quinta-feira, 30 de junho de 2011

Reflexões Bíblicas

FESTA DE SÃO PEDRO E SÃO PAULO - 3 Julho 2011
Mt 16, 13-19
“Tu és o Messias, o Filho do Deus vivo”

Hoje a Igreja celebra a festa dos dois grandes apóstolos, Pedro e Paulo. Como evangelho do dia, escolheu-se a história do caminho de Cesareia de Felipe. O relato mais antigo está em Marcos, Cap. 8, 27-38, que se tornou o pivô de todo o Evangelho. A estrutura de Mateus é diferente; mas, o relato tem a mesma finalidade, ou seja, clarificar quem é Jesus e o que significa ser discípulo d’Ele.

A pedagogia do relato é interessante. Primeiro Jesus faz uma pergunta aparentemente inócua: “Quem dizem os homens que é o Filho do Homem?” Assim recebe diversas respostas, pois esta pergunta não compromete, é o “diz que”. Mas a segunda pergunta traz a facada: “E vocês, quem dizem que eu sou?” Agora não vêm muitas respostas, pois quem responde em nome pessoal, e não dos outros, se compromete com as consequências! Somente Pedro se arrisca e proclama a verdade sobre Jesus: “Tu és o Messias, o Filho do Deus vivo”. Aparentemente, Pedro acertou e realmente, em Mateus, Jesus confirma a verdade do que proclamou! Afirmou que foi através de uma revelação do Pai que Pedro fez a sua profissão de fé. Mas, para que entendamos bem o trecho, é necessário que continuemos a leitura pelo menos até v. 25. Pois, o assunto é mais complicado do que possa parecer.

Pois, após afirmar que Pedro tinha falado a verdade, Jesus logo explica o que significa ser o Messias. Não era ser glorioso, triunfante e poderoso, conforme os critérios deste mundo. Muito pelo contrário, era ser fiel à sua vocação como Servo de Javé, era ser preso, torturado e assassinado, era dar a vida em favor de muitos. Jesus confirmou que, de fato, era o Messias, mas não do jeito que Pedro quis. Este, conforme as expectativas do povo do seu tempo, quis um Messias forte e dominador, não um que pudesse ir, e levar os seus seguidores com Ele, até a Cruz! Por isso, Pedro remonta com Jesus, pedindo que nada disso acontecesse, e como recompensa ganha uma das frases mais duras da Bíblia: “Fique atrás de mim, satanás, você é uma pedra de tropeço para mim, pois não pensa as coisas de Deus, mas dos homens!” (v. 23). Pedro, cuja proclamação de fé mereceu ser chamada a pedra fundamental da Igreja (v. 18), é agora chamado de Satanás - o Tentador por excelência - e “pedra de tropeço” para Jesus! Pedro tinha os títulos certos para Jesus; mas, a prática errada! Usando os nossos termos de hoje, de forma um tanto anacrônica, podemos dizer que ele tinha ortodoxia, mas não ortopraxis!

Assim, Jesus usa o equívoco de Pedro para explicar o que significa ser seguidor d’Ele: “Se alguém quer me seguir, renuncie a se mesmo, tome a sua cruz, e siga-me” (v. 24). Ter fé em Jesus não é, em primeiro lugar, um exercício intelectual ou teológico, mas uma prática; o seguimento d’Ele na construção do seu projeto, até as últimas consequências.

Hoje, enquanto celebramos os nossos dois grandes missionários, a segunda pergunta de Jesus ressoa forte: para nós, quem é Jesus? Não para o catecismo, não para o Papa ou o Bispo ou Pastor, mas para cada de nós pessoalmente? No fundo a resposta se dá, não com palavras, mas pela maneira em que vivemos e nos comprometemos com o projeto de Jesus - Ele que veio para que todos “tivessem a vida e a vida plenamente!” (Jo 10, 10). Cuidemos para que não caiamos na tentação do equívoco de Pedro, a de termos a doutrina certa, mas a prática errada, de cairmos na tentação de substituir o caminho humilde e serviçal da cruz pela pompa e ritual, de esquecermos os valores do Reino de Deus para substituí-los com os valores da sociedade vigente. Pedro aprendeu ao longo da vida o que é ser discípulo, pois terminou crucificado também, mas não foi fácil a mudança de mentalidade. Paulo também teve que despojar-se da toda a sua formação farisaica, quando descobriu que a Lei não salva ninguém, mas somente a graça de Jesus.

Hoje, quando o pobre quase desaparece dos documentos oficiais da Igreja (embora o Espírito inspirasse os participantes da V Assembleia de CELAM em Aparecida a voltar a esta opção “com renovado vigor,” e o Papa Bento XVI insiste nessa opção em Verbum Domini), quando diversos setores da Igreja se esquecem de Vaticano II e do seu conceito do povo de Deus, torna-se mais importante do que nunca lembrar o ensinamento de Jesus sobre o discipulado: Ele “não veio para ser servido, mas para servir” (Mt 20, 28).

DÉCIMO QUARTO DOMINGO COMUM - 10 Julho 2011
Mt 11, 25-30
“Eu te louvo, Pai, ... porque escondeste essas coisas aos sábios e inteligentes, e as revelaste aos pequeninos”

Os primeiros três versículos desse texto não têm uma vinculação muito estreita com o contexto em que Mateus os coloca (Lucas situa o ditado num outro contexto), e por isso “essas coisas” não se refere ao que veio antes no capítulo (a condenação de Corozaim e Betsaida), mas aos “mistérios do Reino”, que são revelados aos pequenos e humildes - neste contexto os discípulos - e escondidos aos que se acham auto-suficientes na sua sabedoria e estudo - os fariseus e doutores da Lei (Mt 13, 11). Essa oração de louvor de Jesus brotava da sua própria experiência na missão - que enquanto a sua pessoa, ensinamento e projeto de vida foram rejeitados pela elite política, econômica e religiosa da época, os pobres e massacrados pelo sistema o acolheram. A auto-suficiência da elite impediu que ela pudesse reconhecer a verdade de Jesus. Os pobres, com a sua espiritualidade do Servo de Javé, conseguiram em grande parte acolhê-Lo, mesmo sem compreender inteiramente a profundeza da sua identidade.

O texto tem ecos da literatura sapiencial e apocalíptica. Dos Sapienciais, podemos ver reflexos de Pr 8, onde a Sabedoria é personificada, Eclo 51, 1-12, 13-30 e Sab 6-8. Mas também nos faz lembrar de textos apocalípticos como Daniel, onde os sábios são incapazes de decifrar o sentido do sonho de Nabucodonosor (Dn 2, 3-13), enquanto o humilde Daniel, confiando na revelação divina, louva a Deus por lhe ter dado a sabedoria (Dn 2, 23) e revela que se trata do Reino fundado pelo próprio Deus (Dn 2, 44). No tempo de Jesus, os sábios também não conseguem decifrar os mistérios do Reino de Deus, um dom que é dado aos humildes. Em Mateus, os pequenos são os discípulos (Mt 10, 42) a quem são revelados o mistério do Reino dos Céus (Mt 13, 11).
Os versículos 26-28 são importantes, pois afirmam o relacionamento único entre Jesus e o seu “Abbá”, Pai. Aqui, a comunidade mateana expressa a sua fé em Jesus como Filho Absoluto do Pai Absoluto. É uma de três passagens em Mateus, nas quais Jesus expressa, de uma maneira indireta, ter uma relação única com Deus, seu Pai. As outras são Mt 21, 37 e 24, 36.

A imagem do “jugo” era bastante conhecida já no Antigo Testamento (Jr 2, 20; Jr 5, 5; Os 10, 11). No judaísmo do tempo de Jesus era usada como imagem da Lei de Deus, escrita e oral (Eclo 6,24-30; 51, 26s). O termo não tinha necessariamente uma conotação de peso ou opressão quando usado assim. O nosso texto usa a imagem corrente para contrastar a interpretação farisaica da Lei, que oprimia o povo com exigências casuísticas e conceitos que excluíam muitos, com a interpretação de Jesus, que não rejeita a Lei, mas lhe devolve o seu sentido original - uma garantia de manter vivo na comunidade o projeto libertador de Javé. O problema não estava na Lei, mas na sua interpretação. Para os doutores, as práticas externas eram tão exigentes que ofuscavam o rosto misericordioso de Deus, tornando a vivência religiosa um pesadelo para muitos. A interpretação de Jesus não é “light” - é exigente, pois exige uma vivência de fraternidade, uma luta pela solidariedade e libertação e a rejeição de todo egoísmo e individualismo. No fundo, é mais exigente do que a dos fariseus, pois não se esgota em práticas externas, mas em um processo infinito de doação de si. Mas, Ele garante que este projeto de vida, por tão exigente que seja, trará a alegria do Reino de Deus.

Esses últimos versículos nos levam a rever a nossa pregação, a nossa interpretação da Lei de Deus, a nossa prática pastoral. Pois, ao longo da história, muitas vezes a pregação nas Igrejas e na catequese tem sido uma série de legalismos moralizantes, reduzindo o cristianismo a uma prática externa de normas. Não poucas vezes, colocando fardos pesados sobre os menos fortes, sem que fosse oferecido para eles qualquer ajuda para carregá-los. Frequentemente, o seguimento de Jesus se reduzia ao cumprimento de leis, ou à vivência de uma moral ou ética, sem a revelação do Deus misericordioso e compassivo, o Deus de vida. Jesus nos mostra que, embora a religião exija leis e moral, fundamentalmente é uma mística, uma experiência do amor de Deus que nos convida a assumir o seu jugo como resposta, um jugo que não mata, mas que liberta, que não esconde o rosto de Deus, mas, que traz a alegria do Reino!

DÉCIMO QUINTO DOMINGO COMUM - 17 Julho 2011
Mt 13, 1-23
“Quem tem ouvidos para ouvir, ouça”

Com o texto de hoje, entramos no capítulo 13 de Mateus, que, estruturalmente, é o centro do Evangelho. Tudo se concentra no ponto central da mensagem de Jesus: o Reino de Deus, que continua algo misterioso (v. 11). O capítulo consiste de sete parábolas - as parábolas do Reino - e alguma explicação delas. O trecho de hoje nos relata a parábola que é conhecida como a do semeador (embora o texto enfatize mais a semente), junto com uma explicação do seu sentido.

O que é uma parábola? Um exegeta, C.H. Dodd, deu a seguinte definição: “Parábola: uma metáfora tirada da vida diária ou da natureza, que chama a atenção do ouvinte pelas imagens vivas ou estranhas, e que deixa-o com dúvida suficiente sobre o seu sentido exata para que seja estimulado a refletir por si mesmo.” A parábola de hoje usa imagens conhecidas na Palestina rural do então - a semeadura - e na sua forma original não trazia explicação. Terminava com o desafio de Jesus para que os ouvintes aprofundassem por si mesmos o seu sentido: “quem tem ouvidos para ouvir, ouça”.

Para entender as imagens, é bom lembrar que, na Palestina antiga, se jogava a semente antes de arar a terra. Por isso, alguma semente caía nas picadas que atravessavam os campos “à beira do caminho”; outra parte seria logo queimada pelo sol terrível do país; outra parte, comida pelas aves, outra parte perdida porque a terra era rala e cheia de ervas daninhas. Mas, uma parte cairia em terra fértil que dava frutos, conforme a sua possibilidade.

Provavelmente a explicação dada em vv. 18-23 nasceu mais tarde, durante a catequese da Igreja primitiva. Assim, no início podemos supor que o semeador era Deus, Jesus, ou um emissário d’Eles; a semente seria a Palavra de Deus e os tipos diferentes de solo, as respostas diferentes dos ouvintes. Alguns deixam o fascínio do mal, nas suas diversas formas, roubar a semente; outros acolhem a Palavra; mas, de uma maneira superficial, e não demora muito para que se torna infrutífera nas suas vidas. Outros aceitam a Revelação divina, mas a colocam em segundo plano, enquanto correm atrás das riquezas de um mundo consumista. Relegando assim Deus e o seu projeto, fazem com que a religião se torne algo de fachada, que em nada ajuda o Reino a crescer. Mas, a finalidade da história é de dar esperança. Embora haja muitos fracassos, em última instância o trabalho do semeador dá certo - sempre há pessoas que recebem com entusiasmo a Palavra, e suas vidas, baseadas na fé viva, dão muitos frutos. Não é necessário que todos deem frutos iguais - mas que todos deem conforme as suas possibilidades, cem, sessenta e trinta por um.

