra e das coisas. Suas palavras costumam ser poucas e parcimoniosas, mas revestidas de uma sabedoria simples e profunda. Os ditos populares, ricos e concentrados, nascem, crescem e cruzam as encruzilhadas do mundo com a persistência dos Josés. São diamantes lapidados com sua experiência oculta e silenciosa. A própria palavra José, concentrada e valorizada como moeda preciosa, percorre as famílias, os povos e as culturas.

José não deixa de ser, também, a cara da migração. Esta, de fato, põe em marcha uma grande quantidade de Josés. O próprio pai adotivo de Jesus, esposo de Maria, é testemunha disso. Um novo olhar aos Evangelhos basta para dar-se conta de como ele, primeiro, por causa do recenseamento, sobe de Nazaré a Belém, lugar em que se completam os dias de Maria ela dá á luz um numa manjedoura, pois não havia lugar para eles; depois de nascido o menino, empreende a fuga para o Egito, protegendo o recém-nascido da fúria e perseguição de Herodes; dessa terra estrangeira, retorna à própria pátria, quando a tormenta já tinha se acalmado; por fim, ao longo da vida, quantas vezes terá se deslocado por causa desse Filho rebelde, o qual insistia que o seu Reino não era deste mundo!

Não é essa a trajetória de inúmeros migrantes? De tribulação em tribulação, de fuga em fuga, de sonho em sonho, de busca em busca... Sempre perseguindo o futuro, e este como que sempre lhes escapando entre os dedos. Josés, milhões de pessoas sem terra nem lugar, sem rumo nem pátria... Josés a caminho! Josés que, por sê-lo, vivem inquietos e irrequietos. Rompem obstáculos e fronteiras, abrindo com os ombros curvados os horizontes de um novo amanhã. É nome comum de um povo acostumado à estrada. Não costuma figurar entre as famílias milionárias, nobres e aristocráticas, assentadas solidamente sobre suas fortalezas e suas jazidas de ouro e prata. Josés são pessoas pouco vinculadas a castelos e fazendas, normalmente habitam tendas. Conhecendo de perto a transitoriedade e a provisoriedade dos bens terrenos, podem desenvolver uma ambivalência diante da riqueza: ou se agarram ao pouco que possuem, lutando com unhas e dentes para ter mais, ou amadurecem um despojamento que os torna mais leves e livres. Neste último caso, aprendem a lição de depurar a mala e a alma, para caminhar com um fardo menos carregado de coisas supérfluas.

Por isso, ao contrário daqueles que nascem em berço de ouro e a ele se apegam morbidamente, os Josés, e entre estes os migrantes, tendem a uma maior abertura quanto ao futuro. Estão mais preparados para as surpresas da história. Especialmente em momentos de crise e tormenta, enquanto os que moram em castelos e fortalezas correm a se abrigar no berço dourado e saudoso da infância, os Josés costumam ser impelidos para a fronteira. Os primeiros, com o coração preso aos seus tesouros acumulados, lutam para mantê-los a todo o custo; os segundos, encontram-se mais preparados para enfrentar as pedras e espinhos que a existência apresenta. Tenderão a rasgar veredas novas, a se aventurarem, pois nada têm a perder. Das duas uma: ou são tomados pelo medo e a angústia da miséria já experimentada na carne e na alma, agarrando-se mesquinhamente a qualquer migalha; ou se lançam intrépidos à luta por algo diferente. Neste caso, a coragem lhes é praticamente inata. Mas com muita raridade terão seu nome gravado nos jornais. Em geral não são mártires abatidos a tiro, de nome no calendário, de folha na parede. Vivem, antes, um martírio de gota a gota, passo a passo, miúdo e diário, onde uma travessia dura e teimosa substitui as ações vistosas, sensacionais e espetaculares.

sexta-feira, 26 de novembro de 2010

DECLARAÇÃO DO III ENCONTRO CONTINENTAL DO POVO GUARANI

ASSUNÇÃO, PARAGUAI,

15 a 19 de Novembro de 2010

Nós, representantes de diferentes organizações indígenas da Nação Guarani na Argentina, Bolívia, Brasil e Paraguai, nos reunimos na cidade de Assunção, Paraguai durante o III Encontro Continental do Povo Guarani dando continuidade ao I Encontro Continental realizado em São Gabriel /RS Brasil, em 2006 e do II Encontro Continental que aconteceu na cidade de Porto Alegre/RS Brasil em 2007. Hoje, sob o tema Terra-Território, Autonomia e Governabilidade, animando permanentemente nossos corações pelas palavras sábias de nossos anciões e anciãs, buscando compreender a partir das coincidências em longos debates e profundas reflexões realizadas sempre de acordo com os princípios de respeito e consensos, tradicionais em nossas culturas, queremos fazer chegar ao mais profundo do espírito das autoridades, nacionais e internacionais e a todos os cidadãos dos lugares que habitam nosso pensamento nestas palavras.

CONSIDERANDO:

- Que a Nação Guarani sempre teve um espaço territorial próprio o “Yvy maraê’y” ou Terra Sem Mal que extrapola fronteiras dos Estados Nacionais.

- Que desde a cosmo visão da Nação Guarani, parte de nossas milenárias culturas: o fogo, o ar, a terra e a água, constituem uma unidade e são elementos vitais para a vida; a Terra Sagrada é a vida para nossos povos.

