terça-feira, 31 de maio de 2011

Uma só verdade, uma só forma de usar a terra: o monólogo sobre a questão fundiária indígena em Mato Grosso do Sul

Thiago Leandro Vieira Cavalcante
Mestre em História pela UFGD e doutorando na mesma área pela UNESP/Assis-SP, cristão católico em atitude rebelde
Adital
Na última semana o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) promoveu em Dourados um seminário sobre a questão fundiária indígena em Mato Grosso do Sul. Lideranças indígenas Guarani, Kaiowá e Terena, assim como ruralistas estiveram presentes no auditório da UNIGRAN para expor seus pontos de vista sobre a questão. O fortíssimo aparato de segurança revelava a tensão que o tema carrega. As confortáveis caminhonetes com que chegavam os ruralistas e os ônibus fretados com que chegavam os indígenas revelavam a desigualdade de condições para atender ao convite do CNJ.



Das muitas falas equivocadas e preconceituosas abertamente propagadas pelos ruralistas e seus aliados, quero destacar duas. Além da característica truculência, o que chamou atenção na fala do governador André Puccinelli foi a afirmação de que a verdade é uma só. Também chamou atenção o diluído discurso da improdutividade das terras indígenas e de que as novas áreas que podem vir a ser demarcadas também serão improdutivas.



Essas duas falas revelam o ranço etnocêntrico com o qual as elites estaduais pensam a questão indígena e a de suas terras em especial. Não é preciso ser historiador, antropólogo, advogado ou qualquer outro profissional para saber que a verdade é relativa, para isso basta ter um mínimo de bom senso e sensibilidade. A verdade é relativa a quem a sustenta. Por tanto, a verdade para os indígenas certamente não é a mesma verdade defendida pelo governador.



Da mesma forma que não há uma única verdade, também não há uma única forma de se aproveitar a terra. De fato, falta assistência técnica e condições para que os indígenas cultivem mais alimentos em suas terras. No entanto, é pouco provável que eles queiram transformá-las em latifúndios monocultores, como é o caso da maioria das terras tradicionais em posse dos ruralistas. A relação que os indígenas mantêm com a terra não se limita à extração de meios para a sobrevivência física, vai além, a terra também é fonte de reprodução cultural e social, é morada de seres espirituais e muito mais.



As duas visões aqui criticadas têm suas raízes no etnocentrismo colonialista que ainda domina em Mato Grosso do Sul. Enquanto as pessoas envolvidas na questão fundiária indígena não se esforçarem para compreender e respeitar a alteridade será difícil imaginar que se pode chegar a uma solução pela via do diálogo, como propunha o CNJ.



Os ruralistas e seus aliados ganhariam muito se debatessem a questão de forma qualificada, apostando no diálogo e abandonando o discurso do bandeirante ressentido. Hoje de tão frágeis, seus discursos são facilmente desconstruídos, tanto é que no judiciário as causas indígenas têm prevalecido, principalmente na esfera dos egrégios tribunais.

Dia Internacional pela Saúde da Mulher chama atenção para mortalidade materna

Karol Assunção
Jornalista da Adital
Adital
Amanhã (28), celebra-se o Dia Internacional de Ação pela Saúde da Mulher. A data, definida no IV Encontro Internacional Mulher e Saúde, realizado em 1984, na Holanda, chama atenção para os direitos sexuais e reprodutivos das mulheres, com destaque para o problema da mortalidade materna.

De acordo com Alaerte Leandro Martins, integrante da Comissão Nacional de Morte Materna do Ministério da Saúde (MS) do Brasil pela Rede Feminista de Saúde, a data tem o objetivo de alertar para o cuidado da saúde da mulher. "As doenças que mais acometem as mulheres são preveníveis”, observa.

Destaque para os casos de mortalidade materna. O Brasil e outros 190 Estados-Membros da Organização das Nações Unidas (ONU) assumiram, em 2000, o compromisso de atingir as oito metas estabelecidas nos Objetivos de Desenvolvimento do Milênio (ODM), dentre elas o de reduzir, até 2015, 75% da mortalidade materna (ODM n°5).

Entretanto, o ODM número cinco ainda está longe de ser cumprido em muitos países em desenvolvimento. Para Alaerte, a meta "é quase impossível de ser cumprida” no Brasil até 2015. "Em 2009, até que o Brasil conseguiu reduzir, mas ainda está longe de alcançar [o Objetivo]”, comenta.

Dados do Ministério da Saúde revelam que a taxa de mortalidade materna no país caiu de 140, em cada 100 mil nascidos vivos, em 1990, para 75, em 2007. Apesar da redução, a integrante da Rede Feminista de Saúde alerta que é preciso haver uma mudança na estrutura do sistema de saúde brasileiro, com mais atenção ao pré-natal, e com o aumento e a melhoria nos serviços especializados e leitos para gestantes.

O problema, no entanto, não é exclusivo do Brasil. Segundo informações de Cimac Notícias, a Secretaria de Saúde do México já admitiu que o país norte-americano não cumprirá o 5° ODM. Para atingir a meta, México deveria registrar, até 2015, 22 mortes para cada 100 mil nascidos vivos. No ano passado, a taxa foi de 49,5 falecimentos para cada 100 mil nascimentos. Na Argentina, a taxa de mortalidade materna em 2009, segundo DyN, foi de 55 falecimentos para cada 100 mil nascidos vivos.

Hemorragias, hipertensão, doenças do aparelho circulatório complicadas pela gestação, parto ou puerpério, infecções, e aborto estão entre os fatores que mais causam a morte materna. Segundo o levantamento "Saúde Brasil 2009”, do Ministério da Saúde brasileiro, o aborto passou da quarta para a quinta causa de mortalidade materna no país. Alaerta Martins chama atenção para a importância da atenção ao abortamento seguro como estratégia para reduzir a morte materna.

De acordo com ela, estudos apontam que o aborto é a primeira causa de morte materna em Salvador, na Bahia. Em outros países, a situação também é preocupante. Informações de DyN relevam que o aborto inseguro é a principal causa de morte materna na Argentina.

Outro problema é a falta de atenção à saúde da gestante. No México, conforme noticia Cimac, entidades sociais reclamam da pouca atenção oferecida às gestantes que vivem com HIV. A organização Balance, por exemplo, comenta que, apesar das mulheres mexicanas representarem cerca de 30% da população com HIV no país, não existem políticas públicas direcionadas a elas. Além disso, denuncia que apenas 31,4% das gestantes atendidas em hospitais da Secretaria de Saúde fazem exame gratuito para saber se estão com o vírus da Aids.

ACNUR pede maior apoio internacional para aliviar tensões em campo na Tunísia

CAMPO DE CHOUCHA, Tunísia, 27 de maio (ACNUR) - O Alto Comissariado da ONU para Refugiados apelou a doadores e países de reassentamento que intensifiquem a assistência a milhares de refugiados e trabalhadores migrantes envolvidos nos distúrbios ocorridos esta semana em um campo próximo à fronteira da Tunísia com a Líbia.

Até pouco tempo, o campo de Choucha, no leste da Tunísia, abrigava mais de quatro mil trabalhadores migrantes e refugiados - a maioria deles formada por somalis, eritreus e sudaneses - que fugiram do conflito na Líbia desde março. No domingo à noite, um tiroteio no campo matou quatro eritreus e destruiu 20 tendas. A causa do conflito está sendo investigada.

Na segunda, um grande grupo de trabalhadores migrantes cercou o escritório do ACNUR no campo, demandando reassentamento imediato, disse hoje a porta voz do ACNUR, Melissa Fleming, aos jornalistas em Genebra. “Nossos funcionários e outros trabalhadores humanitários receberam ameaças de morte e foram obrigados a se retirar”.

Os manifestantes aumentaram a contrariedade da comunidade tunisina local ao bloquearem a principal avenida entre o ponto de entrada em Ras Adjir e o resto da Tunísia. Na manhã de terça-feira ocorreram outros enfrentamentos entre vários grupos do campo, matando ao menos duas pessoas. A situação piorou quando 500 locais se juntaram à violência.