Depois de dois mil anos de semeadura, cabe perguntar sobre os frutos da semeadura na nossa sociedade, dita cristã. Depois de quinhentos anos das Igrejas no Brasil, será que o solo - nós cristãos – temos dado os frutos de uma sociedade justa e fraterna, conforme o desejo de Deus? Estamos sendo - individualmente e comunitariamente - quê tipo de solo? Deixamos a semente penetrar no solo dos nossos corações, ou deixamos a semente na superfície, como a que caiu à beira do caminho? Ou a aceitamos através da catequese sacramental e da tradição familiar, sem aprofundá-la, ficando numa prática estéril para manter aparências e tradição, mas que não afeta em nada a sociedade? Ou deixamos os espinhos modernos - as tentações de uma sociedade materialista, consumista, de competitividade - sufocar as reações de fraternidade e solidariedade que devem marcar os que acolhem a Palavra? Ou, com a graça de Deus, procuramos ser solo fértil, onde a fertilidade inerente na semente possa brotar em frutos de bondade e justiça, conforme as nossas possibilidades, deixando acontecer o que profetizou Segundo-Isaías: “Assim acontece com a minha Palavra que sai da minha boca: ela não volta para mim sem efeito, sem ter realizado o que eu quero e sem ter cumprido com sucesso a missão para a qual eu a mandei” (Is 55, 11). O semeador é Deus, a semente é boa - mas que tipo de solo sou eu, somos nós? “Quem tem ouvidos para ouvir, ouça!”

DÉCIMO SEXTO DOMINGO COMUM - 24 Julho 2011
Mt 13, 13, 24-43
“Quem tem ouvidos para ouvir, ouça!”

Esse texto continua o capítulo 13 de Mateus, onde se proclamam as parábolas do Reino. Hoje lemos três parábolas, que comparam o Reino de Deus a um campo de trigo, um grão de mostarda e o fermento na massa, quando se faz pão. Termina com uma explicação alegórica do sentido da parábola do trigo de do joio. Podemos entender essas parábolas todas como uma mensagem de esperança para a comunidade pequena mateana - e para nós hoje. Uma leitura atenta delas deve nos reanimar para a nossa caminhada e luta em favor do Reino, sem desânimo nem desesperança.

Isso fica patente nas pequenas parábolas do grão de mostrada e do fermento na massa. A semente de mostarda é minúscula, mas quando brota, forma um arbusto viçoso. Quando se faz pão, não se usa mais do que uma pequena porção de fermento, mas é o suficiente para levedar a massa toda. O efeito é desproporcional ao tamanho ou peso do grão e do fermento. Pois, eles têm um dinamismo interno que dá resultados inesperados.

Jesus aplica essas observações ao Reino de Deus. O seu crescimento depende de pessoas e coisas que aparentemente são insignificantes. Porém, onde existe uma real comunidade de discípulos; há um dinamismo interno que causa efeitos muito maiores do que a sua força humana, pois é movido pela força do Espírito de Deus. Com certeza, no tempo da redação desse evangelho, a comunidade mateana estava sentindo-se fraca demais para enfrentar a polêmica e a luta com o judaísmo rabínico formativo. Diante das expulsões das sinagogas e das famílias, da rejeição dos discípulos por seus pares, e diante da ameaça de perseguição real, muitos devem ter desanimado, sentindo-se fracos demais para esta caminhada.

Algo semelhante facilmente ocorre hoje - diante do rolo compressor da globalização do mercado, do projeto neo-liberal, muitos acham que nós não temos forças para resistir, pois somos fracos e insignificantes nos olhos dos donos do poder. Mas, isso é julgar somente com critérios humanos. É fácil esquecer a ação do Espírito e que para Deus nada é impossível. Essas duas parábolas nos ensinam a valorizar o nosso grão de mostarda e a nossa medida de fermento - ou seja, as pequenas ações e gestos de solidariedade, que trazem o dinamismo do Espírito e podem alcançar resultados surpreendentes.

Olhando as estatísticas da diminuição da mortalidade infantil no Brasil, diante de quais os governantes se ufanam, quem não sabe que em grande parte é resultado do trabalho humilde e perseverante dos membros da Pastoral da Criança, que, mesmo diante de décadas de descaso governamental diante da saúde pública, fazem verdadeiros milagres em favor da vida. E poder-se-ia multiplicar os exemplos. Olhemos com os olhos de fé e de Deus e não com os olhos do mundo, que só valoriza a força do dinheiro, do poder e da dominação.

Nesse contexto pode-se ler a parábola do campo onde foi semeado joio (erva daninha) junto com o trigo. Os servos querem arrancar à força o joio, mas o patrão não permite, pois talvez faça mais mal do que bem. Aqui o campo é o mundo, a comunidade, a Igreja. Somos uma comunidade santa e pecadora, como reza a oração eucarística. Cada comunidade, cada pessoa é ao mesmo tempo trigo e joio. A parábola alerta contra dois perigos muitas vezes presentes nas Igrejas. Uma é a tendência do puritanismo - de criar uma comunidade de “santos” ou “eleitos”, intolerante com os pecadores e com as fraquezas humanas, criando uma religião rígida e fria, que esconde o rosto misericordioso de Deus. O outro perigo é o oposto - simplesmente ignorar o joio, e assim correr o perigo que a erva daninha (os males e erros) sufoquem o trigo na comunidade. A parábola aconselha paciência e cautela, e assim quer evitar os dois entremos de “elitismo” e de laissez-faire, pois ambas as atitudes teriam como resultado a destruição da comunidade.

O Reino é de Deus e Ele não falha. Somos convidados a caminhar juntos na construção lenta, mas segura, desse Reino, apesar de sermos joio e trigo, confiantes no dinamismo do Espírito que faz com que o nosso grão de mostarda e fermento na massa dão frutos, muito além das expectativas humanas.

DÉCIMO SÉTIMO DOMINGO COMUM - 31 Julho 2011
Mt 13, 44-52
“Vocês compreenderam tudo isso?”

Hoje terminamos a leitura do capítulo 13 de Mateus, com as últimas três parábolas do Reino - a do tesouro escondido, a da pérola preciosa e a da rede lançada ao mar. Nas primeiras duas, podemos notar duas ênfases - uma sobre o grande valor do achado (simbolizando o Reino) e outra sobre a atitude de quem o acha. A parábola da rede no mar ecoa a mensagem da parábola do campo de trigo e joio, que fez parte do texto do domingo passado.

O contexto histórico do tesouro achado é o do Oriente Médio Antigo, palco de tantas invasões e guerras. Era prática comum enterrar os valores diante da ameaça de uma invasão ou guerra. Só que, muitas vezes, o dono morria na violência, e o tesouro ficava escondido por muito tempo, até ser achado por acaso.

Usando esse exemplo, Jesus nos ensina algo sobre o Reino e sobre a atitude do discípulo diante dele. O Reino de Deus é um valor tão incalculável, que uma pessoa sensata daria tudo para possuí-lo. É importante notar que o texto enfatiza que “cheio de alegria” ele vende todos os seus bens, para poder possuir o valor maior, que é o Reino. A vivência dos valores do Reino, do seguimento de Jesus, deve ser uma alegria e não um peso. Sem dúvida é exigente, pois meias-medidas não servem (ele vende tudo o que tem); mas, o resultado é uma alegria enorme. Não a alegria superficial de um programa de Faustão ou Sílvio Santos, mas uma alegria que brota da profundeza do nosso ser, pois descobrimos a única coisa que não passa e que dá sentido a toda a nossa vida - o Reino de Deus. É pena que, com tanta frequência, conseguimos fazer do seguimento de Jesus um peso, uma chatice, um legalismo, que afasta de Deus em lugar de atrair para Ele. É impressionante como se consegue fazer a Palavra de Deus algo tão chato, e irrelevante!

Mais uma vez, como na parábola do campo de trigo e joio, a última parábola ensina que o Reino, que subsiste na Igreja, congrega santos e pecadores (os bons e maus peixes). A separação final deve ser deixada para a justiça de Deus, enquanto, na vivência diária, devemos mostrar paciência e tolerância, mas, sem indiferença ou comodismo.

O último versículo talvez indique que o autor do Evangelho que denominamos Mateus era um escriba ou doutor da Lei, convertido ao discipulado de Jesus (é bom lembrar que os títulos tradicionais dados aos Evangelhos são somente atribuições. Nenhum evangelho identifica o seu autor, é e consenso entre os exegetas que o Evangelho de Mateus não tenha sido escrito pelo apóstolo daquele nome). Ele está bem enraizado nas “coisas antigas” - ou seja, no Antigo Testamento. Mas está aberto às coisas novas, ou seja, a nova interpretação da Lei que Jesus trouxe. Assim nos ensina algo valioso para o mundo de hoje, tão inconstante e sem raízes de um lado e com a tentação de fechamento no fundamentalismo e intolerância, do outro. Nem tudo que é antigo é ultrapassado e nem tudo que é novidade é boa. Igualmente, nem tudo que é antigo tem que ser preservado e nem toda a novidade deve ser rejeitada. É importante ter critérios, para que não percamos os valores, nem da sabedoria antiga, nem da busca de atualização para os dias de hoje. Quem tem ouvidos para ouvir, ouça!

Décimo Oitavo Domingo Comum – 7 Agosto 2011
Mt 14,13-21
“Dai-lhes vós mesmos de comer”

No Evangelho de Mateus, o texto do Evangelho de hoje vem logo após a história da morte de João Batista, ligada à festa de aniversário do Tetrarca Herodes Antipas. Mateus contrasta o “Banquete da Morte” promovida por Herodes, com “O Banquete da Vida”, protagonizado por Jesus!

O milagre normalmente chamado “A Multiplicação dos Pães”, é o único milagre de Jesus relatado nos quatro Evangelhos. Isso aponta à importância dada nas primeiras comunidades a este relato, tanto que a sua memória persistiu não somente nas comunidades da tradição Sinótica (Mc, Mt, e Lc), mas também na Comunidade do Discípulo Amado.

Mesmo fazendo leitura superficial dos quatro relatos (Mc 6, 30-44; Lc 9, 10-17; Mt 14, 13-21; Jo 6, 1-15), alguns elementos importantes soltam aos olhos: A reação dos discípulos diante do problema da fome da multidão. Nos Sinóticos, a solução sugerida por eles é a de despedir a turba para que pudesse comprar pão. Assim, ignora a situação dos que não tinham possibilidade de comprar! É a solução de muita gente hoje diante do escândalo da pobreza no mundo - que se virem! Cada um para si! Quem não tem condições, que se lasque! Jesus rejeita claramente essa “solução” - “Dai-lhes vós mesmos de comer!” Em João, Marcos e Lucas, a proposta de comprar pão para doá-lo também se revela uma solução inadequada. Jesus insiste “Dai-lhes vós mesmos de comer”. Ele não aceita nem a solução de “lavar as mãos” diante da fome alheia ou de cair em um assistencialismo. Ele desafia a comunidade dos discípulos a achar uma saída baseada numa nova proposta de vida - a da partilha!

Em nenhum dos quatro relatos se usa o verbo “multiplicar”! O motivo é simples - se a ênfase caísse sobre o “multiplicar” milagroso, teria poucas consequências para os discípulos (nós, hoje), pois não temos possibilidade de “multiplicar” as coisas. Os verbos são bem escolhidos: “benzer, partir, dar, distribuir” - porque todos nós podemos partilhar os bens materiais e espirituais que temos.

O Brasil não precisa “multiplicar” terras, bens ou renda. Tem mais do que o suficiente. Mas é urgente partilhar e redistribuir os bens que Deus nos deu para o sustento de todos!

Menos do que João, mas muito mais do que Lucas e Marcos, Mateus liga a sua narrativa à instituição eucarística (Mt 26, 26). Também concentra a atenção nos pães, pois neste relato somente eles são distribuídos. Assim o texto nos lembra que a participação eucarística exige compromisso com uma visão social baseada na partilha dos bens necessários para a vida, e não na acumulação da parte de alguns, junto com a falta do básico para muitos. O cristão não pode compactuar com uma sociedade organizada conforme os princípios de Herodes; mas, deve lutar para a construção de uma sociedade em favor da vida, seguindo as pegadas de Jesus de Nazaré.

O texto de hoje relê Êx 16, (o maná), Nm 11 (as codornas) e 2Rs 4, 1-7.42-44 (onde Eliseu distribuiu óleo e pão). O texto do Êx. 16 enfatiza que a avareza de acumular coisas às custas dos outros leva à podridão.

É claro que diante do enorme sofrimento da maioria da população do mundo, a gente pode sentir-se tão impotente como se sentiram os discípulos no Evangelho de hoje. Mas, o texto nos ensina que não devemos cair na cilada de aceitar as saídas falsas propostas pela sociedade vigente e hegemônica - ou de “lavar as mãos” ou de cair somente num simples assistencialismo. O cristão, sustentado pela eucaristia, a Mesa da Palavra e a Mesa do Pão, deve se comprometer com uma visão cristã da sociedade, que exige que nós façamos o que é possível para a construção de um mundo de justiça, e fraternidade.