- Que a Nação Guarani a partir da sua cosmo visão sempre buscou evitar confrontações com os que se apropriaram de seu Território, de forma violenta na maioria das vezes.

- Que desde a demarcação das fronteiras nacionais a Nação Guarani ficou fragmentada e dividida geopoliticamente em etnias, comunidades, aldeias, famílias, condição esta que enfraqueceu significativamente seu projeto espiritual, cultural e linguístico como Nação.

- As transnacionais e/ou multinacionais, com o apoio dos diferentes governos no poder não respeitam os direitos consuetudinários e coletivos da Nação Guarani, destruindo Territórios, expulsando comunidades.

- Os diversos governos não atendem as demandas da Nação Guarani apesar da existência de normas nacionais e internacionais que protegem e promovem os direitos dos povos indígenas; como o Convenção 169 da OIT, a Declaração das Nações Unidas e as leis nacionais, Constituições e Leis dos Estados.

- São exemplos do afirmado acima que o Poder Judiciários brasileiro autoriza despejos de comunidades da Nação Guarani de seus Territórios, contra as leis que os protegem.

- O não cumprimento, pelo governo brasileiro, do art. 231 da sua Constituição Federal, sobre a demarcação das Terras; da mesma forma o governo argentino não cumpre a lei 26.160 “de Emergencia de la tierra comunitaria indígena” para a demarcação territorial.

- Na Argentina se pretende vender o Lote 08 da reserva da Biosfera Yaboti, declarada pela UNESCO em 1992, a uma Fundação com fundos europeus, quando ali vivem ancestralmente duas comunidades da Nação Guarani

- A Nação Guarani no Paraguai sofre uma perda constante de seu Território ancestral fruto de uma carência de políticas efetivas orientadas em defesa do mesmo

- Existem inúmeras comunidades que vivem em condição subumanas, sem as mínimas condições de segurança física, de saúde e alimentação.

- Na Bolívia a demanda de Território pela Nação Guarani ainda não resultou em total titulação das Terras que ocupam.

- Que a destruição massiva e constante dos recursos naturais, por parte das empresas transnacionais, está deteriorando indiscriminadamente os bens florestais no Território Guarani na Argentina, Bolívia, Brasil e Paraguai, gerando danos irreparáveis, fezendo-os sofrer os efeitos das mudanças climáticas, das quais não são os responsáveis.

- Que a construção das Hidrelétricas Binacionais (Itaipu e Yaceretá) no Território Guarani, sem consulta a nossa Nação, produziu não apenas irreparáveis danos ambientais como também violação dos direitos territoriais, culturais e religiosos da Nação Guarani.

EXIGIMOS:

- Dos governos da Argentina, Bolívia, Brasil e Paraguai o reconhecimento como Nação Guarani e sua condição de Transterritoriais e Transfronteiriços e que por esta razão devem ter os mesmos direitos de saúde, educação e trabalho nos quatro países.

- Dos governos da Argentina, Bolívia, Brasil e Paraguai dêem reconhecimento constitucional a Declaração Universal dos Direitos dos Povos Indígenas e a Convenção 169 da OIT.

- Que deixem de entregar às empresas transnacionais, multinacionais e nacionais territórios da Nação Guarani para sua exploração e devastação, transgredindo os direitos coletivos que os protegem.

- Do governo da província de Misiones – Argentina – a não autorização da venda do Lote 08 – território Guarani – na reserva da biosfera Yaboti.

- A demarcação imediata de todas as Terras e Territórios Guarani. Cumprimento da lei 26.160 da Argentina; e que no Brasil o Supremo Tribunal Federal julgue imediatamente todos os processos em tramitação, relativos a demarcação das Terras no estado do Mato Grosso do Sul, respeitando o artigo 231 da Constituição Federal de 1988.

- A não instalação de novos mega-represas comprometendo territórios Guarani e que tanto as Binacionais Itaipu e Yaceretá reconheçam o dano causado às comunidades, restituindo seus Territórios.

- Do governo Boliviano o cumprimento das exigências de maiores extensões de Terra à Nação Guarani.

- Que os espaços políticos internacional impeçam a criminalização das exigências da Nação Guarani.

- Punição aos que cometeram crimes que afetaram indígenas na luta pelos seus direitos.

- Que sejam respeitados aos avanços conquistados pela Nação Guarani nos espaços políticos nacionais e internacionais.

- Que as empresas transnacionais respeitem as normas ambientais, que evitem a destruição massiva e constante dos recursos naturais por parte das mesmas.

- Que todos os países, sobre os quais incide o Território da Nação Guarani compreendam e tomem consciência que os direitos sobre a Terra e o Território são inalienáveis e imprescritíveis.

RESOLVEMOS:

PRIMEIRO – A Terra e o Território são direitos inalienáveis da Nação Guarani, são a vida de nossas cosmo visões; condição que nos permite ser livres e autônomos “IYAMBAE”.

SEGUNDO – Consolidar nossa organização em cada um dos países com presença Guarani a fim de efetivar nossas demandas como Nação Guarani.

TERCEIRO – Constituiu-se um Conselho Continental da Nação Guarani para a articulação com Argentina, Bolívia, Brasil e Paraguai em suas demandas reivindicatórias, e com ele fortalecer nosso desenvolvimento econômico, social e político.