Outras barracas foram saqueadas e queimadas e muitos residentes do campo fugiram para áreas desérticas na região. As autoridades tunisinas conseguiram restaurar a ordem na noite de terça-feira.

Quando o ACNUR levou um pequeno grupo inter-agêncial a Choucha, na manhã de quarta-feira, eles perceberam que cerca de dois terços do campo tinha sido saqueado e destruído. A maioria dos residentes perdeu todos ou quase todos seus pertences, e neste momento estão vivendo em barracas de plástico ou ao céu aberto. O exército tunisino participou com o ACNUR da distribuição de colchões, cobertores e alimentação.

Fonte: ACNUR

Desesperados, criadores de gado de Fukushima são obrigados a deixar suas terras e seus animais

A fazenda de Shouichi Matsumoto é tão antiga, que ele nem mesmo consegue determinar sua idade. “Veja, nenhum terremoto, incluindo o último, a fissurou,” diz o septuagenário, acariciando a magnífica construção. “Ela resistiu a tudo durante séculos, e agora precisamos deixá-la por causa de um risco que nem conseguimos ver”. Por causa da radioatividade emitida pela usina acidentada de Fukushima, a 25 quilômetros de lá, seu espaço no município de Katsurao se situa na parte da faixa de confinamento transformada em “área de evacuação planejada”, que deve ter seus habitantes retirados até o dia 31 de maio.

A reportagem é de Jérôme Fenoglio, publicada pelo Le Monde e reproduzida pelo Portal Uol, 28-05-2011.

Shouichi Matsumoto, sua mulher Shigeko e seus filhos irão no final do mês para o quarto de um complexo hoteleiro, à beira de um campo de golfe, a 50 quilômetros de lá. Mas contemplar os gramados não apagará a dor de ter abandonado seu verde vale. Shigeko fala sobre isso sussurrando: “Começamos a entender que tudo aquilo que sempre fizemos, tudo aquilo que gostamos de fazer, agora será proibido para nós: colher arroz, cultivar tabaco e, sobretudo, cuidar das vacas.”

Quatro vacas no total, cada uma com seu nome, da raça que fez a reputação da pecuária local em todo o Japão. Por elas, Shouichi enfrentou a radiação. Ele permaneceu, sozinho, enquanto a radiação invadia os vales, forçando sua família e os outros habitantes do vilarejo a se recolherem em um abrigo distante. No início, ele ficou tão apavorado que corria do estábulo para casa, para ficar o mínimo de tempo possível do lado de fora. Depois se acostumou, virou o guardião improvisado do vilarejo, zelando pelos habitantes e cuidando dos rebanhos dos vizinhos.

Estes foram voltando aos poucos, ao longo do mês de abril, primeiramente fazendo bate-voltas a partir do centro de refugiados, e depois se reinstalando no local. Para todos, uma obsessão se tornou mais forte que o medo: a saúde de suas vacas, que tanto emagreceram durante essas semanas de abandono. Hiroshi Kanno, 41, fala das suas como se fossem membros da família. Nesta quinta-feira (26), ele empurra de forma afetuosa, para dentro do caminhão, metade de seu rebanho de 14 cabeças. Elas serão vendidas no leilão de Motomiya, durante uma das sessões dedicadas aos animais provenientes das proximidades da usina.

Os animais de Hiroshi Kanno foram testados: eles não apresentam nenhum sinal de contaminação radioativa. Ele espera, portanto, conseguir um preço decente. No mercado de Motomiya, não são os preços que estão desabando, mas sim os criadores, muitas vezes idosos, quando percebem que sua razão de viver desaparecerá junto com a venda de seus últimos animais. Para resistir a essa angústia, Hiroshi Kanno decidiu não se desfazer de todas suas vacas. As outras, junto com as de Shouichi Matsumoto, irão para um estábulo coletivo, fora das regiões muito contaminadas.

Mas os dois criadores sabem que essa solução é só provisória. “Isso nos custará muito caro, especialmente porque a forragem deverá vir de muito longe”, diz Hiroshi Kanno. “E, por enquanto, não estamos recebendo nenhuma ajuda por causa do perverso sistema implantado pelo governo: até o dia 31 de maio, consideram que saímos por iniciativa própria. Portanto, não somos indenizados. Apesar de tudo, todos optaram por partir, porque depois dessa data corremos o risco de nos encontrar na mesma situação em que estão aqueles dentro da zona interditada”.

No centro de refugiados, Hiroshi de fato viveu com outros criadores da parte de Katsurao inclusa no semicírculo evacuado no dia 13 de março. Eles lhe contaram seu terrível dilema: continuar a deixar seus animais morrerem de fome ou abatê-los, como as autoridades estão exigindo agora. “Entretanto, nessa parte da área, suas vacas não estão mais contaminadas do que as minhas a 5 quilômetros de lá,” afirma Hiroshi. “Essas delimitações são absurdas.”

Assim, a faixa dos 20 quilômetros está fadada a se transformar em um imenso abatedouro para os cerca de 3.400 bovinos, 30 mil porcos e 630 mil frangos que sobreviveram ao abandono. Essas mortes se somarão às dos animais de estimação que seus donos não conseguiram salvar.

Nos breves retornos organizados pelas autoridades, essas pessoas usam sufocantes vestimentas antinucleares para passar duas horas em suas casas, abandonadas no auge do pânico, muitas vezes com o único intuito de reencontrar o cachorro ou o gato que elas não foram autorizadas a levar. É comum voltarem emocionadas por terem encontrado um cadáver ou constatado uma ausência. E sua angústia se junta à angústia sem fim dos criadores de Fukushima.

http://www.ihu.unisinos.br/index.php?option=com_noticias&Itemid=18&task=detalhe&id=43735

Brasil tem 20 mil trabalhadores em condição análoga à escravidão

O Brasil tem cerca de 20 mil trabalhadores em condição análoga à escravidão, segundo dados divulgados ontem pelo Ministério Público do Trabalho.

A informação é do jornal Folha de S. Paulo, 28-05-2011.

O ministério lançou ontem, em Brasília, a campanha nacional de combate ao trabalho escravo, com o objetivo de oferecer capacitação e ressocializar os trabalhadores.

"A campanha visa promover a educação e a conscientização do empregador, trabalhador e da sociedade", afirmou a procuradora do Trabalho, Débora Tito Farias.

Segundo o órgão, a prática é encontrada, além do campo, nas cidades, em empresas e na construção civil.

"O trabalho escravo não está distante. Ele pode ser o que nós, como consumidores, usufruímos", afirmou o procurador-geral do Trabalho, Otávio Brito Lopes.

http://www.ihu.unisinos.br/index.php?option=com_noticias&Itemid=18&task=detalhe&id=43734

Líder sem-terra é morto a tiros em Rondônia

O líder do Movimento Camponês Corumbiara, Adelino Ramos, conhecido como Dinho, foi assassinado ontem, em Vista Alegre do Abunã (RO). Segundo a assessoria da Secretaria de Produção do Amazonas, o agricultor morava em um assentamento do Incra localizado no sul de Lábrea, o município mais desmatado do Amazonas.

A reportagem é de Liege Albuquerque e publicada pelo jornal O Estado de S.Paulo, 28-05-2011.

Dinho foi atingido por seis tiros, chegou a ser levado para o hospital, mas não resistiu. De acordo com informações da secretaria, o agricultor vinha recebendo ameaças de madeireiros da região. O movimento liderado por Dinho foi formado depois do massacre de Corumbiara, em Rondônia, em fevereiro de 1996, com objetivo de dar continuidade às reivindicações dos camponeses sem-terra.