Há dois mil anos, Jesus olhou a multidão, teve compaixão dela e agiu. Com certeza, Ele olha hoje a situação de tantos irmãos e irmãs e pede que os seus seguidores façam algo para mudar a situação. É comum os jornais trazerem do aumento assustador da fome no mundo por causa da crescente falta de alimentos e do aumento dos preços de alimentos básicos. Paira sobre nós cristãos o desafio do texto de hoje: “Dai-lhes vos mesmo de comer!” O que significa isso na prática para mim, para você, para as nossas Igrejas, na situação concreta da nossa vida?

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Pe. Tomaz Hughes, SVD
E-mail: thughes@netpar.com.br

Nota da CNBB sobre o Código Florestal

“Eis que vos dou toda a terra, todas as plantas que dão semente e todas as árvores que produzem seu fruto com sua semente, para vos servirem de alimento” (Gênesis 1,29).

O Conselho Permanente da CNBB, reunido em Brasília, de 15 a 17 de junho de 2011, tomou conhecimento do atual estágio da discussão do Código Florestal no Congresso Nacional, atualmente tramitando no Senado, após votação na Câmara dos Deputados.
Estamos conscientes da grande importância de um Código Florestal no Brasil, porque nosso País tem possibilidades de oferecer alternativas à crise civilizacional ancorada, sobretudo, na crise climática.

Nossa preocupação maior está no impacto e nas consequências de uma lei deste porte na vida das pessoas e no meio ambiente, que sacrificam a realidade da ecologia física e humana ao influenciar na dinâmica social e cultural da sociedade.

A ecologia se tornou, na segunda década do século XXI, um dos “sinais dos tempos” mais significativos para a sobrevivência da humanidade. Não por acaso, vivemos o Ano Internacional das Florestas, participamos recentemente da Campanha da Fraternidade sobre a Vida no Planeta que colocou em discussão a gravidade da crise ecológica às vésperas da Conferência Rio+20.

A flexibilização da legislação ambiental, aprovada pela Câmara dos Deputados, motivo de muita polêmica, é prova contundente de que o País poderá se colocar na contramão deste importante debate mundial.

As decisões sobre o Código Florestal não podem ser motivadas por uma lógica produtivista que não leva em consideração a proteção da natureza, da vida humana e das fontes da vida. Não temos o direito de subordinar a agenda ambiental à agenda econômica.

Destaque-se, porém, que a legislação original, tanto de 1934 como de 1965, tinha como preocupação preservar a flora em suas múltiplas funções, seja em áreas públicas, parques nacionais, seja em áreas privadas e, nesse aspecto, sempre exigiu a manutenção de um mínimo da vegetação nativa.

Alguns aspectos, já aprovados na atual discussão sobre o Código Florestal, nos preocupam. Entre eles, destacamos:

- a flexibilização da Lei altera o regramento das Áreas de Preservação Permanente – APPs, que protegem as margens dos rios, encostas, topos de morro, ameaçando o equilíbrio de proteção das florestas;

- a anistia das multas e penalidades pelas ocupações e desmatamentos em áreas de agropecuária e de alta relevância ambiental.

No Novo Código Florestal não pode faltar o equilíbrio entre justiça social, economia e ecologia, como uma forma de garantir e proteger as comunidades indígenas e quilombolas e defender as pequenas propriedades e a agricultura familiar.

Convocamos nossas comunidades a participarem desse processo de aperfeiçoamento do Código Florestal, mobilizando as forças sociais e promovendo “abaixo-assinado” contra a devastação.

Somos chamados a cuidar da natureza, a nossa casa comum, num processo de desenvolvimento sustentável, para que a terra e tudo o que dela provém sirvam para que todos tenham vida e vida em abundância (cf. Jo 10,10).

Pedimos que Nossa Senhora Aparecida, mãe dos brasileiros e brasileiras, interceda junto a Deus muita luz para que nossos parlamentares se façam sensíveis ao bem comum.
Brasília – DF, 17 de junho de 2011

Cardeal Raymundo Damasceno Assis
Arcebispo de Aparecida - SP
Presidente da CNBB

Dom José Belisário da Silva
Arcebispo de São Luís do Maranhão-MA
Vice-Presidente da CNBB

Dom Leonardo Ulrich Steiner
Bispo Prelado de São Félix-MT
Secretário Geral da CNBB

CONFERÊNCIA NACIONAL DOS BISPOS DO BRASIL

quarta-feira, 29 de junho de 2011

Madre Assunta Marchetti

Piacenza 1 luglio 2011
Prot.n. 399/sg2011
Circolare n.17

Oggetto: festa del viaggio al cielo di Madre Assunta Marchetti e dono alla comunità dei Libro dal Titolo: Madre Assunta Marchetti, una vita missionaria; autrice Suor laura Bondi casa editrice Il CSEM

La vita del cristiano è scandita quotidianamente da eventi, ricorrenze, ricordi, storia, così anche la nostra vita di scalabriniane lo è; abbiamo infatti appena finito di celebrare la festa liturgica e storica della beatificazione e nascita al cielo del Beato Fondatore, Giovanni Battista Scalabrini,e già ci troviamo immerse nella commemorazione della nascita al cielo di madre Assunta Marchetti nostra prima Madre e nostra Cofondatrice.

Mi sembra significativo celebrare quest’anno il primo luglio,proprio alla vigiglia della conclusione di un triennio di Governo della Provincia San Giuseppe ,anche se piccola numericamente ,ma vasta per estensione,complessa per la centralità di tanti eventi del mondo della migrazione e mi riferisco ai 16 mila e più morti nel mar mediterraneo a causa dei viaggi” della speranza “ finiti tragicamente.e il movimento del popolo migrante .

Significativo per essere la culla della Congregazione e per aver dato i natali ai nostri santi di famiglia e per poter contare anche quest’anno con l’edizione di un libro sulla nostra carissima Madre Assunta Matrchetti :una vita Missionaria; dopo l’edizione del tascabile, edito dal nuovo giornale della Diocesi di piacenza:” Padre Giuseppe e Madre Assunta Marchetti ,due fratelli un solo ideale” autrice Barbara Sartori che ha illustrato appunto le due figure davvero fratelli anche nell’ideale , scelta vocazionale e missionaria.

L’invito di Madre Generale è dare enfasi alla gioiosa notizia e contemporaneamente al prezioso dono da parte del Governo Generale del Testo, per questo desidero soffermarmi, allo scopo di offrire opportunità di riflettere e cogliere l’evento come motivo di formazione e di lode a Dio.

A partire dalla prefazione del libro che subito è motivo di edificazione per le pennellate di identità: Madre Assunta è già santificata dall’unione continua con il Signore di cui ne aveva fatto ragione di vita in tutti i momenti dell’esistenza.
Mi sembra impegno nostro quotidiano evidenziare e far nostro ogni giono , quello che era normale,nella vita di Madre Assunta, il carattere di donna esemplare , equilibrata , sensibilissima, mite e allo stesso tempo forte ,riservata ,schietta , contemplativa e attiva,e che valesse più di ogni altra considerazione.

Certo l’autrice ,suor Laura Bondi la definisce per noi scalabriniane e laici un grande dono di Dio alla Chiesa , alla Congregazione e ai migranti di ieri,ai bimbi orfani italiani , ad oggi, non solo i bimbi che già sono molti e in situazione davvero a rischio ma migranti di ogni età , ceto ,religione e cultura.

Per noi oggi è essenziale sapere che Madre Assunta si è lasciata plasmare e nutrire da una grande fiducia in Dio, a tal punto da essere modello di vita consacrata ,missionaria , ma soprattutto di vita da discepola di Cristo. che esercitava con una tale fede che sapeva aspettare, sapeva sperare,sapeva riconoscere che il Padre e Signore, lo era in tutti i fatti anche in quelli più dolorosi .

Avere la fortuna di meditare su madre Assunta incoraggia a pensare che lo spessore di santità guadagnato con l’ascesi della vita quotidiana ci mette in sintonia con i misteri della fede cristiana cioè:di Cristo nato,apostolo,salvatore,morto,risuscitato,salito al cielo ,e presente nel dono del suo Spirito, tutti i giorni della nostra vita.

Buona festa per tutte e per tutti . e accogliamo con gioia e leggiamolo con spirito di famiglia questo libro . Esprimo pure riconoscenza a Suor Laura Bondi per l’immane lavoro di postulazione .Auguriamo di vedere presto sugli altari la nostra amata Serva di Dio madre Assunta Marchetti.

Un caro saluto dalle consigliere suor Etra Modica ,suor Federica Gallina, suor Manuela Simoes ,suor Claudia Toniolo e

Suor Lina Guzzo mscs
Superiora provinciale

Os cristãos do futuro: místicos e inter-religiosos

Se "a fidelidade à Bíblia e ao magistério da Igreja não é principalmente uma questão de palavras" – isto é, se a ortopraxia é verdadeiramente mais importante do que a ortodoxia –, então é altamente provável que uma nova definição de uma verdade de fé tradicional, capaz de permitir uma adesão mais profunda ao Evangelho, possa ser considerada como uma "reinterpretação" fiel, ortodoxa, daquela verdade da fé, "independentemente da diferença no plano terminológico". E também independentemente do fato de que essa nova definição possa nascer do diálogo com uma outra tradição religiosa.

A reportagem é de Claudia Fanti, publicada na revista Adista Documenti, nº 52, 27-06-2011. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

Está aqui, na "tentativa de distinguir entre uma nova concepção da fé, entendida como reinterpretação, ou, ao contrário, como rejeição da própria fé", que se desenvolve a aventura espiritual do teólogo norte-americano Paul Knitter, um dos maiores representantes da Teologia do Pluralismo Religioso, assim como ele mesmo a relata no livro Senza Buddha non potrei essere cristiano [Sem Buda não poderia ser cristão], recém-publicado pela editora Fazi (Roma, 2011, 320 páginas), a segunda publicação da coleção de livre pesquisa espiritual "Campo dei Fiori", dirigida por Elido Fazi, junto com Vito Mancuso (e inaugurada pela obra-prima do ex-frei dominicano Matthew Fox “In principio era la gioia”).

Trata-se do testemunho pessoal e convincente de quem atravessou a fronteira do budismo para abraçá-lo e depois a atravessou novamente para voltar à própria religião: "O meu diálogo com o budismo – pergunta-se o autor – tornou-se um cristão budista? Ou um budista cristão? Sou um cristão que compreendeu mais profundamente sua própria identidade com a ajuda do budismo? Ou me tornei um budista que ainda conserva vestígios cristãos?".

Na realidade, como o Pe. Luciano Mazzocchi, missionário xaveriano e animador do movimento Vangelo e Zen, enfatiza na “Introdução", "quando duas tradições religiosas se fundem ao ponto de se tornarem a única energia que faz viver, então não há mais filiação alguma. Há apenas o homem que caminha".

E, no caso de Knitter, um homem que, ressalta Mazzocchi, "deu um passo até agora tentado só por poucos: vestido pela sua fé católica, emitiu o voto budista do Bodhisattva, ou seja, prometeu não querer entrar na paz do nirvana até que todos os seres não tenham lá entrado".

O caminho que leva a enriquecer a própria espiritualidade mediante o diálogo com as outras fés é, em sentido, inevitável: "O homem de hoje – continua Mazzocchi – é maior, mais vasto, mais profundo, mais complexo, mais maduro do que as tradicionais respostas religiosas e os sistemas teológicos em que estas foram encaixotadas", chegando a "experimentar a verdade como o seu modo de se relacionar com a alma que tudo pervade", consciente de que nenhuma religião é um ponto de chegada, mas só uma sinalização preciosa "ao longo do caminho da história humana".

É nesse quadro que se coloca a luta interior conduzida por Knitter com relação às "interrogações desconcertantes e desestabilizantes" sobre a natureza de Deus, o papel de Jesus, o significado da salvação: "Acredito realmente naquilo que eu digo acreditar, ou naquilo que eu deveria acreditar como membro da comunidade cristã?".

E é justamente olhando "para além das fronteiras tradicionais do cristianismo" que o teólogo é capaz de encontrar respostas mais satisfatórias e frutíferas às suas perguntas: só depois de ter "começado a levar a sério e a explorar as Escrituras de outras religiões" é que ele foi capaz de compreender mais adequadamente "o que significa a mensagem de Jesus no mundo contemporâneo".