QUARTO – Participar em todas as instancias democráticas do Argentina, Brasil e Paraguai segundo nossos usos e costumes como Nação Guarani conseguindo desta maneira fazer chegar as nossas demandas as máximas instâncias de decisão política.

QUINTO – Exortamos a todos a somarem-se a essa luta, aqueles que fazem parte do pensamento e sentimento da Nação Guarani – organizamos nacionais e internacionais, ONGs, Movimentos Sociais e outros – para apoiar com propostas e projetos orientados a partir da reivindicação dos direitos consuetudinários e etno-culturais dos Guarani.

SEXTO – Nos declaramos em permanente resistência ante as violações e subjugações ocorridas em toda a extensão de nosso território como Nação Guarani.

SETIMO – Nos unimos na defesa de nossa mãe terra ante a contaminação progressiva do ambiente provocado pelas atividades de exploração do subsolo e hidrelétricas que vulneram os direitos à culta e participação da Nação Guarani.

É o que pensamos, sentimos e dizemos sobre nossos direitos coletivos e as obrigações que os países que hoje ocupam nosso território tem com a Nação Guarani, na esperança de poder conviver na harmonia e liberdade como foi o pensamento de nossos heróis ancestrais.


Território Guarani – Assunção, 19 de Novembro de 2010.

Trabalhador rural é assassinado na Paraíba

A violência do latifúndio ceifou mais uma vida no Estado da Paraíba. O Trabalhador rural Jorge Aleixo da Cunha, 45 anos, foi assassinado na última sexta-feira, dia 12, nas proximidades da Fazenda Poço, onde era acampado, no município de Barra de São Miguel, PB. O agricultor voltava pra casa quando foi surpreendido por duas pessoas em uma moto que o alvejaram. Segundo a perícia, o crime foi premeditado, pois não havia sinais de luta corporal ou roubo.




Apartir da interferência da Ouvidoria Agrária do INCRA, da Comissão Pastoral da Terra e de advogados que tem acompanhado o caso, e ainda segundo o delegado de Santa Cruz do Capibaribe que esteve no local do crime, as evidências é de que o fato esteja ligado diretamente com a questão da luta pela terra da Fazenda Poço.




A fazenda era um dos seis imóveis do proprietário pernambucano Agrimar Leite. Abandonado há anos e por deixar muitas dividas na região, a Fazenda Poço foi repassada para Ademar Farias no inicio do ano passado, como pagamento de uma divída. A negociação não levou em conta as 32 famílias que já estavam acampados e trabalhando por lá desde 2005. Ademar Farias entrou com um pedido de desocupação e antes que a justiça ouvisse as partes o proprietário deu um prazo para que as famílias deixassem o local, mas os agricultores resistiram e o despejo foi suspenso. Desde então, a comunidade vem denunciado os casos de ameaças de expulsão e uso indevido da força policial.


CPT NE II- Equipe de Campina Grande


Outras informações:

Comissão Pastoral da Terra - Nordeste II

Fone: (81) 3231.4445
Aconteceu no dia 18 de novembro um seminário sobre Mudanças Climáticas e emergências socioambientais na Câmara dos Deputados. Foi promovido pela Comissão de Direitos Humanos e Minorias, organizado por um GT que trata essa temática. O Fórum faz parte deste GT, juntamente com entidades como CNBB e a Cáritas Brasileira. Apesar de algumas dificuldades e de pouca presença de deputados da Comissão, o evento foi positivo. Contou com a presença de entidades da sociedade civil que atuam junto a populações atingidas por enchentes e outros eventos climáticos extremos, certamente causados pelo aquecimento do planeta Terra.

DOCUMENTO DO SEMINÁRIO “EMERGÊNCIAS SOCIOAMBIENTAIS E DIREITOS HUMANOS”

COMISSÃO DE DIREITOS HUMANOS E MINORIAS – CÂMARA DOS DEPUTADOS

Brasília, 18 de dezembro de 2010.

Com presença de grande número de representantes de entidades envolvidas em atividades junto a pessoas e famílias atingidas por desastres socioambientais, o Seminário foi aberto pela presidente da Comissão, deputada Iriny Lopes, destacando de que formas a temática se liga com os direitos de todas as pessoas e estimulando a participação de todos na elaboração de propostas que tornem mais efetiva a política pública de Defesa Civil.

A partir dos debates, mediados por dois painéis, um sobre Emergências, Meio Ambiente e Direitos Humanos e outro sobre Políticas de Prevenção de Desastres e que contaram com exposições de estudiosos e com depoimentos de pessoas diretamente envolvidos em áreas de desastre, merecem destaque as seguintes propostas de políticas e de pistas concretas de ação:

- urgente monitoramento das ações destinadas ao atendimento e à reparação/restauração das condições de vida das populações atingidas que ainda aguardam soluções e garantias de prevenção de novas ocorrências;

- que o Governo se aproprie das propostas da Conferência Nacional de Defesa Civil na definição e implementação de sua política;

- que seja criada a Secretaria de Defesa Civil ligada à Presidência da República (que seja um Gabinete de Gestão de Risco);