Em nota, a Presidência repudiou o crime. "Adelino era uma liderança reconhecida na Região Norte. Há três dias o Brasil se chocou com a execução de duas lideranças em circunstâncias semelhantes, no Pará. Hoje, mais uma morte provavelmente provocada pela perseguição aos movimentos sociais. Essas práticas não podem ser rotina em nosso país e precisam de um basta imediato", diz a nota, assinada pelos ministros Gilberto Carvalho, da Secretaria-Geral da Presidência, e Maria do Rosário, de Direitos Humanos.

http://www.ihu.unisinos.br/index.php?option=com_noticias&Itemid=18&task=detalhe&id=43725

Quando a língua se transforma em objeto de manipulação ideológica e controle social. Entrevista especial com Marcos Bagno

Depois da discussão sobre o conteúdo dos livros didáticos oferecidos pelo governo, em que são apresentados supostos erros de português, o doutor em filologia e língua portuguesa Marcos Bagno é taxativo: a polêmica que envolve o assunto é falsa. Na opinião do especialista, que conversou por e-mail com a IHU On-Line, a mídia seria a grande responsável por criar o debate.

“Como a grande mídia é, em bloco, aliada dos grupos dominantes e, portanto, antipetista declarada, o episódio está servindo para se atacar o governo Dilma via MEC”, avalia.

De acordo com seus estudos e experiências, o fato de alguém pronunciar uma palavra de uma forma ou outra nada tem a ver com a constituição da linguagem, “mas sim com uma esfera diferente, que é a da normatização da língua, um fenômeno sociocultural em que a língua se transforma em objeto de manipulação ideológica e controle social”. Além disso, é importante destacar que a constituição do padrão sempre se pautou, tradicionalmente, pela linguagem literária.

“Por isso, a norma padrão é tão obsoleta e anacrônica: não se inspira na realidade dos usos, nem mesmo nos usos escritos da literatura contemporânea, mas numa literatura que data de mais de 200 anos”, explica Bagno.

Graduado em Letras pela Universidade Federal de Pernambuco (1991), Marcos Bagno é mestre em Linguística pela Universidade Federal de Pernambuco, doutor em Filologia e Língua Portuguesa pela Universidade de São Paulo e professor-adjunto do departamento de Línguas Estrangeiras e Tradução da Universidade de Brasília – UnB.

Confira a entrevista.

IHU On-Line - O senhor diz que há quinze anos os livros didáticos de língua portuguesa aprovados pelo MEC abordam o tema da variação linguística. Quais são, então, os motivos da polêmica em relação ao Programa Nacional do Livro Didático (PNLD) 2011 e dos livros distribuídos pelo MEC? Vai se admitir a pronuncia e a escrita de uma mesma palavra de formas diferentes?

Marcos Bagno - A polêmica é, na verdade, uma falsa polêmica e se deve exclusivamente à ignorância por parte da grande mídia do que se faz em termos de educação linguística no Brasil. Apenas isso. Há também uma questão política: como a grande mídia é, em bloco, aliada dos grupos dominantes e, portanto, antipetista declarada, o episódio está servindo para se atacar o governo Dilma via MEC.

IHU On-Line - As crianças são ensinadas a escrever e a falar de acordo com a norma culta, considerada adequada. Como fica, a partir da “aceitação” da linguagem oral sobre a escrita, essa adequação no mercado de trabalho e nas escolas? Quais os limites disso para a constituição de um idioma padrão?

Marcos Bagno - Não existe nenhuma “admissão da linguagem oral sobre a escrita”. A língua falada e a língua escrita convivem lado a lado no ensino. Evidentemente, como a escrita é uma forma secundária de língua (já que todos os seres humanos falam, mas nem todos escrevem: já nascemos dotados de um aparelho fonador, mas ninguém nasce com um lápis pendurado no dedo), a escola se dedica mais à leitura e à escrita, porque essas atividades não pertencem ao cotidiano da grande maioria dos alunos. A constituição do padrão sempre se pautou, tradicionalmente, pela linguagem literária. Por isso, a norma padrão é tão obsoleta e anacrônica: não se inspira na realidade dos usos, nem mesmo nos usos escritos da literatura contemporânea, mas numa literatura que data de mais de 200 anos.

IHU On-Line - Os conceitos de adequação e inadequação linguísticas estão sendo apropriadamente trabalhados nos livros didáticos? De que tratam esses conceitos?

Marcos Bagno - Os livros didáticos diferem muito entre si no tratamento dessas questões. Alguns fazem um trabalho mais satisfatório, outros menos satisfatório. De todo modo, adequação e inadequação têm a ver com o grau de aceitabilidade que cada pessoa espera obter ao falar e ao escrever. Têm a ver com reconhecer as expectativas dos interlocutores/leitores em determinados contextos de interação e tentar atender (ou não) a essas expectativas. Para isso, é importante o conhecimento da noção de gênero textual, porque cada gênero é esperado em contextos específicos, com finalidades sociais específicas. Daí a importância de trabalhar, na escola, com os mais variados gêneros falados e escritos.

IHU On-Line - Na constituição da linguagem, é aceitável que uma pessoa escreva uma palavra do jeito que ela é pronunciada ou escreva uma frase com a concordância usada oralmente?

Marcos Bagno - A constituição da linguagem é um fenômeno extremamente complexo e sofisticado, que envolve a cognição humana, as interações sociais, a constituição das identidades particulares e comunitárias. O fato de alguém pronunciar assim ou assado ou de escrever uma frase do jeito A ou B nada tem a ver com a constituição da linguagem, mas sim com uma esfera diferente, que é a da normatização da língua, um fenômeno sociocultural em que a língua se transforma em objeto de manipulação ideológica e controle social.

IHU On-Line - Qual o sentido de dar tanta importância para uma convenção, que é o que as palavras são? No caso da palavra ideia, por exemplo, antes era inaceitável escrevê-la sem acento e hoje é admitido. Qual sua opinião sobre as convenções em torno do idioma?

Marcos Bagno - As convenções linguísticas estão no mesmo plano das demais convenções sociais. Da mesma forma como nós regulamos e normatizamos todas as esferas da vida social - do casamento ao modo de se vestir, da construção das casas à numeração dos sapatos etc. -, também o uso da língua, numa sociedade coesa, passa por regulações. No caso da escrita, ou mais restritamente, da ortografia, ela é unificada para que haja uma possibilidade de comunicação mais eficiente entre os milhões de falantes da língua. A ortografia, no entanto, não tem como regular a língua falada. Todos nós escrevemos “porta”, mas sabemos que o segmento sonoro [r] dessa palavra é produzido foneticamente de diversas maneiras em diversos lugares diferentes. A ortografia pode ser uniformizada, mas a fala jamais.

IHU On-Line – Como a escola ensina a linguagem popular na sala de aula? É possível falar em linguagem adequada e inadequada?

Marcos Bagno - Não existe “ensino da linguagem popular na sala de aula”. O papel da escola é ensinar o que as pessoas não sabem. Não é preciso ensinar ninguém a falar do modo “popular”, porque todos já sabem falar assim. O importante, na escola, é ampliar o repertório linguístico dos aprendizes, oferecendo a eles o acesso a outros modos de falar e, principalmente, à cultura letrada.

IHU On-Line - Alguns críticos ao PNLD argumentam que os livros não devem conter erros gramaticais e linguísticos e que devem ser instrumentos para o aluno aprender a norma culta. Que ponderações faz a partir destas críticas?

Marcos Bagno - Esses críticos não merecem muita consideração porque não têm formação específica na área do ensino de língua para poder emitir opiniões abalizadas. Falam da boca para fora, por ter ouvido o galo cantar sem saber onde. Para começar, não existem “erros gramaticais e linguísticos”; essa é uma noção que não faz nenhum sentido para os pesquisadores e teóricos da área. A ideia de “erro” na língua é pura convenção social; não tem nada que ver com o funcionamento da língua propriamente dita. Além disso, o ensino dessa “norma culta” (que ninguém sabe definir o que seja) é parte integrante dos projetos educacionais desde sempre.

IHU On-Line - O senhor defende que se deve abandonar o mito da unidade do português no Brasil. Que alternativas aponta para resolver o “impasse” entre a linguagem escrita e a linguagem oral? Como, em um país heterogêneo como Brasil, deve-se discutir essa questão?