E, entre as religiões, foi o budismo que constituiu um dos dois recursos mais úteis (o outro é a teologia da libertação), que lhe permitiram continuar desenvolvendo a sua tarefa pessoal de cristão e de teólogo, permitindo-lhe rever, reinterpretar e reafirmar as doutrinas cristãs sobre Deus (capítulos 1-3), sobre a vida após a morte (capítulo 4), sobre Cristo como Filho único de Deus e Salvador (capítulo 5), sobre a oração e o culto (capítulo 6) e sobre o compromisso para conduzir o mundo rumo à paz e à justiça do Reino de Deus (capítulo 7), na consciência de que, como admite o teólogo na Conclusão, "no final da jornada, a casa para onde eu volto é Jesus".

E se, olhando para trás, para toda a sua vida, Knitter não consegue se imaginar "como cristão sem esse envolvimento com o budismo", é claro, porém, que a sua "preocupação principal" é que "os genes teológicos que eu transmito sejam ainda cristãos, que a minha reinterpretação do credo cristão, embora verdadeiramente diferente, não seja totalmente diferente daquilo que era antes dela". Que, portanto, "este livro contribua para uma boa teologia cristã".

E, junto com essa preocupação, uma convicção e uma esperança: "Acredito e espero justamente que, se Karl Rahner tem razão ao dizer que os cristãos do futuro deverão ser místicos, eles também deverão ser místicos inter-religiosos".

http://www.ihu.unisinos.br/index.php?option=com_noticias&Itemid=18&task=detalhe&id=44797

terça-feira, 28 de junho de 2011

Brasileiros foram os mais barrados em aeroportos de países da UE em 2010‏

27/06/2011 - 12:54
Agência Brasil, Brasília

Os brasileiros são os estrangeiros que mais tiveram a entrada recusada, em 2010, nos aeroportos de países que integram a União Europeia, além de ser o sexto grupo com mais permanências ilegais detectadas.

De acordo com a agência europeia de controle de fronteiras (Frontex), no ano passado, 6.072 brasileiros foram barrados pelas autoridades europeias ao tentar entrar no bloco por via aérea, o equivalente a 12% do total de entradas recusadas.

Quase 30% dos casos envolvendo brasileiros ocorreu na Espanha, onde 1.813 pessoas foram enviadas de volta ao Brasil, principalmente por não poder justificar o motivo da viagem ou as condições de estadia no país. Os brasileiros também foram os mais barrados nos aeroportos da França em 2010, com 673 casos.

O Brasil mantém a primeira posição entre as entradas negadas nos aeroportos europeus desde que a Frontex começou a contabilizar o dado, em 2008, mas a agência destaca que o número de casos caiu 24% no ano passado em relação a 2009.

Em segundo lugar, muito atrás do Brasil, estão os Estados Unidos, com 2.338 cidadãos barrados às portas da UE em 2010, o equivalente a 4,8% do total, seguidos de Nigéria, com 1.717 barrados, e China, com 1.610.

Apenas outros dois países latino-americanos estão entre as dez nacionalidades mais recusadas nas fronteiras aéreas europeias: Paraguai, em sexto lugar, com 1.495 entradas negadas, e Venezuela, em décimo, com 1.183.

De maneira geral, considerando também fronteiras terrestres e marítimas, os brasileiros foram a quarta nacionalidade mais recusada pela UE no ano passado, com 6.178 negativas – o equivalente a 5,7% do total.

Em primeiro lugar ficaram os ucranianos, que responderam por 17% do total, com 18.743 negativas, seguidos de russos, com 9.165 negativas, e sérvios, com 6.990.

No ano passado, a Frontex também detectou 13.369 brasileiros vivendo ilegalmente em algum país da União Europeia – a maioria deles em Portugal, Espanha e França.

O número representa 3,8% do total de residentes ilegais identificados no bloco em 2010 e coloca o Brasil na sexta posição da lista, liderada por Marrocos, com 6,3% do total. Na frente dos brasileiros, também ficaram os cidadãos do Afeganistão, Albânia, Sérvia e Argélia.

Nenhum outro país da América Latina figura está na lista dos dez primeiros entre as nacionalidades com mais ilegais detectados.

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Paradoxo: o mesmo Brasil que é barrado na UE, é também o mais ouvido por sua Bossa Nova, visto em telenovela, contemplado pelo futebol, divertido pelo seu carnaval...A sociedade moderna Euro-CIVILIZADA vai mostrando seu ápice de esquizofrenia em modelo melhor acabado!

Eduardo Gabriel

Conjuntura Migratória

MIGRAÇÃO, MUDANÇAS CLIMÁTICAS E O FANTASMA DO MALTHUSIANISMO

Terminado o tempo da quaresma e da Campanha da Fraternidade (CF) promovida pela Igreja Católica no Brasil, o tema de reflexão “Fraternidade e mudanças climáticas” tende a ficar em segundo plano. Porém, como acontece com outros temas da CF, a campanha passa, mas a relevância da sua temática não sai da ordem do dia. Ainda mais quando se trata de um tema que apela para impactos tão gigantescos quanto desconhecidos: um complexo de problemas que freqüentará com vigor crescente a agenda global, apontando para o que as Pastorais Sociais vem designando como uma “crise civilizacional”. Isso considerado, o alerta dado pela CF soou fraco, ou simplesmente como mais uma campanha em prol da ecologia. Prova disso é que, apesar de todo esforço em contrário, as figuras políticas que nos representam, no legislativo e no executivo federal, continuam aprovando e sustentando um novo Código Florestal leniente com o desmatamento, ou uma política energética que não se inibe em devassar os confins da Amazônia e do Pantanal.

Essa constatação só reforça a percepção de que, mesmo entre aqueles mais conscientes dos possíveis impactos sociais e ambientais das mudanças climáticas, seja no meio governamental, seja em vários segmentos organizados da sociedade civil, apenas estamos tocando na superfície do problema. Isso é particularmente verdadeiro quando se trata dos impactos das mudanças climáticas no que diz respeito à mobilidade humana. Entre os movimentos sociais atuantes no combate aos efeitos das mudanças climáticas ainda não se tem uma noção clara do significado dos deslocamentos ambientais. Em geral, quando se toca no assunto, o que predomina é uma sensação de alarmismo, muito inflada pelos números que vem sendo especulados: de 200 milhões e a um bilhão de pessoas, no mundo todo, nas próximas décadas seriam mobilizadas forçadamente devido aos efeitos do aquecimento global. Quando a questão surgiu no II Simpósio Mudanças Climáticas e Justiça Social, realizado em Luiziânia, de 14 a 16 de março deste ano, reunindo vários representantes do movimento social de todo Brasil, alguns casos genéricos foram levantados nesse tom de denúncia, como exemplos de suas conseqüências catastróficas. Sem negar a gravidade das projeções, nem contestar sua possível fundamentação científica, o que predominou foi uma visão extremamente negativa das migrações, e uma imagem do migrante como vítima passiva dos eventos provocados pelas mudanças climáticas. Ou ainda, quando se trata da relação entre os grandes projetos e as migrações, como ficou evidente no Seminário sobre “Grandes Obras e Migração”, realizado em São Paulo, dia 13 de maio, os estudiosos percebem melhor o deslocamento forçado das populações tradicionais, organizados em torno do Movimento de Atingidos por Barragens. No entanto, eles mesmos reconhecem a dificuldade em conhecer a população atraída pelos projetos de desenvolvimento: proporcionalmente muito maior, já desenraizada, culturalmente totalmente desvinculada com o meio ambiente atingido... Portanto, potencialmente conivente com a devastação realizada pela grande obra. Em todo caso, o conhecimento sobre a relação entre migração e meio ambiente permanece insuficiente.

E, no entanto, os mútuos impactos entre intervenção do homem na natureza, deslocamentos humanos, mudanças climáticas estão se tornando cada vez mais evidentes. Mais: os últimos anos têm demonstrado como os eventos climáticos extremos vêm antecipando as piores expectativas prenunciadas pelo relatório IPCC (Intergovernmental Panel on Climate Change). Os três tipos de ocorrências provocadas pelo aquecimento global – tornados, chuvas torrenciais, inundações; seca e desertificação; elevação do nível do mar – vêm ocorrendo com mais freqüência e mais intensidade, pesando fortemente entre os fatores que proporcionam a migração. Desses, aqueles que mais impressionam, são os provocados pelos chamados eventos climáticos extremos: inundações, enchentes, tornados, secas prolongadas. Se a desertificação ou o derretimento das geleiras são fatores que pesam crescentemente na decisão de migrar, como acontece no norte do México ou no Altiplano Andino (Bolívia e Peru), são as conseqüências das chuvas torrenciais que vem chocando mais diretamente a opinião pública, revelando com mais clareza que o clima está mudando. No Brasil, o ponto mais crítico da onda de eventos climáticos extremos dos últimos anos, predominantemente na zona litorânea, aconteceu em janeiro, atingindo a Região Serrana do Rio de Janeiro (Nova Friburgo, Petrópolis, Teresópolis). Contados mais de 900 mortos, milhares de famílias desabrigadas, bairros inteiros devastados, fica a pergunta para quem sobreviveu: para onde ir? A falta de respostas indica a gravidade do problema implícito: a questão da moradia. Revela, por um lado, uma história de ocupação desordenada do solo urbano, avançando sobre uma região da natureza extremamente frágil à ação humana. E por outro, a pergunta “para onde ir?”, que aflige antigos moradores e pressiona a autoridade pública, interroga sobre o futuro da população atingida. Em todo caso, a problemática de fundo relaciona eventos climáticos extremos à mobilidade humana.

Mudança de cenário. Incalculavelmente mais grave, as chuvas torrenciais ocorridas em meados de 2010 no Paquistão atingiram cerca de um quinto do território do país, envolvendo em torno de 20 milhões de pessoas, causando cerca de duas mil mortes, destruindo vilarejos inteiros e fragilizando ainda mais a situação econômica e política do país. Tanto mais grave que, além de exigir uma intervenção governamental para proteger as populações atingidas, pressionadas pelos especuladores de terra, vem somar-se à situação de extrema carência, e politicamente explosiva, dos refugiados afegãos do noroeste do país, que junto aos deslocados internos do próprio Afeganistão, formam uma população deslocada de mais de dois milhões de pessoas. O que as chuvas torrenciais no Paquistão e no Brasil têm em comum, além de ser um evento climático extremo ao lado de outros se sucedendo em todos os continentes, é colocar uma massa de população evacuada frente à mesma questão: “para onde ir?”. São situações que se podem caracterizar como uma “crise humanitária”. Elas nos mostram ademais no que se assemelham os que buscam refúgio devido à perseguição política ou medo de massacres, e aqueles que se deslocam repentinamente devido a tais eventos climáticos extremos. De fato, a questão dos refugiados nas últimas décadas tem tomado cada vez mais a configuração de crise humanitária. E, se existe uma motivação forte na resistência ao emprego do termo de “refugiado climático” (além do esvaziamento da já esvaziada conotação política da acepção corrente de “refugiado”), é que as organizações internacionais possuem um orçamento já escasso para atender as populações que fogem de guerras e perseguições, impossibilitando o atendimento dos flagelados das catástrofes climáticas.

Porém, o problema continua na pauta das grandes organizações internacionais, devido à sua expansão e gravidade cada vez maior. O caso do conflito recente na Libia e a fuga em massa de refugiados para a ilha de Lampedusa, na busca de entrar no continente europeu, é um dos exemplos mais patentes. Tão inesperado quanto devastador, o conflito deflagrado na Líbia a partir de março levou milhares de pessoas a se refugiarem na fronteira da Tunísia e do Egito. Rapidamente se formaram campos para refugiados extremamente precários. Essa massa de população, ao lado de outros imigrantes que já esperavam atravessar o Mediterrâneo, foi fortemente pressionada a embarcar em direção a Lampedusa, levando a crise humanitária que atingia as fronteiras do Maghreb até as portas da Europa. Conflito repentino e extremo, de maneira similar a um evento climático extremo, a crise dos refugiados de Lampedusa escancara uma ocorrência que tende a se tornar mais corriqueira: uma massa de população deslocada clamando pelas imagens da televisão, “para onde ir?”

A crise recente dos refugiados de Lampedusa serve de ilustração sobre as repercussões de um aumento da freqüência das crises humanitárias. Ajuda a pensar no significado de um previsível crescimento dos deslocados induzidos pelas mudanças climáticas. Sobre o pano de fundo do debate em que se desenrolam as questões ligadas à mudança climática e a mobilidade humana por ela desencadeada, surge então uma questão mais difícil, intrinsecamente política, a do controle populacional e da ocupação do território. No mundo regido pela globalização, cada crise humanitária, envolvendo pessoas refugiadas, aponta para uma crise no equilíbrio global entre população e ocupação de território. Assim, a rapidez com que as piores previsões sobre o aquecimento global vêm se confirmando têm levado, em primeiro lugar, a avançar a proposta de medidas não apenas preventivas, mas que buscam estabelecer estratégias de adaptação à nova realidade. Em segundo lugar, existe uma reproposição das questões que não dizem apenas respeito à preservação de meio ambiente, ou à busca de novas formas de eficiência energética ou de produção industrial, mas que questionam as dinâmicas de população, as migrações forçadas, a segurança alimentar, a garantia de moradia e meios de sobrevivência, a saúde pública, a educação, enfim, o respeito aos direitos fundamentais. Como pode ser pensado a mobilidade humana e os direitos dos migrantes nesse contexto?