- que se busquem sempre as causas estruturais das mudanças climáticas, que tornam extremos os eventos que provocam emergências socioambientais, incluindo seu enfrentamento nas ações preventivas, repensando o modelo de desenvolvimento em relação aos impactos socioambientais;

- que seja feita avaliação e mapeamento de riscos em projetos do PAC2 – tendo presente que podem agravar as mudanças climáticas;

- que seja promovida formação permanente da Defesa Civil para a criação de uma cultura de prevenção;

- que seja garantida formação permanente de equipes da sociedade civil para atuação junto à defesa civil na prevenção de desastres socioambientais e nas situações emergenciais, seja de forma presencial e/ou à distância;

- criação de Conselhos de Defesa Civil, paritários, consultivos e deliberativos, nas esferas municipais, estaduais e no âmbito federal, que atuem especialmente em prevenção de emergências e contem com a participação da sociedade civil no gerenciamento de fundos da defesa civil;

- que seja introduzida temática da prevenção de desastres socioambientais no Conselho das Cidades;

- que se garanta a participação das organizações que representam e apóiam as comunidades atingidas;

- que, entre as representações, estejam incluídas as organizações/movimentos/associações que representam as mulheres, movimentos urbanos populares, comunidades quilombolas e demais comunidades tradicionais;

- que sejam adotadas medidas adequadas para a garantia de reparação e retomada da produção agrícola e outras atividades produtivas;

- que se adotem as providências necessárias para a prevenção de novas situações nas localidades cuja população aguarda soluções efetivas;

- fiscalização efetiva e ampla do uso dos recursos destinados ao atendimento às vítimas e reconstrução das condições de vida sem novos riscos, e que esta fiscalização inclua a escuta e participação da população atingida, seus representantes e entidades sociais que os apóiam; e que sejam divulgadas as informações de fiscalização;

- que sejam revistas e melhoradas as instâncias de articulação em todos os níveis, definindo a competência de cada setor/órgão público, superando a prática de ações paralelas e isoladas, o que as tornam menos dinâmicas e causam perda de recursos;

- que seja garantido o direito e acesso a informações corretas, confiáveis e suficientes para tomadas de decisão em situações de emergências - análise de risco e planos de contingência; que haja a acesso ao AVADAN – Avaliação de Danos – , e que, para isso, que haja divulgação das informações deste documento;

- que os gestores públicos sejam obrigados a fornecer informações sobre os recursos gastos, prestando contas;

- que após a constatação do diagnóstico de área de risco, sejam desenvolvidas ações emergenciais e de divulgação, visando assegurar a dignidade humana e a prevenção de desastres;

- responsabilizar os causadores dos desastres ambientais. Que sejam identificados e assumam os custos financeiros da reparação;

- responsabilização do poder público pelas novas áreas de risco identificadas, garantindo o direito de indenização do morador;

- instigar processos de cobrança frente aos casos de Decreto de Calamidade Pública;

- que as Secretarias de Assistência Social dos municípios possam garantir atendimento psicossocial para as vitimas pós-tragédias;

- que seja garantida assistência à saúde, em sua dimensão física, psicológica e emocional a todas as pessoas atingidas durante o tempo que for necessário;

- reconhecimento de iniciativas exitosas já existentes no território nacional no âmbito da prevenção e ações pós-enchentes;

- realização constante de campanhas de apoio a vítimas de catástrofes;

- aumentar o número e a qualidade de abrigos (com segurança, privacidade, estrutura condizente) nas áreas que são consideradas de risco, evitando situações humilhantes e degradantes experimentadas em áreas de emergência socioambiental;

- garantir que os investimentos realizados em recuperação de infra-estrutura afetada por desastres, particularmente em habitação, sejam de boa qualidade e adequados para as necessidades da população afetada;

- verificar as reais condições de construção das empresas que ganham licitações para reconstrução de infra-estruturas afetadas por desastres.

Os participantes do Seminário apóiam as reivindicações apresentadas de forma direta por representantes de comunidades que ainda sofrem consequência de enchentes que as atingiram, instando as instâncias do Estado responsáveis pela garantia dos seus direitos que superem a prática das promessas não cumpridas e sejam eficazes em suas ações, sendo transparentes em relação ao uso dos recursos públicos e das doações solidárias da sociedade civil. Os direitos básicos das pessoas como os da vida, da saúde e da habitação, devem ter garantia imediata, e exigem prioridade absoluta na destinação de recursos públicos e na implementação das ações necessárias.

Na perspectiva da construção de uma sociedade efetivamente assentada na justiça e na solidariedade, o Seminário convoca todas as instâncias publicas a somarem forças com a sociedade civil organizada na definição de uma efetiva e eficaz política de Defesa Civil. E que, para isso, sejam organizados espaços de debate regionais sobre a temática, apostando no avanço e amadurecimento do processo aberto pela Conferência Nacional sobre Defesa Civil.

François Houtart: Continuam as violações dos direitos humanos e os EUA são cúmplices dessa situação

Giorgio Trucchi* *

Adital -
Tradução: ADITAL

Entrevista com François Houtart

Honduras continua debatendo-se em meio a uma grave crise econômica, política e social originada pelo golpe de Estado que derrocou ao presidente Manuel Zelaya, em junho de 2009. Apesar da imagem de "país pacificado e normalizado que o atual governo de Porfirio Lobo tenta projetar internacionalmente, as organizações que integram a Plataforma de Direitos Humanos de Honduras continuam denunciando a constante violação dos direitos humanos e instalaramuma "Comissão da Verdade" para esclarecer os abusos cometidos a partir do golpe.