Marcos Bagno - Não existe impasse entre a língua falada e a língua escrita. Acreditar que ele existe é resultado de uma concepção arcaica das relações entre fala e escrita, em que a escrita é considerada um bloco homogêneo e a fala, um universo caótico. Ora, a escrita é tão heterogênea quanto a fala, e a fala é tão estruturada e regular quanto a escrita. As duas modalidades se interpenetram o tempo todo: não existe texto escrito “puro”; toda manifestação escrita é fatalmente híbrida. E a fala também pode apresentar influxos da escrita, sobretudo entre falantes mais letrados e numa sociedade com forte predomínio da escrita.

IHU On-Line - O senhor também argumenta em suas obras que as regras gramaticais do idioma consideradas certas são as utilizadas em Portugal e não correspondem à língua falada e escrita no Brasil. Tantos anos depois da colonização, porque o Brasil ainda adota as regras gramaticais de Portugal? É o caso de o Brasil construir suas próprias regras gramaticais?

Marcos Bagno - Passados 500 anos do início da colonização, o português europeu que foi levado para as diferentes colônias se transformou em outras línguas, exatamente como o latim levado para as províncias do império romano se transformou em várias línguas. O português brasileiro é uma língua muito aparentada ao português europeu, é claro, mas também é uma língua que tem sua própria gramática, sua fonologia, sua morfologia, sua sintaxe própria, etc. Já começamos a produzir gramáticas do português brasileiro que deixam de lado as regras tradicionais e tentam descrever como de fato é a nossa língua.

IHU On-Line - Quais são os mitos que envolvem o idioma português?

Marcos Bagno - São muitos: o mito de que o Brasil é um milagre linguístico por ser um país monolíngue (o que não é verdade: temos mais de 180 línguas faladas em nosso território), de que o português é uma das línguas mais difíceis do mundo, de que existe algum lugar (em geral o Maranhão) onde se fala melhor o português etc., etc. Tudo superstição. Nenhuma dessas afirmações tem sustentação científica.

http://www.ihu.unisinos.br/index.php?option=com_noticias&Itemid=18&task=detalhe&id=43709

CPT se reúne com o governo para discutir violência no campo

A Comissão Pastoral da Terra (CPT) irá participar nessa terça-feira, 31 de maio, de audiência com a ministra da Secretaria Especial dos Direitos Humanos, Maria do Rosário, para discutir a violência no campo e os assassinatos de 4 pessoas na região Norte na última semana.

A notícia é da Comissão Pastoral da Terra – CPT, 30-05-2010.

A Secretaria Especial de Direitos Humanos da Presidência da República convidou representantes da CPT para uma audiência que se realizará nessa terça em Brasília, para discutir as ameaças de morte contra lutadores e lutadoras da terra e sobre a violência no campo e os assassinatos da última semana.

Em cinco dias foram 4 trabalhadores e trabalhadoras, defensores dos direitos dos camponeses e da floresta, os que tombaram diante do poder e da impunidade persistente nos rincões do Brasil. O casal de ambientalistas José Cláudio e Maria do Espírito Santo, vinham recebendo ameaças desde 2001, segundo registros da CPT. Denúncias foram feitas aos governos estadual e federal, e mesmo assim a morte desses dois lutadores se concretizou.

Da mesma forma, Adelino Ramos, Dinho, trabalhador rural no sul do Amazonas, também foi morto enquanto vendia as verduras que produzia no assentamento onde vivia. Ele, sobrevivente do massacre de Corumbiara, em Rondônia, ocorrido no ano de 1995, denunciou no ano passado, em reunião com ouvidor agrário nacional, Gercino Filho, em Manaus, que estava jurado de morte. E mais esse crime se concretizou. Já no dia 28 de maio, um assentado de 25 anos, Herenilton Pereira, foi encontrado morto perto do local onde o casal havia sido assassinado. Há indícios de que ele havia visto os motoqueiros que atiraram nos ambientalistas e, por isso, também foi morto.

A CPT vem há anos denunciando ações desse tipo em todo o país. Seu relatório anual, Conflitos no Campo Brasil, publicado anualmente há 26 anos, traz denúncias tanto de pessoas assassinadas e áreas em conflito, quanto de pessoas que são ameaçadas em todo o país. A morosidade do governo e dos órgãos de fiscalização competentes ajuda para que se mantenha esse grau de violência no campo brasileiro.

Segundo os dados da CPT, de 2000 a 2010, 1.855 pessoas em todo o país foram ameaçadas pelo menos uma vez. Desse total, 207 pessoas foram ameaçadas mais de uma vez, sendo que 42 acabaram sendo assassinadas e 30 chegaram a sofrer tentativa de assassinato. De 2000 a 2010, foram assassinadas 401 pessoas em todo o país.

Na audiência que se realizará amanhã, a CPT apresentará mais uma vez ao governo essas informações, e mais detalhes do trabalho de coleta de dados relativos a conflitos no campo em todo o país que ela organiza. Na ocasião estarão presente Dirceu Fumagalli, da coordenação nacional da CPT, José Batista Afonso, advogado da CPT em Marabá, Paulo César Moreira, da CPT no Mato Grosso e Antônio Canuto, secretário da coordenação nacional da CPT.

http://www.ihu.unisinos.br/index.php?option=com_noticias&Itemid=18&task=detalhe&id=43805

Crimes no PA são frutos da impunidade, afirma Pedro Casaldáliga

Mais um episódio da guerra no campo. Assim Dom Pedro Casaldáliga define o assassinato dos líderes extrativistas José Claudio Ribeiro da Silva e Maria do Espírito Santo da Silva, ocorrido na semana passada no Pará.

A entrevista é de Eleonora de Lucena e publicada pelo jornal Folha de S. Paulo, 31-05-2011.

Fundador da Comissão Pastoral da Terra e do Conselho Indigenista Missionário, o bispo ganhou notoriedade internacional ao denunciar brutalidades de madeireiros, policiais e grandes proprietários rurais no período da ditadura militar.

Agora, aos 83 anos, o bispo emérito de São Félix do Araguaia (MT) segue fazendo o seu diagnóstico do país.

Eis a entrevista.

Qual o significado do duplo assassinato no Pará?

A morte de José Claudio e da Maria do Espírito Santo não é um fato isolado. É mais um episódio da guerra no campo. É fruto da impunidade e da corrupção marcantes sobretudo no Pará, campeão em violência no campo, em desmatamento e queimadas.

Qual é a situação dos conflitos agrários?

Simplificando, com uns traços panorâmicos, poderíamos dividir o nosso Brasil em três. Primeiro, o Brasil hegemônico, que está a serviço do agronegócio, depredador, monocultural, latifundista, excluidor dos povos indígenas e do povo camponês. Fiel à cartilha do capitalismo neoliberal. Uma oligarquia política tradicionalmente dona do poder e da terra.

Quem fica do outro lado?

O povo da terra indígenas, camponeses da agricultura familiar, ribeirinhos, extrativistas, sem terra consciente de seus direitos e organizado em diferentes instâncias de sindicato, de associação e respaldado por grupos militantes solidários do movimento popular, das pastorais sociais, de intelectuais e artistas, de universitários, de certas ONGs.

Quem é o terceiro grupo?

É uma maioria média desinformada ou mal informada, que não vincula as lutas do campo com as lutas da cidade, no dia a dia da sobrevivência. Que não percebe ainda que a reforma agrária é uma luta de todos.

Qual é o papel do Estado?

O Estado continua omisso frente a três grandes dívidas: a reforma agrária, a política indigenista, a política doméstica e ecológica do consumo interno.

Como é o movimento dos trabalhadores rurais hoje em comparação com o período da ditadura militar?

Hoje, evidentemente, o Brasil está numa democracia, pelo menos formal. As organizações do povo da terra têm uma relativa liberdade de ação. O MST é um caso emblemático. Os governos do PT pelo menos não satanizam essa luta.