Na busca de sair do alarmismo no que se refere à relação das mudanças climáticas e a mobilidade humana, percebemos como em tudo ainda somos assombrados pelo fantasma do malthusianismo. Malthus era um economista que ficou conhecido por fazer previsões alarmistas no século XIX sobre o crescimento demográfico, que ocorreria numa escala geométrica, frente a uma produção de alimentos, cujo aumento seria num ritmo apenas aritmético. Malthus pregava a necessidade do controle populacional para evitar a fome e se garantir o bem estar social. Desde então, as previsões malthusianas não cansaram de ser contestadas, seja pelo avanço científico e tecnológico no aumento extraordinário da produção de alimentos e toda sorte de bens de consumo, seja pela eficácia de políticas de controle populacional, além de progressos na mesma ciência e nas mudanças comportamentais, difundindo o controle da natalidade. No entanto, idéias malthusianas vêm sempre acompanhando a alardeada necessidade de se controlar a população dos países do Terceiro Mundo, para erradicar a fome, as doenças e controlar a pobreza. E eis que agora a sombra do malthusianismo ressurge sob nova forma. Reaparece na preocupação com o controle da circulação dos pobres, espalhando o alarmismo quanto ao descontrole de deslocamentos humanos devido ao aquecimento global. Isso porque, talvez, Malthus tenha colocado um problema estrutural do desenvolvimento do capitalismo (e da globalização, sua nova face): o do equilíbrio entre um crescimento (ou movimento) demográfico incessante e uma disponibilidade limitada de recursos naturais.

Esse equilíbrio parece ser colocado em cheque de maneira nova pelas previsões correntes dos efeitos do aquecimento global. De um lado, em tempos de globalização, com uma produção extraordinária de mercadorias, os progressos das políticas de controle populacional vêm revelando suas contradições: a perspectiva de envelhecimento da população, agora não apenas nos países do Primeiro Mundo, as dificuldades de financiamento da Previdência Social e de outros serviços públicos numa sociedade de massa. Essa perspectiva se soma ao fato que, com as previsões do aquecimento global se confirmando (elevação do nível do mar, desertificação) a ocupação do território sofrerá novos condicionamentos, criando pressões sobre a demanda por moradia e a disponibilidade de recursos. Em outros termos, a interação entre aquecimento global e deterioração do meio ambiente deverá elevar a pressão demográfica sobre a ocupação do território e a expansão ou manutenção da disponibilidade de recursos ou meios de sobrevivência. Por outro lado, os progressos da técnica e da ciência que permitiram contestar as previsões do malthusianismo, paradoxalmente parecem estar na raiz das causas que estão provocando o aquecimento global e o conseqüente comprometimento da exploração de recursos naturais, em particular para a produção energética em escala industrial. O problema não estaria na ciência em si, o na técnica que operacionaliza esse conhecimento em função do mercado: é a própria sociedade capitalista de massa, na sua espiral de consumo, que se sustenta num modelo de vida que parece estar levando os recursos do globo terrestre ao seu esgotamento.

O alarmismo apela evidentemente para medidas de segurança. As previsões dos deslocamentos humanos provocados pelo aquecimento global, insufladas pelo fantasma do malthusianismo, na sua ânsia por controle populacional e domínio do território e seus recursos naturais, não podem ver a migração e os migrantes se não de maneira negativa. Entretanto, a migração para os migrantes, na verdade, nunca foi problema, mas sempre busca de solução, estratégia de sobrevivência. É desta maneira que as próprias entidades internacionais começam a cogitar, como forma de adaptação aos efeitos das mudanças climáticas que já estão ocorrendo, o apelo a esse recurso tradicional usado por diferentes povos como estratégia de sobrevivência frente a situações de escassez de recursos: as migrações sazonais e temporárias. Ver a migração como recurso e não como problema seria um primeiro passo, a condição de que sejam reconhecidos aos migrantes os seus direitos fundamentais. Nesse sentido, o pensamento político corrente teria que ir muito além de sua fixação no domínio do território ou nas políticas de controle populacional. O que sempre permaneceu em jogo, mesmo no âmbito das previsões catastróficas das mudanças climáticas, é a questão da cidadania dos migrantes, sejam eles solicitantes de refugio político, migrantes em busca de trabalho ou deslocados ambientais.

Assim, observando bem, as mudanças climáticas e a questão dos deslocados ambientais apenas trazem à baila a perspectiva do acirramento de problemas já conhecidos, e que os migrantes e suas entidades de representação continuam obrigados a enfrentar. O “para onde ir?” é a questão recorrente que remete à ocupação do território, ao direito de se deslocar, de ter acesso à moradia, aos meios de sobrevivência, à saúde e educação, à possibilidade mínima do exercício da cidadania. O que a globalização, e as condições novas criadas pelo aquecimento global colocam na ordem do dia, é a possibilidade de que o território se torne mais exíguo, os recursos mais escassos, os grupos humanos mais próximos, a justiça mais exigente e a convivência intercultural uma pauta obrigatória. Talvez se consiga propor à consciência de cada um a obrigatoriedade de se repensar o modo de viver, de maneira mais austera e mais respeitosa com o meio ambiente, em vista de um mundo comum para todos. E que aquele que vem de fora não seja visto como um estranho, ou um usurpador, mas simplesmente alguém que, como nós, está submetido às mesmas condições de vida.

Pe. Sidnei Marco Dornelas CS
Assessor do Setor Pastoral da Mobilidade Humana – CNBB – Fonte NIEM

DECLARACIÓN DE LOS OBISPOS CATÓLICOS Y PARTICIPANTES EN LA REUNIÓN REGIONAL SOBRE MIGRACIÓN

(CENTROAMÉRICA, NORTEAMÉRICA Y CARIBE)

San José, Costa Rica, Junio 3 de 2011
Nosotros, Obispos católicos responsables de las comisiones de movilidad humana reunidos en San José, Costa Rica, del 1 al 3 de junio de 2011, unidos a religiosos, religiosas, laicos, laicas, participantes de CELAM y de Cáritas Internacional, comprometidos con la realidad migratoria, expresamos nuestra solidaridad con nuestros hermanos y hermanas que migran en busca de una mejor vida en esta región.

Testigos del gran sufrimiento que viven las personas migrantes de nuestros países y regiones, quienes son víctimas de explotación y abuso por parte de varios actores (funcionarios públicos, empleadores sin escrúpulos y organizaciones criminales), nuevamente exigimos a nuestros gobiernos hacerse responsables de la protección legal a los y las migrantes, incluyendo a quienes buscan trabajo, solicitan asilo, refugio y han sido víctimas de Trata de Personas.

Pedimos especial atención y protección para familias, mujeres y niños.
Reconocemos el derecho de soberanía de las naciones para legislar sin embargo, consideramos injustas e inhumanas y, por lo tanto, objeto de cambio o supresión, las leyes que provocan la separación de familias migrantes, detenciones arbitrarias y amenazas a la vida. Todas estas consecuencias se ven reflejadas en:
El incremento de la violencia en los secuestros por parte del crimen organizado de las personas migrantes. El dramático incremento de secuestros y homicidios de migrantes en México, cometidos por organizaciones criminales, demandan una respuesta urgente.

La masacre de 72 migrantes en Tamaulipas, México, el año pasado y los descubrimientos más recientes de más de 200 personas –muchas de ellas migrantes- en el norte de México, representan una terrible tragedia que ha recibido poca atención por parte de las autoridades gubernamentales.

Estos asesinatos y secuestros continúan en la impunidad. Las personas migrantes que han sido secuestrados y luego liberados han experimentado traumas severos y todavía no reciben ningún tipo de atención ni servicio; ellas deberían recibir cuidado específico para víctimas en México o en su país de origen. Exigimos a nuestros gobiernos que trabajen juntos para reducir el peligro que padecen las personas migrantes y que castiguen a los responsables de estos crímenes.

Hacemos un llamado a los gobiernos y nuestros hermanos a concientizar a las personas
migrantes sobre la peligrosidad de las organizaciones criminales que operan en México y a no dejarse engañar por ellas.

El incremento en las deportaciones entre Estados Unidos y México. El gobierno de Estados Unidos apoyado por su Congreso ha deportado una cantidad record de migrantes en los últimos dos años, a pesar de la petición realizada por la Iglesia Católica, para trabajar en la reforma de la ley de migración que incluiría la legalización de los trabajadores indocumentados y sus familias.

Urgimos al Gobierno de los Estados Unidos cambiar el curso de sus acciones y proteger a los migrantes y sus familias independientemente de su status migratorio.
De la misma manera, en México han aumentado las deportaciones, los migrantes han recibido un duro tratamiento y casi nulo acceso al debido proceso. El Gobierno mexicano pierde credibilidad cuando busca protección para sus ciudadanos en otros países pero no la provee para los inmigrantes en México.

La tragedia de la Trata de Persona. Aquellos que viven en pobreza continúan siendo víctimas de la Trata de Persona en nuestro hemisferio, sobre todo representan un alto grado de vulnerabilidad los niños y niñas migrantes no acompañados, que en muchos casos son víctimas en los países de tránsito y destino. Ciertamente se han realizado pasos importantes en los últimos diez años para enfrentar este problema humanitario que no son suficientes. Expresamos nuestro apoyo a los esfuerzos contra la Trata de Personas y el aumento en la atención de víctimas. Urgimos la vigilancia de parte de los gobiernos y nuestros compatriotas en la lucha en contra de esta tragedia hasta que sea eliminada de nuestro hemisferio y del mundo entero.

Crecimiento de la inequidad económica. Como hemos sostenido en el pasado, la solución a la migración es el desarrollo y las oportunidades económicas en todo el hemisferio, de tal manera que las familias puedan encontrar trabajo y vivir con dignidad en sus países de origen. Mayor atención debe ponerse a la inequidad económica, especialmente cuando la integración económica y los acuerdos de libre comercio son abordados entre países del hemisferio.

Estos acuerdos favorecen algunos sectores económicos pero excluyen a otros. Un gran número de trabajadores, particularmente en las zonas rurales pobres en los países en desarrollo, frecuentemente son despojados de su medio de subsistencia debido que tales acuerdos no toman en cuenta sus intereses.

Más importante aún, es que los gobiernos del hemisferio provean y fomenten la inversión social y pongan su atención en la creación de empleos y la satisfacción de necesidades de salud, educación, vivienda y seguridad social. El desarrollo económico y social sostenible debe ser la meta más importante del hemisferio.

Los efectos de la globalización en las personas. Vivimos en un tiempo en que los bienes, el capital y la comunicación se intercambian globalmente en poco tiempo. Sin embargo, las personas en movimiento que proveen de fuerza de trabajo para mantener el crecimiento económico no reciben protección legal. Nuestros gobiernos no pueden continuar beneficiándose del trabajo de las personas sin documentos sin ofrecerles protección legal.

Los países de origen se benefician enormemente de las remesas enviadas por los migrantes, pero sin compromisos verdaderos que transformen la realidad de las personas migrantes y sus familias, a través de obras de desarrollo y promoción humana integral, para ellas y las comunidades. Los países de destino obtienen beneficios del trabajo de los migrantes pero se resisten a darles protección y en ocasiones los utilizan como objetos durante los procesos electorales. Las autoridades en países de destino también someten a los migrantes a duros y difíciles procesos migratorios y no los protegen de la explotación y el abuso, permitiendo con ello el irrespeto de la dignidad de la persona.

En tanto que es un tema moral, esta situación no puede continuar. Urgimos a las naciones que no han ratificado la Convención de las Naciones Unidas sobre los Derechos de los Trabajadores Migrantes y sus familias, aprobarla y armonizar su legislación, y crear políticas públicas que reflejen el espíritu de la Convención para las personas migrantes independientemente de su status migratorio.

El incremento en las amenazas a agentes de la Pastoral de Migrantes en su carácter de
defensores y defensoras de derechos humanos. Este es un drama que ha aumentado en
México, como una cacería para tantos hombres y mujeres cuya labor pastoral hermana y
solidaria, se ha convertido en amenaza, sobre todo para la bandas criminales y algunos funcionarios coludidos con ellos, que han perdido el sentido de ver a la persona y ven en el migrante una mercancía de lucro.