François Houtart, sacerdote, sociólogo, principal referência do Fórum Social Mundial e mebro da Comissão da Verdade, conversou com Opera Mundi e analisou a delicada situação vivida em Honduras. O sociólogo belga está convencido de que uma consolidação do projeto refundacional da FNRP (Frente Nacional de Resistência Popular) poderia implicar em um aumento da repressão e de que o governo dos Estados Unidos não está alheio ao que acontece no país. Segundo ele, pelo contrário, os Estados Unidos continuam impulsionando seu projeto para reposicionar-se na região latinoamericana e o golpe de Estado em Honduras foi uma peça importante dessa estratégia.

- Passaram-se 17 meses desde o golpe de Estado em Honduras. Como o senhor vê a situação dos direitos humanos no país?

- Não melhorou. Ao contrário, a delicada situação política e social em que o país vive tem contribuído para o panorama piorar. Sabemos que o golpe foi levado a cabo pela oligarquia tradicional, que não aceita procesos de mudanças no país e não quer perder seus privilégios. Agora que detêm novamente o poder e o controle da política e da economia, não permitirão avanços sociais. Todos os que tentam lutar para conseguir mais direitos para o povo são vistos como inimigos a ser eliminados. Todavia, estamos em uma situação muito tensa.

- Que importância terá a Comissão da Verdade em um contexto tão complicado?

- Os objetivos da Comissão da Verdade são investigar as violações aos direitos humanos a partir do golpe; investigar a história do golpe, suas consequências e as pessoas que estiveram por trás desse acontecimento. E, finalmente, investigar o contexto geral do país; porque esses fatos não podem ser entendidos sem que se conheça a estrutura social, política e econômica de Honduras. Tudo isso vai esclarecer o que, de verdade, aconteceu em Honduras e assinalar os verdadeiros responsáveis.


- Recentemente, o porta-coz do Departamento de Estado dos EUA, Philip J. Crowley, declarou que "o tema dos direitos humanos não é condição prévia para o retorno de Honduras a OEA" (Organização dos Estados Americanos). Que leitura pdoemos fazer dessa declaração?

- É parte da lógica política dos EUA. Condenaram o golpe, não pela essência de seu significado -deter os processos de mudança que aconteciam no país-, mas, pelo método utilizado. Agora, querem legitimar o atual governo para continuar com suas políticas e aprentar uma normalização na região.


- Que papel o golpe em Honduras representou para a região latinoamericana?

- Honduras era o elemento mais frágil do conjunto de países que impulsionavam ensaios de transformação na América Latina. É uma advertência para todo o continente e já verificamos isso em outros países. Por não nos alinharmos com as políticas norteamericanas e das oligarquias locais, vamos sofrer intervenções , já não por parte dos militares, como no passado, mas por meio de novos métodos e instrumentos.

- Há uma forte discussão sobre se o presidente Obama teve ou não algo a ver com o golpe em Honduras. Qual é sua opinião?


- Quando observamos a política exterior de Obama, não restam dúvidas de que o presidente norteamericano continua com a mesma política de sempre que tem caracterizado os Estados Unidos. Pode haver um estilo diferente, porém, a substância não mudou e Honduras é um claro exemplo disso.

- Também se diz que os Estados Unidos já têm muitos problemas no Oriente Médio e que, nesse momento, a América Latina não é sua prioridade...

- O continente latinoamericano sempre terá uma grande importância para os Estados Unidos, que necessita manter o controle. É evidente que os processos de unidade latinoamericana promovidos no continente são motivos de preocupação para eles. Também se preocupam com o início de uma lógica de organizar e entender a economia e a política que contradiz o sistema capitalista e a economia de mercado. Os Estados Unidos veem isso como um perigo em largo prazo para a lógica do sistema do qual é parte essencial e que considera fundamental para a continuidade de seus interesses no mundo.

- O senhor acredita que, no caso de Honduras, o que mais preocupa aos Estados Unidos era o início de umas mudança dessa lógica de sistema?

- Por um lado é justamente isso; por outro, temiam a adesão de Honduras a Alba. Isso poderia ser uma tentação para outros países da região centroamericana e decidiram dar um basta nessa situação.

- O processo de conformação da FNRP em Honduras é uma novidade para a região. O senhor acredita que a frente poderá alcançar o objetivo de refundar o país?

- Trata-se de uma resistência organizada pelos movimentos de base e isso é algo muito inovador. Creio que possa alcançar seus objetivos sempre e quando mantenha a unidade de todos os setores que a conformam e, cedo ou tarde, tenha uma tradução no campo político para promover reformas fundamentais do Estado.


- Maior fortaleza da FNRP poderia implicar em mais repressão?


- Sem dúvidas. O governo atual crê que as pessoas vão se cansar e que a resistência irá debilitando-se paulatinamente, até desaparecer. Sem isso, como creio, não acontece, poderá configurar-se um cenário de violência muito preocupante.


- Nesse contexto, uma Comissão da Verdade será algo extremamente importante...


- Os trabalhos já começaram e todos os integrantes já estamos em Honduras para recolher depoimentos de testemunhas e analisar os avanços do processo.