Qual é o papel da Igreja Católica nesse movimento? Como a orientação mais conservadora do Vaticano interfere?

A Igreja já não deve assumir, como nos tempos da ditadura, uma atuação de suplência abrangente. A Igreja deve continuar sendo -e talvez mais do que nunca, pela ambiguidade oficial e internacional- uma Igreja servidora e profética. Que não se omita nunca ante o clamor dos pobres.

http://www.ihu.unisinos.br/index.php?option=com_noticias&Itemid=18&task=detalhe&id=43811

O novo Código Florestal e o atual panorama politico. Uma análise. Entrevista especial com Fabiano Santos

Para o cientista político Fabiano Santos, a votação do novo Código Florestal é um episódio bastante revelador que explica a situação política brasileira atual. Em entrevista à IHU On-Line, realizada por telefone, ele diz que “existe uma força econômica que se expressa na busca de espaço político importante no campo. A essa força se dá o nome de agrobusiness. Esse setor, em vários episódios no desempenho do processo econômico brasileiro, sustentou alguns fundamentos importantes na economia”. O episódio também revela, segundo o professor, a desatenção do governo federal em relação ao processo econômico e político em movimento. “Foi o Congresso quem deu voz ao novo Código. Só quando a coalizão já estava montada, o governo quis vetar, mas não conseguiu”, constata.

Fabiano afirma ainda que, no caso da votação do novo Código Florestal, não houve uma mudança de ideias de partidos da base aliada do governo como o PCdoB. Ocorreu que “os interesses do partido se aliaram aos interesses do agrobusiness por uma questão tática momentânea. Portanto, não há um deslocamento do partido em direção a uma postura menos esquerda por conta disso. O que está em jogo é a visão nacionalista do processo”.

Fabiano Santos é cientista político e professor do Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UFRJ.

Confira a entrevista.

IHU On-Line – O que a votação do novo Código Florestal expressa sobre a política brasileira contemporânea?

Fabiano Santos – É um episódio muito interessante e revelador sob vários aspectos da política brasileira na atualidade. Existe uma força econômica que se expressa na busca de espaço político importante no campo. A essa força se dá o nome de agrobusiness. Esse setor, em vários episódios no desempenho do processo econômico brasileiro, sustentou alguns fundamentos importantes na economia. É natural, portanto, que ele se organize e busque políticas no governo que atendam aos seus interesses. É um setor, por outro lado, que tem conflitos importantes com outras forças sociais – seja do ponto de vista da economia, seja do ponto de vista de valores ou das inclinações políticas.

Além disso, é possível que essa força estabeleça coalizões com setores e com outros atores políticos que, naturalmente, parecem possuir interesses antagônicos. Existe, porém, espaço para corrigir os pontos em que o interesse é mutuo. Nesse caso da votação do Código Florestal, foi exatamente isto que acabou aparecendo. O agrobusiness se articulou bem com os partidos e com os setores dos partidos. Juntos, conseguiram avançar em alguns pontos. Houve uma articulação importante no âmbito partidário e societal e o processo foi sendo desenvolvido com articulações que resultaram em coalizões. Por isso, ele foi bem sucedido na sua tramitação.

Outra coisa que esse episódio revela sobre a política contemporânea brasileira é que o governo não deu atenção para o avanço do projeto do Código a tempo de fazer uma negociação que pudesse ser mais palatável à presidenta Dilma e ao partido principal do governo. O projeto avançou e o governo não observou que havia um processo econômico e político em movimento embutido nessa questão. Foi o Congresso quem deu voz ao novo Código. Só quando a coalizão já estava montada, o governo quis vetar, mas não conseguiu.

Temos lições a esse respeito: o governo não pode achar que o Congresso não faz nada e que basta usar medida provisória e orçamento para que se consiga governar ou que basta distribuir cargos para os ministros do PMDB que o assunto esteja resolvido. Não é assim que funciona a política; o governo tem que aprender com isso. Ele se isolou e perdeu. Ele foi derrotado por conta dessa concepção política errada. Além disso, existem forças vivas na economia e na política que se articulam independentemente do governo e tentam produzir políticas que atendam aos seus interesses.

IHU On-Line – Como o senhor analisa as forças políticas a favor e contra o Código Florestal? Que partidos defendem o Código e quais são contrários?

Fabiano Santos – Todos os partidos estão um pouco incomodados com as restrições impostas pelo atual Código em relação às possibilidades de expansão da economia. Todos os partidos da base, do PMDB ao PCdoB, indicaram voto a favor. Dois partidos se posicionaram contra: o PT e o PV. Claramente, o que ocorre entre o PT e o PV é uma disputa por um eleitorado de classe média urbana. Este é um eleitorado voltado para uma agenda que podemos chamar de pós-industrial.

Dentro dessa agenda, a questão ambiental é muito importante. Parece que isso assustou o PT na eleição de 2010, quando a Marina Silva teve uma votação muito expressiva. Há uma clara estratégia do partido de cativar esse eleitorado, não deixando que escape para uma terceira via. O fato de o PT ter perdido suas bases na intelectualidade e nas classes mais urbanas também contribui para essa tentativa que o partido fez de se mostrar contra o Código como se pudesse colocar o Brasil numa posição claramente frágil em relação a essa questão ambiental.

Existem forças partidárias, na sua maioria avassaladora, que precisavam de algumas mudanças importantes, pois a expansão da economia depende de algumas liberações que o código implica. Do outro lado dessas forças estavam o PT e o PV numa disputa pela opinião pública nacional e internacional. Tem, portanto, presente aí nesse espaço, um conflito de ideias, um conflito de interesses e um conflito eleitoral.

IHU On-Line – Como compreender que um deputado filiado ao PCdoB, como Aldo Rebelo, que se diz de esquerda e faz alianças com o PT, propõe um novo Código Florestal que favorece os ruralistas? A postura do PCdoB mudou ao longo do tempo?

Fabiano Santos – Não. O PCdoB não mudou. Ele é de esquerda, mas é um partido nacionalista. É uma esquerda que observa na questão nacional um ponto fundamental para avançar no processo do socialismo. Não há como desassociar o socialismo do nacionalismo. O PCdoB segue essa linha há muito tempo, assim como o PDT e PSB.

A esquerda nacionalista do Brasil expressa o interesse de quem tem um tipo de discordância em relação à soberania completa e absoluta do Estado brasileiro sobre determinadas parcelas da região nacional, principalmente a Amazônia. Essa é uma disputa real. O PCdoB está muito atento a esse ponto e tem uma posição muito firme. Nesse caso do Código Florestal, os interesses do partido se aliaram aos interesses do agrobusiness por uma questão tática momentânea. Portanto, não há um deslocamento do partido em direção a uma postura menos esquerda por conta disso. O que está em jogo é a visão nacionalista do processo.

IHU On-Line – A aprovação do Código Florestal pelos deputados pode ser considerada uma derrota do movimento social?

Fabiano Santos – Não. Ela é uma derrota de alguns movimentos sociais apenas. Por isso, essa aprovação também é uma vitória de outros movimentos sociais. Há vários movimentos sociais articulados a favor da aprovação da mudança do Código. O agrobusiness é um movimento social, porém ligado ao capital. Não é um movimento social tal como a Sociologia observa, mas é um movimento no sentido que compõe um grupo de interesses que se articula e luta na política para reverter os interesses em políticas públicas.

IHU On-Line – Alguns sociólogos e cientistas políticos dizem que PT e PSDB trocam acusações, se dizem diferentes, mas, estarão juntos no futuro. O senhor concorda? Em que aspectos os partidos se parecem e se distanciam no jeito de fazer política?

Fabiano Santos – Não há como pensarmos nos dois partidos juntos se os termos do conflito permanecerem como estão. Por isso, discordo dessa análise porque não vejo como o desdobramento do conflito, tal como ele ocorre hoje, pode resultar numa eventual união no futuro.