Algunos agentes de la pastoral, pese a encontrarse con amenazas de estos criminales, han asumido su compromiso de fe con valentía y han defendido con su propia vida y con celo a los migrantes, como el pastor defiende a la oveja del lobo que se la quiere tragar.

A estos hermanos/as les agradecemos su testimonio de fe, les exhortamos a seguir siendo fieles al Señor Jesús; al mismo tiempo, urgimos a las autoridades correspondientes fomentar, respetar y reconocer los santuarios de migrantes, que lo único que buscan es ser una Casa Grande donde todos/as son hermanos y hermanas, hijos/as de un Padre común.

El proceso de recuperación de Haití. Urgimos la continua colaboración para la recuperación de Haití, la nación más pobre del hemisferio, tras el terremoto de enero de 2010. Apremiamos a las naciones a proteger a los haitianos que residen en su territorio y a continuar la asistencia económica a Haití. Felicitamos a las naciones que ofrecen protección ampliada para los haitianos en sus territorios.

Sin embargo, nos preocupan las nuevas deportaciones de migrantes haitianos hacia Haití en un contexto de inseguridad económica y política. Las naciones que han renovado las deportaciones deberían detenerlas hasta que Haití se recupere y esté en condiciones de recibirles.

Como Pastores y acompañantes, continuaremos defendiendo los derechos de los migrantes en nuestro hemisferio y visibilizando sus necesidades. Mientras apoyamos la implementación de la ley en nuestros países también trabajamos para que estas leyes sean justas para todos los seres humanos, especialmente para aquellos que no tienen poder político ni tienen quién les represente. Pedimos a los católicos y a todas las personas de este hemisferio que nos acompañen en esta tarea. Llamamos a los católicos a acoger a los migrantes, actitud que forma parte de nuestra fe y nuestro compromiso cristiano.

Como seguidores de nuestro Señor Jesucristo continuamos “acogiendo al extranjero” tal como él nos enseño: haciendo vida la escena de la persona que cae en manos de bandidos y el paso de una buena persona, que hace las veces de Jesús: vendó sus heridas…y cuidó de él (Lc. 10, 25-37), e invita a hacer lo mismo: cuida de él, porque “lo que hayas hecho a uno de nuestros pequeños, me lo hiciste a mí (Mt.25, 35-40).

Mons. Ángel Sancasimiro Mons. Pedro Varela Sever
Obispo de Alajuela Obispo Aux. Arquidiocesis de Panamá
Responsable de la Movilidad Humana Responsable de Pastoral Social
Conferencia Episcopal de Costa Rica Conferencia Episcopal de Panamá

Mons. Álvaro Ramazzini Imeri Mons. Pedro Hernández Cantarero
Obispo de San Marcos Obispo del Vicariato de Darién
Responsable de la Movilidad Humana Encargado de Migración
Conferencia Episcopal de Guatemala Conferencia Episcopal de Panamá

Mons. Joseph Bonello
Obispo Auxiliar de Juticalpa
Responsable de la Movilidad Humana
Conferencia Episcopal de Honduras

Mons. Raúl Vera López
Obispo de Saltillo
Conferencia Episcopal Mexicana

Mons. Rafael Romo Muñoz
Arzobispo de Tijuana
Responsable de la Movilidad Humana
Conferencia Episcopal Mexicana

Migração e divórcio entre trabalho e emprego

Pe. Alfredo J. Gonçalves
Assessor das Pastorais Sociais.
Adital
"Para ser grande sê inteiro:
Nada teu exagera ou exclui;
Sê todo em cada coisa,
Põe quanto és no mínimo que fazes.
Assim em cada lago a lua toda
Brilha, porque alta vive”.
Fernando Pessoa (Odes de Ricardo Reis)

Os deslocamentos humanos de massa costumam fragmentar não apenas o núcleo familiar ou de parentesco. Eles fragmentam também, por uma parte, o desejo de um emprego estável com o sonho a ele associado e, por outra, o trabalho feito de serviços eventuais, de bicos, suado gota a gota. Evidencia-se, nada mais nada menos, o divórcio entre trabalho e emprego.

1. O ser e a função


O poema do grande poeta português, que serve de epígrafe a estes parágrafos, soa bem apropriado para descrever o sentimento do ser humano, seja na sociedade moderna ou pós-moderna, seja no universo urbano ou no desenraizamento provocado pela migração. Em lugar do ser prevalece a função: o papel ou os papéis que desempenhamos na sociedade. Vale o aparentar, o fazer, o ter, o comprar, o vestir, o portar-se... Enfim, a pessoa se mede pelo que é capaz de produzir e consumir. Boa ou má perfomance, eis o termo para o sucesso ou insucesso pessoal. A quantidade e o cálculo substituem a qualidade. Tempo e espaço são matematizados, vale dizer, mercantilizados. Segundos e milímetros equivalem a centavos, horas e metros tornam-se moeda corrente. Tudo se reduz a dinheiro, o grande denominador comum, que permite a troca de uma coisa por outra. E também, evidentemente, de um trabalhador por outro, dependendo da capacidade de produção. O motor do lucro e da acumulação de capital move desejos e interesses, lutas e sonhos, destinos e existências.

O ser se esconde e se neutraliza atrás da função, da profissão, da aparência ou de uma potencialidade adormecida. Em termos metafóricos, é como se cada um, em seu armário pessoal, ao lado das variadas peças do próprio vestuário, guardasse uma série de máscaras para as diferentes ocasiões de seu desempenho. Há uma para o trabalho, outra para o bar e os amigos, uma terceira para a família, outra destinada aos momentos festivos, e assim por diante. Até certo ponto, isso é comum e bem humano. Ninguém é obrigado a desnudar-se diante dos estranhos. Todos nós, de uma forma ou de outra, sempre andamos com algum tipo de máscara. Semelhante comportamento constitui uma defesa natural contra a curiosidade alheia. Alma alguma expõe sua nudez em praça pública, à curiosidade alheia.

O problema começa quando não conseguimos nos reconhecer em meio a tantos desafios, a tantas mudanças e a tantas funções a que, diariamente, somos chamados. Ou seja, quando perdemos o eixo da própria existência. Tentemos imaginar uma roda em que os raios não convergem para o centro. Fatalmente a roda se quebra, se fragmenta. Aí está o ser fragmentado. Não se trata daquele que desempenha várias tarefas, nem tampouco daquele que desempenha tarefas diferenciadas. Trata-se daquele que, em suas múltiplas atividades, não possui um foco organizador, um eixo que reúna os raios de seu intenso agir. Sabemos que não poucos trabalhadores, especialmente em níveis degradantes, precários ou de escravidão, morrem pelo excesso de trabalho. Entretanto, excetuando esses extremos, o que nos estressa e mata em geral não é o trabalho em si, mas a dispersão das distintas tarefas. Sentimo-nos puxados em direções opostas e nos fragmentamos, sem uma realização mais profunda que oriente nossas energias rumo a um horizonte de sentido.

2. Migração e divórcio entre trabalho e emprego


No caso da população migrante, a fragmentação ganha uma carga mais pungente. Deixar sua família e cortar as raízes mergulhadas, há décadas, na terra em que nasceu e enterrou seus ancestrais é algo doloroso, quando não traumático. O trabalhador, nesse processo, rompe com laços tradicionais e "até mesmo com as vantagens do grupo primário de vizinhança”, diz Lewis Mumford em sua obra clássica A cidade na História. Por mais que tente recompor tais laços nos lugares de destino, o anonimato, a solidão, o isolamento e a saudade costumam seus companheiros de vida e trabalho. "É aí que realmente vamos encontrar a Multidão solitária”, continua o mesmo autor, referindo-se ao livro de David Riesman. Esse esgarçamento do tecido familiar, de parentesco ou de compadrio se acelera nas grandes cidades ou nas megalópoles, de nossa civilização metropolitana. Não deixa de se manifestar, também, i com igual intensidade, nos acampamentos de refugiados, nas casas de migrantes, no trabalho dos marítimos ou caminhoneiros e nos alojamentos de trabalhadores temporários, por exemplo. Sempre há o sonho de voltar a casa, é bem verdade, mas as condições de abrigo e de serviços duros e mal pagos contribuem para aumentar o peso da distância e a ausência de relações de afeto.

De fato, a migração temporária representa um dos cenários mais emblemáticos do que se poderia chamar de divórcio entre trabalho e emprego. Aqui entendemos por emprego um contrato entre as duas partes que dê um mínimo de estabilidade. Em outras palavras, um emprego no sentido pleno da palavra permite ao trabalhador planejar seu futuro, quer em termos de casamento e família, quer em termos de adquirir um terreno e construir sua casa. Emprego estável é sinônimo de segurança quanto à vida. Já o emprego temporário, seja ele vinculado à agroindústria ou agronegócio, à construção civil ou ao trabalho doméstico em geral, dificilmente permite sonhar com um futuro mais promissor. No máximo garante uns trocados para pequenas melhorias na casa ou na saúde da família, para pagamento de dívidas ou para comprar uma moto, por exemplo. Nesse caso, trabalho não significa propriamente emprego. Torna-se evidente o divórcio entre esses dois conceitos. Vale o mesmo, aliás, para todos os trabalhadores que, num quadro de desemprego, vivem de eventuais subempregos ou de bicos. Procuram emprego e se deparam com trabalho, e este em tais ocasiões quase sempre é redobrado. O subemprego, os serviços de bico ou temporários que, via de regra, submetem homens e mulheres (quando não crianças) a condições precárias é como que o símbolo dessa separação entre trabalho e emprego.

E o migrante, sujeito em geral aos serviços mais sujos e pesados, mais perigosos e mal remunerados, evidencia o divórcio entre um emprego duradouro e o trabalho sempre instável, inseguro, degradante e precário. A agricultura, em especial, conta com essa mão-de-obra temporária, na medida em que ela serve à sazonalidade do plantio e da colheita. Constata-se isso facilmente no corte de cana, na colheita da laranja e do café... Enfim nas safras agrícolas em geral. O mesmo vale para as grandes obras de construção civil, como também para os serviços domésticos ou para os bastidores do turismo: hotéis, restaurantes, serviço de camelô nas praias, etc. Igualmente o comércio sazonal, com piques em determinadas datas do ano (Natal, dia da criança, dia das mães e dos pais) costuma contar com esse tipo de empregado a varejo. Em todos esses casos, o trabalhador vive na corda bamba: por um lado, vê-se submetido à superexploração de suas potencialidades de trabalho, por outro, o emprego não lhe confere fôlego largo para programar um futuro estável para a família.

3. Fragmentação no Mundo do trabalho


Mas o divórcio entre trabalho e emprego não atinge somente o trabalhador migrante, imigrante ou temporário. Embora estes o sintam em primeiro lugar e com maior evidência, tal divórcio ocorre também na classe trabalhadora em geral. É próprio de cenários de crise e forte desemprego. Termos como globalização da economia, terceirização, flexibilização, entre outros, tendem a quebrar a espinha dorsal da organização dos trabalhadores e do sindicalismo em geral. Debilitados e fragilizados, eles passam a conviver com situações cada vez mais precárias e instáveis. Resulta que o emprego como garantia sólida para a ascensão social dá lugar a uma série de trabalhos eventuais e/ou bicos. Chega-se assim a uma proporção perversa: quanto maior o gasto de energias, menor a possibilidade de prever e remediar a vida futura. Não é incomum que esse divórcio acarrete outros tipos de separação, tais como, por exemplo, entre amor e sexo, entre matrimônio e amor, tempo livre e lazer; entre existência real e virtual, entre o ser pessoa e função social. Na impossibilidade de organizar a vida e o futuro, ambos se quebram, escorrem por entre os dedos.

Sendo obrigado a aceitar o que vem pela frente, dadas as condições desfavoráveis, a fragmentação entre trabalho e emprego, de um lado, e realização pessoal e familiar, por outro, fragmenta igualmente a própria pessoa. A precariedade no mundo do trabalho leva cada trabalhador a uma espécie de "salve-se quem puder”. Vive-se de oportunidades eventuais, de respostas imediatas para problemas igualmente imediatos. Vale insistir, o trabalhador vê-se mutilado na capacidade de programar, a largo prazo, sua vida e a de sua família. Incapacitado de encontrar um fio condutor para a própria existência, esta se rompe, converte-se em cacos, pedaços isolados. A instabilidade no emprego estilhaça qualquer projeto de vida. Quando o trabalho se desvincula de um contrato sólido, estável e de relativa duração, também o ser humano se desvincula de suas funções. Enquanto o homem e a mulher, por seu esforço, sonham alcançar novo patamar, a realidade se revela adversa, quebrada, fragmentada.