* Opera Mundi

As 10 estratégias de manipulação midiática

Noam Chomsky *

Adital -
Tradução: ADITAL
O linguista Noam Chomsky elaborou a lista das "10 Estratégias de Manipulação"através da mídia.

1. A estratégia da distração. O elemento primordial do controle social é a estratégia da distração, que consiste em desviar a atenção do público dos problemas importantes e das mudanças decididas pelas elites políticas e econômicas, mediante a técnica do dilúvio ou inundação de contínuas distrações e de informações insignificantes. A estratégia da distração é igualmente indispensável para impedir que o público se interesse pelos conhecimentos essenciais, na área da ciência, da economia, da psicologia, da neurobiologia e da cibernética. "Manter a atenção do público distraída, longe dos verdadeiros problemas sociais, cativada por temas sem importância real. Manter o público ocupado, ocupado, ocupado; sem nenhum tempo para pensar; de volta à granja com outros animais (citação do texto "Armas silenciosas para guerras tranquilas").


2. Criar problemas e depois oferecer soluções. Esse método também é denominado "problema-ração-solução". Cria-se um problema, uma "situação" previsa para causar certa reação no público a fim de que este seja o mandante das medidas que desejam sejam aceitas. Por exemplo: deixar que se desenvolva ou intensifique a violência urbana, ou organizar atentados sangrentos, a fim de que o público seja o demandante de leis de segurança e políticas em prejuízo da liberdade. Ou também: criar uma crise econômica para forçar a aceitação, como um mal menor, do retrocesso dos direitos sociais e o desmantelamento dos serviços púbicos.

3. A estratégia da gradualidade. Para fazer com que uma medida inaceitável passe a ser aceita basta aplicá-la gradualmente, a conta-gotas, por anos consecutivos. Dessa maneira, condições socioeconômicas radicalmente novas (neoliberalismo) foram impostas durante as décadas de 1980 e 1990. Estado mínimo, privatizações, precariedade, flexibilidade, desemprego em massa, salários que já não asseguram ingressos decentes, tantas mudanças que teriam provocado uma revolução se tivessem sido aplicadas de uma só vez.

4. A estratégia de diferir. Outra maneira de forçar a aceitação de uma decisão impopular é a de apresentá-la como "dolorosa e desnecessária", obtendo a aceitação pública, no momento, para uma aplicação futura. É mais fácil aceitar um sacrifício futuro do que um sacrificio imediato. Primeiro, porque o esforço não é empregado imediatamente. Logo, porque o público, a massa tem sempre a tendência a esperar ingenuamente que "tudo irá melhorar amanhã" e que o sacrifício exigido poderá ser evitado. Isso dá mais tempo ao público para acostumar-se à ideia de mudança e de aceitá-la com resignação quando chegue o momento.

5. Dirigir-se ao público como se fossem menores de idade. A maior parte da publicidade dirigida ao grande público utiliza discursos, argumentos, personagens e entonação particularmente infantis, muitas vezes próximos à debilidade mental, como se o espectador fosse uma pessoa menor de idade ou portador de distúrbios mentais. Quanto mais tentem enganar o espectador, mais tendem a adotar um tom infantilizante. Por quê? "Ae alguém se dirige a uma pessoa como se ela tivesse 12 anos ou menos, em razão da sugestionabilidade, então, provavelmente, ela terá uma resposta ou ração também desprovida de um sentido crítico (ver "Armas silenciosas para guerras tranquilas")".

6. Utilizar o aspecto emocional mais do que a reflexão. Fazer uso do aspecto emocional é uma técnica clássica para causar um curto circuito na análise racional e, finalmente, ao sentido crítico dos indivíduos. Por outro lado, a utilização do registro emocional permite abrir a porta de aceeso ao inconsciente para implantar ou enxertar ideias, desejos, medos e temores, compulsões ou induzir comportamentos...

7. Manter o público na ignorância e na mediocridade. Fazer com que o público seja incapaz de compreender as tecnologias e os métodos utilizados para seu controle e sua escravidão. "A qualidade da educação dada às classes sociais menos favorecidas deve ser a mais pobre e medíocre possível, de forma que a distância da ignorância que planeja entre as classes menos favorecidas e as classes mais favorecidas seja e permaneça impossível de alcançar (ver "Armas silenciosas para guerras tranquilas").

8. Estimular o público a ser complacente com a mediocridade. Levar o público a crer que é moda o fato de ser estúpido, vulgar e inculto.

9. Reforçar a autoculpabilidade. Fazer as pessoas acreditarem que são culpadas por sua própria desgraça, devido à pouca inteligência, por falta de capacidade ou de esforços. Assim, em vez de rebelar-se contra o sistema econômico, o indivíduo se autodesvalida e se culpa, o que gera um estado depressivo, cujo um dos efeitos é a inibição de sua ação. E sem ação, não há revolução!

10. Conhecer os indivíduos melhor do que eles mesmos se conhecem. No transcurso dosúltimos 50 anos, os avançosacelerados da ciência gerou uma brecha crescente entre os conhecimentos do público e os possuídos e utilizados pelas elites dominantes. Graças à biologia, à neurobiologia e à psicologia aplicada, o "sistema" tem disfrutado de um conhecimento e avançado do ser humano, tanto no aspecto físico quanto no psicológico. O sistema conseguiu conhecer melhor o indivíduo comum do que ele a si mesmo. Isso significa que, na maioria dos casos, o sistema exerce um controle maior e um grande poder sobre os indivíduos, maior do que o dos indivíduos sobre si mesmos.