O PT é um partido de base sindical que tem no seu nascimento uma postura socialista. Evidentemente, ele vai se readequando à realidade. Todavia, não tem na sua estratégia e discurso uma postura revolucionária, mas tem a defesa de teses importantes que são contrárias às forças da direita. Por exemplo, uma maior participação do Estado na coordenação do desenvolvimento econômico; utilização dos bancos públicos e estatais para impulsionar os investimentos; a participação dos sindicatos como sociedade nas grandes empresas para definir política estratégica de investimento. Portanto, existe no PT uma ideia, consagrada no segundo governo Lula, que é a de visão de capitalismo do Estado.

E não é essa a visão do PSDB. Este partido está, cada vez mais, saindo do centro – onde nasceu – e indo para uma extrema direita. Eles estão se deslocamento naturalmente por essa dinâmica eleitoral.

Por que eles se parecem, então? Porque são os maiores partidos e competem por um eleitor que dá o voto de minerva nas eleições. Por isso, acabam tentando construir alianças de coalizão nas diversas camadas econômicas. Isso acaba aproximando-os. Eles têm que apoiar as mesmas políticas: o PSDB diz que não vai acabar com o Bolsa Família e o PT que não vai estatizar a economia toda.

IHU On-Line – Como compreender as alianças partidárias feitas no Brasil, em que partidos se aliam em alguns estados ou municípios e são concorrentes em outros?

Fabiano Santos – Essa é uma discussão no federalismo político brasileiro. Nós temos diversos subsistemas estaduais e municipais. Cada estado tem uma determinada história partidária e isso dá certa autonomia. Por exemplo, o PT foi muito perseguido porque organizou as forças da esquerda no Rio Grande do Sul, em Minas Gerais e em São Paulo. No Rio de Janeiro, quem fez isso foi o PDT. Nessas forças populares, hoje, o PMDB acaba sendo referência. Em diferentes estados, por diferentes motivos, os partidos foram se agrupando e decidindo suas estratégias de diversas maneiras. O que temos no âmbito nacional é a existência de subsistemas político-partidários e não um sistema que vale para todos os estados.

IHU On-Line – Para muitos especialistas, o Greenpeace fez muito mais do que os partidos de esquerda na oposição ao Código Florestal. Podemos dizer que os partidos são cada vez menos referência para parcela da sociedade? Podem estar sendo substituídos por outras forças políticas e sociais?

Fabiano Santos – Substituindo não, mas têm seu trabalho complementado. Sempre existiu a ideia de grupos de interesse que se articulam e tentam pressionar o sistema político seja no Congresso, no Executivo ou no Judiciário. Faz parte. Não vejo isso como algo que esteja expressando uma doença institucional grave. Há um complemento do âmbito participativo ao âmbito representativo. Os partidos se aproveitam disso para avançar em suas agendas. No caso específico, o PT e o PV estavam muito isolados. O PT estava dividido, sem saber como entrar na discussão. Já o PV tinha posição clara, mas não tem força real.

IHU On-Line – Que avaliação faz do governo Dilma? Percebe o início de uma crise no governo a partir da derrota da votação do Código Florestal e da suspensão dos kits para combater a homofobia nas escolas? Alguns veículos também especulam em torno da ausência da presidenta nas últimas semanas. O recuo da distribuição do kit tem algo a ver com a preservação da imagem do ministro da Casa Civil, Antônio Palocci, no sentido de evitar uma crise futura?

Fabiano Santos – Às vezes, as coisas acontecem ao mesmo tempo e, com isso, tendemos a fazer uma leitura conspiratória. É perfeitamente possível o governo ter visto o material dos kits e ter dito: “O material não está bom; vamos refazer porque a ideia não é bem essa”. Isso não está vinculado ao que ocorreu na implantação do Código Florestal. O governo acerta e erra e vai ajustando as estratégias conforme a dinâmica. Isso é natural. A política não é uma prática onde se vê o caminho todo de uma vez por todas, cuja estratégia é definida uma só vez. Conforme as coisas vão acontecendo, elas vão sendo ajustadas.

Creio que foi uma decisão acertada o fato de o governo ter endurecido na questão da distribuição de cargos do segundo escalão com perfil mais técnico. Na votação do salário mínimo, o governo se saiu muito bem. A questão da economia está sendo bem administrada, a economia dá sinais muito positivos. Há ainda projetos que vão ser implantando, vai sair um projeto muito bonito em relação à pobreza. Agora, na questão do Congresso, o governo vem agindo mal, mas isso acontece desde o governo Lula. Esse sempre foi um ponto fraco para o PT, pois ele não sabe como agir em relação ao Congresso. E, por isso, sempre fica exposto a tensões e crises a partir dessa via. Há uma leitura errada que de que negociar com o Congresso é algo muito caro. A posição com a qual a presidenta partiu para a negociação foi muito dura, errada e isso culminou numa derrota. Com o Congresso é preciso negociar.

Outra coisa é o Palocci. Não está claro para mim se os motivos são suficientemente fortes para explodir uma crise e torná-la insustentável. O governo continua e segue em frente. Se ele ficar no governo, continuará mantendo a posição discreta como tem feito até agora. Caso contrário, será substituído por alguma liderança que não esteja tão dentro da disputa localizada em São Paulo.

IHU On-Line – Então, a fragilidade não é de Dilma e sim do PT?

Fabiano Santos – Há um problema no partido de tentar definir uma estratégia mais coesa, mais nacional. Está claro que a briga está em São Paulo, e isso tenciona a base, deixa todo mundo insatisfeito.

IHU On-Line – Como analisa a relação entre PT e PMDB na condução do governo federal?

Fabiano Santos – Os dois partidos têm algo a ganhar se o governo for bem sucedido, mas também têm muito a perder no âmbito local. O PT está sendo muito bem sucedido no seu espraiamento para todos os rincões do Brasil. O PMDB sempre foi hegemônico. Portanto, os dois partidos têm um conflito eleitoral de base no poder local. O PT está um pouco obcecado pela questão do PMDB, como se a adesão e a distribuição de cargos para o PMDB resolvesse o problema do governo no Congresso. O PMDB é um partido dividido, tem facções. Por isso, não faz bem para o país haver essa dobradinha como se isso fosse a chave da governabilidade plena. O sistema é mais complexo do que isso.

IHU On-Line – O que significa a intervenção de Lula na conjuntura política nos últimos dias, quando ele declarou aos ministros que quer participar mais ativamente da política?

Fabiano Santos – Houve uma percepção de que Dilma precisava de um apoio na partida política com os partidos. E a pessoa que tem essa sapiência, memória e capacidade é o Lula. Essa parte a Dilma ainda está aprendendo. É natural que quando tenha o perigo de surgir algo que possa levar o governo a um prejuízo maior se tente uma solução de emergência. E Lula é uma solução de emergência. Ele conseguiu reverter a situação e criar bases para que o estrago não seja grande.

IHU On-Line – Como vê os partidos brasileiros? Eles são conservadores em alguma medida?

Fabiano Santos – A variedade de posições é grande. A multiplicidade de possibilidades é interessante. Há partidos à esquerda no ambiente econômico, mas também são mais conservadores no campo comportamental. Há partidos que não são de esquerda no âmbito econômico e social e também não são liberais do ponto de vista social. Alguns partidos têm influência de linhas religiosas, outros puramente laicos. Essa diversidade desperta a riqueza da sociedade. Tem partido para todo gosto.

http://www.ihu.unisinos.br/index.php?option=com_noticias&Itemid=18&task=detalhe&id=43800

Cinquentenário da Mater et Magistra

José Lisboa Moreira de Oliveira
Filósofo, teólogo, escritor e professor universitário

No dia 15 de maio de 2011 celebramos o cinquentenário da publicação da Carta
Encíclica Mater et Magistra (MM) do Bem-aventurado João XXIII. Trata-se, sem
dúvida alguma, de uma das grandes preciosidades que nos deixou este magnífico
papa. A riqueza desta encíclica está sobretudo em ter reconhecido, depois de tantos
séculos de esquecimento, que não cabe à Igreja cuidar apenas da “santificação das
almas”. É também seu dever preocupar-se “com as necessidades cotidianas dos
homens, não só as que dizem respeito à subsistência e às condições de vida, como as
que se referem ao seu bem-estar e à sua prosperidade, sob todas as formas que
possam assumir com o progresso dos tempos” (MM, 3).