Divórcio semelhante sofre o emprego agrícola e a terra. Por trabalhar na propriedade que não lhe pertence, os pés do lavrador estão ligados ao chão, mas a cabeça encontra-se em outro lugar. Coisa comum na juventude rural, a qual, ainda ligada ao campo, sonha com os apelos, a sedução e as luzes da cidade. A falta de uma política agrária e agrícola, associada à falta de serviços de educação e escola, faz com que não poucos trabalhadores rurais se encontrem fisicamente vinculados à terra, mas com perspectivas de fugir em direção a outra forma de vida. É dessa separação entre terra e futuro, ou entre trabalho e emprego, que nasce muitas vezes o desejo de alcançar os países centrais, particularmente Estados Unidos, Europa e Japão. Enquanto a terra e o trabalho sobre ela representam uma instabilidade recorrente, o emprego num país de primeiro mundo, ou na cidade grande, se apresenta como um trampolim para subir na vida. O sonho da mobilidade social desencadeia a mobilidade territorial, mas pode resultar no pesadelo de trabalho pesado sem emprego fixo e estável.

País é um dos mais desiguais do mundo

Apesar de notável, a redução das desigualdades sociais e o aumento do número de pessoas incorporadas ao mercado de consumo no País ainda está longe de uma situação ideal. Pelo índice de Gini, a medida mais usada para avaliar a concentração de renda e que varia de 0 a 1, o Brasil evolui da marca de 0,6 em 2001 para 0,53 no ano passado. Embora seja uma queda considerável, o número atual ainda reflete um dos países mais desiguais do mundo. Entre os integrantes dos Brics, ficamos atrás da China, Índia e Rússia.

A reportagem é de Roldão Arruda e publicada pelo jornal O Estado de S. Paulo, 28-06-2011.

Ontem, ao falar sobre as mudanças e saltos econômicos que o Brasil vem festejando, o pesquisador Marcelo Neri, da FGV, também observou que não se pode esquecer do contexto em que eles se inserem: "Nosso atraso é enorme. Fomos um dos últimos países do mundo a acabar com a escravidão. Por isso as mudanças que ocorrem aqui têm um efeito muito forte. Por outro lado, também é preciso observar o quadro geral de mudanças da América Latina: entre 2000 e 2007 houve redução de desigualdades em 13 de 17 países do continente."

O pesquisador também observou que a evolução da classe média registrada no Brasil nos últimos anos não tem um grande pai ou grande responsável. Para ele, a classe média emergente é filha dela mesma. "O que mais me chama a atenção é o quanto essa população está disposto a investir na educação dos seus filhos, o que é um fator fundamental de mobilidade social. Em 1992, a média de anos de estudo na população acima de 25 anos era 4,9. Em 2009 ela já havia atingido a marca de 7,2 anos, com tendência a aumentar."

Em sua exposição, o economista-chefe do CPS da FGV também deu destaque a uma pesquisa realizada em 144 países pelo Instituto Gallup sobre as expectativas das populações em relação ao futuro. Ela mostrou que nenhum outro povo está mais esperançoso no momento em relação ao que vai acontecer daqui a cinco anos do que o brasileiro. "Somos os recordistas mundiais de felicidade futura", disse Neri.

Nas suas conclusões, o levantamento da FGV também aponta para a necessidade de se manter as medidas que garantiram o atual ciclo virtuoso de crescimento e de redução das desigualdades. "O controle da inflação é fundamental nesse processo, assim como a estabilidade democrática."

O trabalho menciona a necessidade de condições mais favoráveis para a criação de empregos formais, maiores investimentos na melhoria da qualidade de ensino e volumes maiores de crédito para pequenos empresários. "Nos últimos anos demos os pobres ao mercado, agora é preciso dar o mercado aos pobres", observou o pesquisador.

http://www.ihu.unisinos.br/index.php?option=com_noticias&Itemid=18&task=detalhe&id=44771

Crise terminal do capitalismo?

Leonardo Boff

Teólogo, filósofo e escritor

Adital

Tenho sustentado que a crise atual do capitalismo é mais que conjuntural e estrutural. É terminal. Chegou ao fim o gênio do capitalismo de sempre adaptar-se a qualquer circunstância. Estou consciente de que são poucos que representam esta tese. No entanto, duas razões me levam a esta interpretação.

A primeira é a seguinte: a crise é terminal porque todos nós, mas particularmente, o capitalismo, encostamos nos limites da Terra. Ocupamos, depredando, todo o planeta, desfazendo seu sutil equilíbrio e exaurindo excessivamente seus bens e serviços a ponto de ele não conseguir, sozinho, repor o que lhes foi sequestrado. Já nos meados do século XIX Karl Marx escreveu profeticamente que a tendência do capital ia na direção de destruir as duas fontes de sua riqueza e reprodução: a natureza e o trabalho. É o que está ocorrendo.

A natureza, efetivamente, se encontra sob grave estresse, como nunca esteve antes, pelo menos no último século, abstraindo das 15 grandes dizimações que conheceu em sua história de mais de quatro bilhões de anos. Os eventos extremos verificáveis em todas as regiões e as mudanças climáticas tendendo a um crescente aquecimento global falam em favor da tese de Marx. Como o capitalismo vai se reproduzir sem a natureza? Deu com a cara num limite intransponível.

O trabalho está sendo por ele precarizado ou prescindido. Há grande desenvolvimento sem trabalho. O aparelho produtivo informatizado e robotizado produz mais e melhor, com quase nenhum trabalho. A consequência direta é o desemprego estrutural.

Milhões nunca mais vão ingressar no mundo do trabalho, sequer no exército de reserva. O trabalho, da dependência do capital, passou à prescindência. Na Espanha o desemprego atinge 20% no geral e 40% e entre os jovens. Em Portugal 12% no país e 30% entre os jovens. Isso significa grave crise social, assolando neste momento a Grécia. Sacrifica-se toda uma sociedade em nome de uma economia, feita não para atender as demandas humanas, mas para pagar a dívida com bancos e com o sistema financeiro. Marx tem razão: o trabalho explorado já não é mais fonte de riqueza. É a máquina.

A segunda razão está ligada à crise humanitária que o capitalismo está gerando. Antes se restringia aos países periféricos. Hoje é global e atingiu os países centrais. Não se pode resolver a questão econômica desmontando a sociedade. As vítimas, entrelaças por novas avenidas de comunicação, resistem, se rebelam e ameaçam a ordem vigente. Mais e mais pessoas, especialmente jovens, não estão aceitando a lógica perversa da economia política capitalista: a ditadura das finanças que via mercado submete os Estados aos seus interesses e o rentismo dos capitais especulativos que circulam de bolsas em bolsas, auferindo ganhos sem produzir absolutamente nada a não ser mais dinheiro para seus rentistas.

Mas foi o próprio sistema do capital que criou o veneno que o pode matar: ao exigir dos trabalhadores uma formação técnica cada vez mais aprimorada para estar à altura do crescimento acelerado e de maior competitividade, involuntariamente criou pessoas que pensam. Estas, lentamente, vão descobrindo a perversidade do sistema que esfola as pessoas em nome da acumulação meramente material, que se mostra sem coração ao exigir mais e mais eficiência a ponto de levar os trabalhadores ao estresse profundo, ao desespero e, não raro, ao suicídio, como ocorre em vários países e também no Brasil.

As ruas de vários países europeus e árabes, os "indignados” que enchem as praças de Espanha e da Grécia são manifestação de revolta contra o sistema político vigente a reboque do mercado e da lógica do capital. Os jovens espanhóis gritam: "não é crise, é ladroagem”. Os ladrões estão refestelados em Wall Street, no FMI e no Banco Central Europeu, quer dizer, são os sumossacerdotes do capital globalizado e explorador.

Ao agravar-se a crise, crescerão as multidões, pelo mundo afora, que não aguentam mais as consequências da superexploracão de suas vidas e da vida da Terra e se rebelam contra este sistema econômico que faz o que bem entende e que agora agoniza, não por envelhecimento, mas por força do veneno e das contradições que criou, castigando a Mãe Terra e penalizando a vida de seus filhos e filhas.

[Leonardo Boff é autor de Proteger a Terra-cuidar da vida: como evitar o fim do mund, Record 2010

UMA REFLEXÃO SOBRE MADRE ASSUNTA

Ir Zelide Ceccagno,mscs*

A Congregação das Irmãs Missionárias de São Carlos Borromeo Scalabrinianas no mundo, foi melhor e mais amplamente conhecida depois das pesquisas e da divulgação de escritos à respeito da Co-Fundadora da Congregação, Madre Assunta Marchetti. Conhecer nossa história é conhecer o coração de cada membro e onde a vocação de cada irmã se fundamenta. Na alma de cada irmã existe o canto que nos convidou a uma Santa Vocação, o qual se reflete no grande coro/orquestra que criamos através dos trabalhos feitos com amor e compaixão no mundo migratório. Nosso canto é o canto de Jesus Cristo frente ao órfão, ao pobre, ao migrante e ao refugiado.

Cada final de dia, quando o véu da noite desce e nos imergimos na profundeza do amor de Deus, elevando a Ele nossa prece de ação de graças, nossa prece é de amor, e nosso descanso é seguro, porque temos certeza da prece daqueles que conhecem, imploram, amam Madre Assunta, e rezam pela sua Congregação. Sabemos, então, que por causa de Madre Assunta, somos amadas abundantemente, também nós.

A história colocou Madre Assunta Marchetti entre nossas primeiras irmãs em 1895. E com ela, nasceu cresceu e se afirmou o lado terno e feminino do Carisma. A visão do fenômeno migratório por parte de Scalabrini deu origem à resposta dos primeiros homens e mulheres religiosos, consagrados a Deus para o serviço das migrações. A dimensão feminina deste serviço teve em Madre Assunta o seu humilde início. Ela contribuiu profundamente no crescimento e revigoramento de um Instituto forte, fundado sobre a rocha, Cristo Jesus e que persiste ativo na história. Seu testemunho e união com Deus estão refletidos na memória, nos atos e virtudes heróicas daquela irmã MSCS que está em caminho para ser reconhecida, também oficialmente, como Santa, pois suas virtudes são realmente heróicas!

Desde o último século os dois Institutos, feminino e masculino à serviço dos migrantes, prestam na história, uma orientação elegante e clássica de serviços profissionais e especializados, direcionados ao mais necessitados dentre os migrantes. Para dar continuidade a esta obra somos chamadas a encarnar o ‘Deus Conosco’ em nossas lideranças. Madre Assunta imitou o Senhor e se deixava guiar pelo seu Espírito. Ela se manteve fiel ao Carisma, acima de tudo como guardiã do mesmo, desde o início da Congregação, e soube vencer muitas dificuldades e descriminações da sociedade. Ela também, através da graça, venceu os sofrimentos e foi a mulher forte diante das circunstâncias imprevistas que surgiram nos primeiros tempos de vida missionária no Brasil. Graças a ela, o carisma scalabriniano, na dimensão feminina, continua sendo uma benção para a Igreja.

Madre Assunta foi caracterizada, também, como a ‘humilde serva’. Isto a fez adquirir certo status materno no seio da Congregação, na Igreja e no mundo das migrações. Esta também é uma das características de muitos outros santos.

A globalização, o avanço tecnológico, a educação, tudo o que domina o mundo de hoje, também abriu novas fronteiras para a migração, decorrente disto, foi e é a expansão da Congregação. Pelo batismo o cristão assume o direito dever de “ir e anunciar” (Mt 28). O desejo espiritual de união com Deus impele cada irmã scalabriniana, em sua caminhada, para o anúncio e imitação daquela mulher evangélica, chamada Assunta Marchetti, que em sua maneira de seguir Jesus Cristo, serviu , seja na função de primeira superiora geral, bem como a servidora simples e generosa dos órfãos e abandonados.

Neste dia em que celebramos sua entrada na Pátria da Trindade, supliquemos sua mediação para podermos ser mais forte na doação, marcando, como ela, o mundo da migração. Feliz e abençoada festa de Madre Assunta.

*A direção do CSEM agradece Ir Zelide Ceccagno da PNSF pela colaboração na elaboração desta Mensagem sobre a Co-fundadora Madre Assunta

Suspensão da repatriação de haitianos: o sentido da petição de Acnur e da Oacdh

Wooldy Edson Louidor
Colaborador de AlterPresse
Adital
SJR LAC, 22 de junho de 2011.
Tradução: ADITAL

Ontem, 21 de junho de 2011, o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (Acnur) e o Escritório do Alto Comissariado para os Direitos Humanos (Oacdh) pediram conjuntamente aos governos dos países para os quais se trasladaram haitianos após o terremoto de 12 de janeiro de 2010 para que suspendam as repatriações involuntárias para o Haiti, por razões humanitárias. Além disso, ambas as Agências da ONU exortam aos governos a renovar, também por razões humanitárias, as permissões de residência e outros mecanismos que permitiram aos haitianos permanecer no exterior.