* Linguista, filósofo e ativista político estadunidense. Professor de Linguística no Instituto de Tecnologia de Massachusetts

Famílias sem abrigo e expostas à violência, 10 meses depois do terremoto

Tatiana Félix *

Adital -
Dez meses já se passaram desde que o Haiti, país caribenho, foi devastado por um forte tremor de terra. Apesar do tempo, a população ainda sofre com as consequências da catástrofe natural. A estimativa é a de que existam mais de um milhão de pessoas desalojadas, vivendo em acampamentos provisórios, e que pelo menos 500 destes desabrigados estejam vivendo em condições totalmente precárias, sem ter cesso à água e aos serviços sanitários, e sem participar do plano de alimentação do acampamento oficial.
Como se não bastasse a perda do lar, mulheres, meninas e até crianças estão agora expostas à vulnerabilidade da falta de estrutura e de segurança. De acordo com relatos recebidos pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), tem sido cada vez mais frequente os casos de violência sexual dentro destes lugares que deveriam exercer a função de abrigo.


Além disso, segundo informações recebidas pela CIDH, em, pelo menos, cinco acampamentos estão acontecendo desalojamentos forçados, realizados por supostos proprietários das terras ou por integrantes das forças públicas. Estima-se que cerca de 28 mil pessoas foram forçadas a deixarem os alojamentos provisórios.

Segundo as organizações que dão assistência a estes locais, as agressões sexuais, que vitima até crianças de 5 anos de idade, acontecem, na maioria das vezes, durante a noite, por dois ou mais agressores, que geralmente estão armados. Para piorar a situação, as vítimas não recebem atendimento médico adequado, muito menos recursos judiciais, criando, assim, uma atmosfera de impunidade que dá livre margem para a atuação dos criminosos.

Mesmo reconhecendo os esforços do Governo Haitiano para atender as necessidades desta população, a CIDH destacou a importância de o país respeitar as obrigações internacionais de direitos humanos em todas as circunstâncias, especialmente, das pessoas mais vulneráveis.

Por isso, a Comissão enviou uma carta ao governo e pediu às autoridades do Haiti que ofereçam às pessoas que foram expulsas ilegalmente, um novo local com condições mínimas de salubridade e segurança, e que garanta, principalmente, proteção para crianças e mulheres.

A entidade solicitou ainda a adoção de medidas para que sejam investigadas as agressões e violações sexuais dentro dos acampamentos, e providências para evitar que novos casos aconteçam. A recomendação da CIDH é que o Haiti garanta a presença de forças de segurança nestas áreas, em locais estratégicos como perto dos banheiros. Também é recomendado melhorar a infraestrutura a fim de garantir mais segurança, como a melhoria da iluminação nos locais, por exemplo.

Dar andamento às investigações judiciais, treinar policiais para conscientizá-los sobre seus deveres quando lidarem com casos de violência contra as mulheres e garantir a assistência médica especializada às vítimas de violência sexual, são outras orientações da Comissão de Direitos Humanos.

De acordo com relatos na imprensa, foi observado que prestes a completar um ano do terremoto que deixou boa parte da capital, Porto Príncipe, em ruínas, apenas 2% do entulho foi retirado das ruas e somente 15% da ajuda financeira e material prometida por diversos países e organizações, chegaram ao Haiti.


* Jornalista da Adital

Rede nacional de combate ao tráfico de pessoas dá recomendações ao II Plano

Tatiana Félix *

Adital -
Após encontro nacional, realizado de 8 à 10 deste mês, em Belo Horizonte, Minas Gerais, a Rede de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas elaborou um documento contendo recomendações para um II Plano Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas (II PNETP). As propostas foram pensadas pelos participantes do encontro que reuniu representantes de organizações não-governamentais, sociedade civil e de órgãos do Governo.
Uma das primeiras propostas para o II Plano é a de substituir o Grupo Assessor por um Comitê Interinstitucional Nacional que tenha a participação de todos os Ministérios da Presidência da República, Ministérios Públicos, Comitês Estaduais e Organizações da sociedade civil, de forma a ter uma atuação ampla e conjunta, atendendo de forma abrangente o problema em todo o país. Este Comitê também exerceria o papel de monitorar as ações de enfrentamento, repressão e atendimento, executadas pelas entidades em todos os estados brasileiros.


Mesmo sendo um tema complexo, foi possível definir algumas prioridades urgentes para o II PNETP, como a questão da legislação sobre emigração e imigração, já que uma das principais características do tráfico de seres humanos é o trânsito de pessoas entre cidades, estados e, principalmente, países.

"A questão migratória deve ser tratada conjuntamente com a do tráfico de pessoas, pois em boa parte o tráfico decorre das proibições de migração. A solução que venha a ser dada nas questões migratórias reduzirá o índice de casamentos servis", justificou a Rede.