O contexto histórico no qual a encíclica foi publicada era preocupante. Havia a
guerra fria entre a extinta União Soviética e os Estados Unidos, com o sério perigo de uma guerra nuclear. Estava no auge a teoria desenvolvimentista, segundo a qual o
progresso iria sanar todos os problemas sociais. Por outro lado, tornava-se cada vez
mais visível a pobreza e a miséria no mundo, resultado da exploração dos países em
desenvolvimento por parte dos países ricos. Na América Latina imperava a chamada
“Aliança para o Progresso”, através da qual os Estados Unidos procuravam manter o
controle dos povos deste continente por meio de um assistencialismo desumano e
desrespeitoso. Por meio da “Aliança para o Progresso” eles faziam chegar até nós,
como ajuda, os “restos” daquilo que nem os porcos ianques queriam.

Ainda na América Latina havia uma grande efervescência democrática e um
crescimento da esquerda, particularmente motivados pela revolução cubana.
Efervescência essa que logo depois será truncada pelos diversos e violentíssimos
golpes militares que espalharam terror, tortura e mortes por todo o continente.

Líderes como Che Guevara e Camilo Torres animavam as lutas por reformas
profundas e os anseios de verdadeira libertação de nossos povos. Dentro da Igreja, a
Ação Católica motivava e preparava os leigos e as leigas para uma atuação decisiva
através do seu método pautado por três dimensões: ver, julgar e agir.

Neste contexto João XXIII brindava a humanidade com a sua encíclica Mater
et Magistra. O documento é dividido em quatro partes. Na primeira, o papa retoma
os principais elementos do ensinamento social da Igreja, de Leão XIII a Pio XII.

Conclui essa primeira parte afirmando a necessidade de precisar e dar mais clareza a
esse tipo de ensinamento social, tendo presente os graves problemas sociais que
atormentavam o mundo naquele momento (MM, 50). Na segunda parte, João XXIII
faz as precisações doutrinárias, esclarecendo temas como iniciativa privada, a
intervenção do Estado, a complexidade da estrutura social, as vantagens e
desvantagens do progresso, o salário do trabalhador, desigualdades e injustiças,
relação entre progresso econômico e progresso social, o papel da empresa, a
participação dos trabalhadores na empresa, a questão da propriedade. Já nesta
segunda parte encontramos uma verdadeira mineira que, apesar do tempo,
conservam toda a sua atualidade. Para confirmar isso basta a seguinte afirmação: os
Estados precisam promover “uma política econômica e social que facilite o mais
amplo acesso à posse privada de bens não facilmente perecíveis, de uma casa, de uma
terra para cultivação, das ferramentas necessárias ao artesanato ou à exploração
familiar da terra, de ações de empresas grandes e médias, como ocorre, com êxito, em
certos países econômica e socialmente mais desenvolvidos” (MM, 115).

Na terceira parte da encíclica o papa enfrenta aqueles que então ele
considerava novos aspectos da questão social. O problema das relações entre
agricultura e outros setores, com destaque para o êxodo rural. A política rural,
especialmente no que diz respeito ao crédito, ao seguro social e a previdência para os trabalhadores rurais, a proteção dos preços agrícolas, cooperativismo, justa
repartição dos bens. Para João XXIII os bens da terra devem estar a serviço do ser
humano. Por essa razão, acreditava ele, é indispensável a cooperação internacional,
uma vez que muitos problemas mundiais ultrapassam as fronteiras de cada país e
ganham dimensões globais (MM, 200-202).

Na quarta e última parte da encíclica, João XXIII oferece algumas diretrizes
pastorais para a ação evangelizadora da Igreja. Partindo do princípio de que Deus é o
fundamento necessário de uma ordem de justiça, o papa propõe em primeiro lugar
que se cuide da formação e da educação dos católicos acerca dos princípios sociais
cristãos. Em seguida apresenta a base da ação social dos cristãos, enfatizando o papel dos leigos e das leigas. Insiste para que os leigos e as leigas não sejam afastados dos compromissos diretos com as questões sociais, mas, pelo contrário, sua atuação direta na sociedade e nas tarefas “temporais” deve “ser intensificada e levada a termo com sempre maior empenho” (MM, 254). A isso dá um a justificativa bíblicoteológica dizendo que Jesus não pediu ao Pai que os seus seguidores fossem tirados do mundo, mas que fossem livres do mundo (cf. Jo 17,15). Assim sendo, conclui o papa, “seria falso imaginar uma oposição, desde que a conciliação é possível, entre a perfeição pessoal e os negócios da vida presente, como se a tendência à perfeição cristã excluísse, necessariamente, o exercício das atividades temporais, ou como se a aplicação a esses negócios não pudesse ser feita sem dano para a dignidade do homem e do cristão” (MM, 255).

Relendo a Mater et Magistra cinquenta anos depois, constatei a sua extrema
atualidade. Valeria a pena, mesmo depois de tanto tempo, retomar o próprio
conselho do papa, segundo o qual este documento não deveria ser apenas meditado,
mas colocado em prática (MM, 261). Pena que estejamos vivendo um tenebroso
inverno na Igreja Católica e que a força do gelo e do frio esteja ocultando
preciosidades como essas. De fato, quase não se vê nenhum evento celebrativo do
cinquentenário da encíclica, exceto algumas iniciativas isoladas. Por parte do
Vaticano e das conferências episcopais não se nota nenhuma grande iniciativa e
nenhum incentivo a comemorar esta data e muito menos uma indicação para que se
volte à meditação e à prática do documento.

É lamentável que isso esteja acontecendo, pois a Igreja, além de perder uma
oportunidade para evangelizar, deixa de contribuir significativamente para o
crescimento da justiça social no mundo. Certamente a meditação e a celebração dos
cinquenta anos da Mater et Magistra trariam mais benefícios para a evangelização
dos que certos pronunciamentos da hierarquia sobre determinados temas.

Pronunciamentos estes que, como já estamos cansados de saber, o povo não escuta
mais e não leva mais a sério. Talvez escutasse se a Igreja não se omitisse diante de
tantas outras questões como aquele da justiça social. De fato, diz o bem-aventurado
João XXIII, citando o apóstolo Paulo, quem é “filho da luz” (Ef 5,8) “percebe, sem
dúvida, com maior nitidez, as exigências da justiça nos vários setores da atividade
humana, mesmo onde são maiores as dificuldades geradas por um apego imoderado
de tantos homens aos próprios interesses, à própria pátria ou à própria raça” (MM,
257).

Porém, lembra ainda o papa, para que haja essa sensibilidade cristã é
indispensável que a Igreja cuide seriamente da formação dos cristãos e das cristãs
acerca da justiça social. Mas para que haja formação séria é fundamental a escolha de
um método. Não valem quaisquer métodos, especialmente aqueles arcaicos e
escolásticos. Por isso, segundo João XXIII, o melhor método para a formação nos
princípios da justiça social é aquele que depois foi consagrado pela Igreja latinoamericana:

conhecer a situação concreta, examinar essa realidade à luz da Palavra e
da doutrina da Igreja e, por fim, agir “de acordo com as circunstâncias de tempo e de
lugar. Essas três etapas são comumente expressas pelas palavras ver, julgar, agir”
(MM, 236). Segundo o papa, é necessário “que os jovens, não só conheçam esse
método, mas o empreguem, concretamente, na medida do possível, a fim de que os
princípios adquiridos não permaneçam para eles no campo das ideias abstratas, mas
sejam traduzidos na prática” (MM, 237).