Essa petição transcendental de Acnur e Oacdh tem um sentido peculiar para os próprios haitianos que foram forçados a fugir de seu país após o terremoto e também para as organizações que vimos acompanhando essa população em diversas latitudes do mundo, principalmente na América Latina.

Uma petição feita em bom momento

Primeiramente, temos que ressaltar que essa petição chega em bom momento, no qual os haitianos estão vivendo uma situação muito difícil em vários países do continente americano, principalmente na América Latina (1). Uma situação na qual os diferentes governos fecham suas fronteiras aos haitianos; endurecem suas políticas de migração e asilo, inclusive com medidas drásticas, como as repatriações e colocam diferentes obstáculos legais e sociais para sua permanência e sua integração digna nas sociedades de acolhida!

A República Dominicana, Bahamas e os Estados Unidos (2) (antes do anúncio, em 17 de maio, por parte da Secretária americana de Homeland Security, Janet Napolitano, da prorrogação do Temporal Protected Status(TPS) a favor dos haitianos) (3) retomaram as deportações dos haitianos ara seu país de origem, violando os direitos fundamentais dos repatriados à vida, à saúde e à segurança, entre outros e os instrumentos internacionais de direitos humanos.

Da mesma maneira, as autoridades da Guiana Francesa e o governo do Brasil fecharam suas fronteiras aos haitianos no final de 2010 e começo de 2011, respectivamente. Passados dez meses do terremoto, o Estado francês havia começado a interpelar aos haitianos que se encontravam irregulares na Guiana Francesa a obrigá-los a deixar o território francês.

Por sua parte, as autoridades brasileiras deixaram a esperar centenas de haitianos desejosos de ingressar no Brasil em busca de oportunidades no Amazonas e na fronteira com o Peru. Na metade de fevereiro de 2011, o governo brasileiro suspendeu a concessão de estatutos de refugiados e, inclusive, rechaçou as solicitações de refúgio por parte dos haitianos, alegando que estes não se qualificavam na categoria de refugiados com base na Convenção de Genebra, de 1951.

O presidente equatoriano, Rafael Correa, anunciou através da imprensa, no passado dia 19 de junho, que seu país vem endurecendo em vários requisitos para conceder o estatuto de refúgio e, por isso, "reduziram-se drasticamente as solicitações de refúgio” (4). Os haitianos têm sido afetados por esse endurecimento.

Através de nossas visitas ao Equador e ao Chile, as duas principais portas de entrada dos haitianos para a América do Sul, o Serviço Jesuíta a Refugiados (SJR-LAC) escutou vários testemunhos de migrantes haitianos com respeito às dificuldades que enfrentam para sua integração em ambos os países. As dificuldades começam desde sua chegada, nos aeroportos, onde os agentes policiais e migratórios os submetem a interrogatórios rudes e, às vezes, desrespeitosos, até a homologação ou creditação de seus documentos de estudos ou de certidões de casamento ou de nascimento de seus filhos.

Em ambos países, os haitianos entrevistados(5) afirmam ser vítimas de estigmatização por parte de membros de ambas sociedades e, inclusive, de agentes policiais e de meios de comunicação que os consideram "delinqüentes” por ser migrantes, afro e haitianos. A estigmatização se manifesta em fatos tão simples como o rechaço de alguns proprietários de casas para arrendar-lhes ou de certos empregadores para dá-lhes emprego, tenham ou não seus documentos em regra e as competências para exercer as tarefas requeridas.

Uma petição formulada pela Acnur e por Oacdh

A petição cobra todo o seu sentido por ter sido formulada conjuntamente pelo Acnur e Oacdh. Apesar de que o Acnur tem sido sempre claro em relação ao que "não considera refugiados pelo desastre natural e pela cólera no Haiti”, a agência internacional vem pedindo aos diferentes governos que considerem a situação dos haitianos em seus territórios na perspectiva humanitária.

Por exemplo, no final de janeiro de 2010, "o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (Acunur) solicitou à Direção Nacional de Migração e Estrangeiros, de Costa Rica, tramitar permissões trabalhistas para os haitianos irregulares que residem em nosso país”(6).

Por seu lado, outros escritórios do Acnur na América do Sul vêm propondo a ideia de "facilitar um visto humanitário nos países de chegada dos haitianos, o que implica em capacitar ONGs e policiais da migração para determinar a vulnerabilidade das pessoas e/ou incorporá-las ao sistema de atendimento nos respectivos países”.

Também ale à pena as gestões do Acnur na República Dominicana que, a princípios do ano de 2010 (após o terremoto), pediu ao governo desse país conceder vistos humanitários que permitirão aos "que cuidam de pessoas gravemente feridas cruzar a fronteira legalmente, sem ter que eleger entre o bem estar de seu cônjuge ou filho na República Dominicana e a família ou os bens que deixaram no Haiti”(7), segundo Gonzalo Vargas Llosa, chefe da equipe de emergência do Acnur em Santo Domingo.

No caso das representações do Acnur no Brasil e no Peru, oferecem, através de órgãos da Igreja Católica, "assistência temporal de emergência aos haitianos que chegam” a ambos países, principalmente na fronteira brasileira com o Peru, com a Colômbia e com a Bolívia.

No caso do México, o Acnur respaldou um "projeto (de Sem Fronteiras) para buscar apoios econômicos da iniciativa privada que se destinem aos haitianos que tenham chegado ao país após o terremoto de 12 de janeiro”(8). Um projeto que previa "obter recursos que possam ser canalizados diretamente para a população para sua subsistência: alimentação, transporte, artigos de uso pessoal, alojamento, instalação de residência, capacitação para o emprego, atendimento médico, assistência legal e defensoria e gastos de interpretação e tradução”.

Do mesmo modo, a representação regional do Acnur com sede em Washington vem se mostrando preocupada com a situação dos haitianos que estão em diferentes países latino-americanos, pelo que apoiou a decisão de "atualizar as considerações de proteção com relação à população haitiana ou de origem haitiana que vive fora de seu país devido ao terremoto de 2010 ou anterior a essa data”.

O fato de Oacdh ter formulado a petição também lhe dá um significado especial no sentido em que reforça a ideia de que repatriar aos haitianos nesse momento de crise humanitária no Haiti constitui uma violação dos direitos humanos dos repatriados e dos instrumentos internacionais de direitos humanos.

Além disso, vale recalcar que a maioria dos haitianos que fugiram de seu país após o terremoto foram obrigados a fazê-lo justamente pela situação de violação sistemática de seus direitos humanos da qual foram vítimas em seu país de origem. Entre esses direitos que têm sido lesionados, pode-se mencionar os direitos econômicos, sociais e culturais: o direito à habitação, à saúde, à alimentação, à educação... (9).

Uma petição que tem seus limites

Nos alegramos com que Acnur e a Oacdh tenham formulado essa petição em um momento tão oportuno; porém, nos preocupa a aplicação efetiva da recomendação por parte dos governos, principalmente na América Latina.

Os governos latino-americanos e, inclusive, algumas organizações internacionais ficam presos na clássica dicotomia (migrante econômico ou refugiado?), perdendo de vista a realidade e a especificidade da situação de dezenas de milhares de haitianos com necessidade concreta de proteção internacional em diferentes países da região.

É elogiável a ousadia do Acnur no sentido de ir além do marco estabelecido pela Convenção de 1951 para pedir aos governos medidas especiais de proteção para os haitianos, tais como a não deportação e facilidades para sua regularização administrativa nos países de acolhida. No entanto, a mesma Convenção de 1951 pode ser utilizada como um pretexto para negar o ingresso e a permanência dos haitianos nos países de chegada, tal como vimos observando na América Latina.

Algumas recomendações

Faz-se necessário um diálogo com os diferentes governos e organismos regionais (tais como a OEA e a Unasul – União das Nações Sul-americanas, concretamente no caso latino-americano) para aplicar as recomendações do Acnur e da Oacdh através de medidas concretas e criativas de proteção dos cidadãos haitianos. Da mesma maneira, as duas agências da ONU deveriam criar um sistema de monitoramento junto com as organizações implicadas na atenção e proteção de migrantes e refugiados haitianos, para dar seguimento à aplicação efetiva da petição.

A proteção efetiva dos fluxos haitianos, um desafio para o regime de proteção internacional

A especificidade do caso dos haitianos em situação de mobilidade após o terremoto, que não cabe dentro da definição "legal” de um refugiado; porém, que não se pode circunscrever à categoria de "migrantes econômicos”, não é exclusiva aos haitianos.

Da mesma forma que o caso dos cidadãos do Zimbabue no período de 2005 a 2009, descrito por Alexander Betts em seu texto "National and international responses to the Zimbabwean exodus: implications for the refugee protection regime”, publicado por Acnur, o caso haitiano "propõe um desafio peculiar ao regime de proteção internacional dos refugiados”(10).

No caso concreto dos fluxos haitianos na América Latina, o SRJ-LAC junto com outras organizações internacionais e não governamentais, cremos que a Declaração de Cartagena é parte da solução. "É necessária a aplicação da definição de refugiado tal como propõe a Declaração de Cartagena, que reconhece como refugiados àquelas pessoas que fujam de seu país de origem para salvaguardar sua segurança, integridade física e vida devido à violência generalizada, violação massiva dos direitos humanos ou outras circunstâncias que tenham perturbado gravemente a ordem pública”(11).

Além disso, o SJR-LAC convida uma vez mais tanto aos governos quanto as sociedades da América Latina e do Caribe a ser mais solidários com o Haiti e a manifestar esta solidariedade com os haitianos que chegam aos países da região.

Finalmente, cremos que a solidariedade(12) é o princípio chave que pode motivar aos diferentes governos da região a abrir-se, além de suas políticas migratórias nacionais e das normativas de proteção internacional dos refugiados para entender o grave problema humanitário do Haiti, que força aos haitianos a fugir de seu país e para oferecer atenção e proteção a esses migrantes forçados.

A solidariedade convida a ver, antes de tudo e, sobretudo, ao ser humano (antes de ver ao não-cidadão, ao estrangeiro, ao refugiado...), a compadecer-se de seus sofrimentos e a fazer ações para reduzir seus sofrimentos; devolver-lhe sua dignidade e proteger sua vida e seus direitos humanos.


Wooldy Edson Louidor del SJR LAC


Notas:

(1) Ver artigo do SJR LAC publicado no dia 20 abril de 2011: "Sombre bilan de la situation des migrants haïtiens en Amérique”. Enlace: http://sjrmhaiti.org/spip.php?article116&lang=fr
(2) Ver artigo do SJR: Latin America: worrying increase in repatriations of Haitians, 6 May 2011. Enlace: http://www.jrs.net/news_detail?TN=NEWS-20110509031303&L=EN
(3) Secretary Napolitano Announces the Extension of Temporary Protected Status for Haiti Beneficiaries, Office of the Press Secretary, Release Date, May 17, 2011, Link:http://www.dhs.gov/ynews/releases/pr_1305643820292.shtm
(4) Enlace: http://www.rnw.nl/espanol/bulletin/ecuador-endurece-requisitos-para-conceder-estatus-de-refugiado-0
(5) Enlace: http://reliefweb.int/node/419401
(6) http://conamaj.go.cr/observatorio/index.php/article/acnur-solicita-al-pas-o
(7) Fonte: http://www.ayudafamiliar.info/visas-de-ayuda-a-las-victimas-del-terremoto-de-haiti
(8) Fonte: http://www.sinfronteras.org.mx/index.php?option=com_content&view=article&id=832:busca-embajada-apoyo-a-haitianos&catid=27:sin-fronteras-en-la-prensa&Itemid=69
(9) Ver: Una redefinición de la migración forzosa con base en los derechos humanos, Susan Gzesh, Revista Migración y Desarrollo, Primer semestre 2008, pp.97-126
(10) Alexander Betts, "National and international responses to the Zimbabwean exodus: implications for the refugee protection regime”, UNHCR, Geneva, June 2009, p. 3
(11) Comunicado de imprensa do SJR LAC por ocasião do Dia Mundial del Refugiado, 20 de Junho de 2011. Enlace: http://www.sjrlac.org/index.php?option=com_content&view=article&id=304:comunicado-dia-mundial-del-refugiado&catid=17:comunicados&Itemid=79
(12) Ver: CARTA ENCÍCLICA CARITAS IN VERITATE DEL SUMO PONTÍFICE BENEDICTO XVI A LOS OBISPOS, A LOS PRESBÍTEROS Y DIÁCONOS, A LAS PERSONAS CONSAGRADAS, A TODOS LOS FIELES LAICOS Y A TODOS LOS HOMBRES DE BUENA VOLUNTAD, SOBRE EL DESARROLLO HUMANO INTEGRAL EN LA CARIDAD Y EN LA VERDAD.