Ainda sobre a legislação do país foi recomendado ter um aprimoramento mediante a previsão de um tipo penal que criminalize o tráfico de pessoas, seja na questão do trabalho análogo à escravidão, seja para a remoção e comércio ilegal de órgãos, ou outras formas. "Hoje, o tráfico criminalizado pelos artigos 231 e 231-A é aquele voltado à exploração sexual", observam.

Para a Rede Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas, é necessário alterar a legislação com urgência, a fim de deixá-la apta a coibir práticas criminosas que possam acontecer durante a Copa do Mundo de 2014 e as Olimpíadas de 2016.

Outro ponto destacado foi a recomendação para uma atuação sistemática por parte dos sistemas de segurança pública, na repressão ao Tráfico Interno de Pessoas, tais como em casas de prostituição e trabalho análogos à escravidão.

O serviço de atendimento de denúncias, Disque 100, também foi apontado para ser reformulado e ampliado. Para este serviço, a Rede Nacional indicou que seja feita uma capacitação dos atendentes e a integração com centrais de órgãos de segurança. Foi recomendado ainda que a problemática 'Tráfico de Pessoas' seja obrigatoriamente inserida nos Centros de Formação das Instituições Policiais e outras entidades relacionadas ao tema.

Uma das principais dificuldades das instituições que lidam com o enfrentamento ao tráfico e comércio de vidas humanas é a ausência de dados oficiais. Para sanar este problema que é fortemente demandado por todos aqueles que atuam no enfrentamento ao tráfico humano, foi proposta a criação de um Banco de Dados que contenha informações referentes aos perfis das vítimas em potencial, as rotas nacionais e internacionais do tráfico, autores do crime e outras questões.

A falta de informação também entre os órgãos de segurança e operadores de justiça, em diferentes localidades, seria solucionada com a criação, em nível nacional, de um órgão de coordenação das polícias estaduais e federal, que permita a troca de informações e pedidos de colaboração.

A abordagem do tema na mídia, de forma a esclarecer a população sobre a realidade do crime, a divulgação de documentos e acordos internacionais ratificados pelo Brasil e a publicação dos resultados obtidos com a repressão dos crimes caracterizados no contexto do tráfico de pessoas, são algumas das outras diretrizes específicas do documento da Rede.

* Jornalista da Adital

Organização pede fim da impunidade em casos de violência contra mulheres

Karol Assunção *

Adital -
O Dia Internacional da Não-Violência contra as Mulheres, celebrado amanhã (25), é, antes de tudo, uma data de reivindicação. Movimentos feministas e organizações sociais de várias partes do mundo aproveitam o dia para chamar atenção para a violação dos direitos das mulheres e pedir dos governantes ações mais firmes no combate e na prevenção à violência contra as mulheres.
A União Nacional de Mulheres Guatemaltecas (UNAMG), por exemplo, já divulgou um comunicado em que pede o fim da impunidade dos responsáveis por crimes de violência contra a mulher. Na nota, a UNAMG mostra-se preocupada com o aumento dos casos de violência contra o sexo feminino e com o elevado índice de feminicídios na Guatemala.


"Preocupa-nos particularmente como a violência sexual contra as mulheres segue sendo uma ferramenta de poder sobre nossos corpos; diariamente, milhares de mulheres de todas as idades, etnias e classes sociais vivem a violência sexual nas ruas, nos ônibus, nas escolas, nos trabalhos e em casa", destaca.

Para a União, a violência sexual, assim como qualquer outra violência contra a mulher, é crime e deve ser julgada. Por conta disso, a UNAMG aproveita o dia 25 de novembro para pedir às instituições do Estado guatemalteco o fim da impunidade e a garantia do acesso das mulheres ao sistema de Justiça. "Promover a perseguição penal nos casos e denúncias de femicídio e qualquer outra forma de violência contra as mulheres que foram apresentadas ante as instituições do sistema de justiça", acrescenta às demandas.

No comunicado, a organização ainda destaca - e pede para o governo ratificar - os diversos tratados e acordos nacionais e internacionais de combate e prevenção às violações dos direitos das mulheres, como o Estatuto de Roma da Corte Penal Internacional e o Mecanismo Nacional do Protocolo Facultativo à Convenção contra a Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes.

Da mesma forma, solicita a aplicação de instrumentos e resoluções internacionais referentes ao assunto, tais como: as Convenções para a Eliminação de todas as formas de Discriminação contra as Mulheres, a Convenção Interamericana para Prevenir e Erradicar a Violência contra a Mulher, e a Resolução n° 1.325 do Conselho de Segurança da Organização das Nações Unidas (ONU), a qual considera responsabilidade dos Estados ajuizarem os culpados por genocídios, crimes de guerra e de lesa humanidade, e violências contra mulheres e meninas.

A União também pede que o Estado aplique as próprias leis e decretos referentes à violação dos direitos das mulheres, como a Lei nacional contra o Femicídio e outras formas de violência contra as Mulheres (decreto 22/2008).

As demandas delas não são destinadas apenas às autoridades guatemaltecas. Assim como os governantes, de acordo com a União Nacional de Mulheres Guatemaltecas, a sociedade em geral precisa se mobilizar e lutar para acabar com a violência e com a impunidade, visto que "a violência contra as mulheres constitui um problema social de grandes proporções, que impacta não somente as próprias mulheres, mas também a família, a comunidade e a sociedade em seu conjunto".


* Jornalista da Adital