Um dos sinais mais evidentes do inverno tenebroso da atual Igreja,
especialmente aqui na América Latina, é o aborto progressivo deste método.
Documentos recentes dos episcopados e das Igrejas locais revelam a intenção
premeditada de enterrar definitivamente este precioso legado consagrado por um
documento tão valioso do Magistério da Igreja.

É triste constatar o recuo evidente dos eclesiásticos nesta questão. E mais triste
ainda é perceber quanto bem deixam de fazer com esse retrocesso. Porém, devemos
conservar a esperança, sabendo que ninguém é dono Espírito de Deus que age
“conforme ele quer” (1Cor 12,11). Quem sabe, de repente, o Paráclito pode suscitar
um novo Pentecostes na Igreja, enviando-nos alguém como João XXIII, capaz de
sacudir a poeira de conservadorismo amontoada nos ambientes eclesiásticos.
Alguém que traga mais liberdade para dentro da Igreja, uma vez que “Cristo
nos libertou para que sejamos verdadeiramente livres” (Gl 5,1). E “ninguém aprende
a viver bem em liberdade, a não ser procurando usar bem da liberdade” (MM, 232).

Vale, pois, concluir este breve texto com mais algumas palavras de João XXIII, que
podem muito bem ser aplicadas também à situação atual da Igreja: o contraste entre
“a perfeita dignidade dos perseguidos e a refinada crueldade dos perseguidores, se
não fez com que estes caíssem em si, tem levado, entretanto, muitos homens à
reflexão” (MM, 216). Portanto, vamos refletir bastante e estimular outros a fazerem a
mesma coisa, pois “quem sabe faz a hora, não espera acontecer” (Geraldo Vandré).

SALVA, SENHOR, O TEU POVO (Jr 31,7)

Comunicado à 49º Assembléia Geral da CNBB
sobre a Causa Indígena no Brasil

Introdução
Inicio este comunicado com o grito do Profeta Jeremias: "Salva, Senhor, o teu povo!" (Jr 31,7). Essa prece brota do coração de quem põe toda sua confiança em Deus e sua promessa: "Eis que virão dias - oráculo do Senhor - em que trarei de volta os cativos de meu povo e os farei regressar à terra que dei a seus pais, e tomarão posse dela" (Jr 30,3). É o sonho de tantos povos indígenas: regressar à terra de seus ancestrais e viver em paz. Nunca perderam a esperança de que vai raiar o dia em que o bom Deus os libertará do cativeiro da morte. É nossa súplica insistente: Salva, Senhor, os povos indígenas! Tira-os da cruz e, na tua bondade e misericórdia, concede-lhes viver a alegria da Páscoa da Ressurreição!
A Campanha da Fraternidade deste ano nos propõe, através do lema “A criação geme em dores de parto” (Rm 8,22), reconstruir a VIDA NO PLANETA EM FRATERNIDADE. Refletimos, em nossas dioceses e comunidades sobre as graves questões ambientais que colocam em risco o futuro do planeta terra e apontam para a possibilidade real da extinção da vida, em todas as suas formas, em função da nefasta intervenção do ser humano sobre o meio ambiente. Isso nos causa uma grande dor, já que “a América Latina é o continente que possui uma das maiores biodiversidades do planeta e uma rica sociodiversidade, representada por seus povos e culturas (DAp 83).
Desde o evento de Aparecida, a V Conferência Geral do Episcopado Latino-Americano e do Caribe, em 2007, a Igreja do nosso continente intensificou a sua preocupação com a Amazônia e com toda questão ecológica (cf. DAp 84): “Nossa irmã a mãe terra é nossa casa comum e o lugar da aliança de Deus com os seres humanos e com toda a criação” (DAp 125). Essa irmã-mãe, essa casa comum de toda a humanidade, que recebemos “como herança gratuita” para protege-la, “como espaço precioso da convivência humana [...] para o bem de todos” (DAp 471), está sendo agredida: “A terra foi depredada. As águas estão sendo tratadas como se fossem mercadorias negociáveis pelas empresas” (DAp 84, cf. 85). A eliminação das florestas e da biodiversidade, e a contaminação das águas “transformam as regiões exploradas em imensos desertos” e colocam “em perigo a vida de milhões de pessoas” (DAp 473).
A causa desse colapso ecológico está, segundo Aparecida, no “atual modelo econômico, que privilegia o desmedido afã pela riqueza, acima da vida das pessoas e dos povos e do respeito racional pela natureza” (DAp 473). Esse modelo “subordina a preservação da natureza ao desenvolvimento econômico, com danos à biodiversidade, com o esgotamento das reservas de água e de outros recursos naturais, com a contaminação do ar e a mudança climática” (DAp 66).
Para a missão da Igreja, a questão ecológica e a proteção da natureza se tornaram “novos areópagos” (DAp 491). Aparecida articula sempre vida humana e meio ambiente, ecologia natural e ecologia humana: “A melhor forma de respeitar a natureza é promover uma ecologia humana aberta à transcendência [...]. O senhor entregou o mundo para todos, para as gerações presentes e futuras” (DAp 126). Precisamos aprender, com Aparecida, caminhar para um novo modelo econômico, capaz de regular os recursos naturais “cada vez mais limitados”, segundo o “princípio de justiça distributiva” (DAp 126). A ecologia, com seu objetivo da Vida em Fraternidade com todos e com a natureza, aponta para um novo modelo de desenvolvimento social e para uma ascese pessoal com sua raiz na solidariedade.
O tema da Campanha da Fraternidade tem os contornos de um desafio e de um imperativo: Construir e reconstruir a Vida no Brasil, no continente latino-americano e no Planeta Terra como Vida em Fraternidade com os Povos Indígenas. Assim trago, uma vez mais, a esta assembléia a realidade dos povos indígenas do Brasil. E como bispo do Xingu, presidente do Conselho Indigenista Missionário (Cimi) e missionário na Amazônia não posso me furtar em apresentar, mesmo que de maneira sucinta, os graves problemas que os povos indígenas enfrentam.
A questão fundiária
A situação que envolve a demarcação das terras indígenas é, certamente, a questão mais crucial e polêmica, a que causa maior impacto e a que mostra, com maior nitidez, toda a inércia do governo em relação aos povos indígenas do Brasil. A omissão do governo nesta questão revela a opção política em beneficiar setores da economia que se apropriaram ou que se apropriam das terras indígenas, a fim de explorá-las.

Os dados relativos a esta questão não deixam dúvidas uma vez que das 1.023 terras indígenas existentes, apenas 360 estão regularizadas, e 322 terras continuam sem nenhuma providência administrativa para serem reconhecidas pelo Estado brasileiro. Quanto às terras que se encontram em processo de demarcação, 156 estão em estudo, 27 estão identificadas; 60 estão declaradas pelo Ministro da Justiça; 63 estão homologadas pela presidência da República. Existem ainda 35 áreas que foram reservadas aos povos indígenas.

A Funai, durante todo o mandato do governo Lula, manteve-se em estado de letargia e subserviência frente às pressões desencadeadas contra as demarcações de terra. Ao final de 2009, como que num passe mágico, a equipe do governo decidiu reestruturar o órgão indigenista, através de Decreto nº. 7056, expedido no dia 28 de dezembro daquele ano. A reestruturação não agradou a muitos dos povos indígenas por apresentar mudanças na estrutura do órgão sem que eles fossem consultados, desrespeitando assim a Convenção 169 da OIT, ratificada e homologada pelo Governo brasileiro. Esse fato gerou um ambiente de extrema desconfiança e prejudicou ainda mais o andamento dos processos de demarcação das terras indígenas no país.

A judicialização dos procedimentos de demarcação das terras indígenas

A morosidade governamental para reconhecer e regularizar as terras indígenas potencializa a prática da judicialização dos procedimentos de demarcação das terras indígenas. Centenas de ações judiciais têm sido impetradas pedindo a suspensão das demarcações. Muitos procedimentos administrativos de demarcação de terras indígenas estão paralisados devido a decisões judiciais de diferentes Varas e instâncias da Justiça Federal em âmbito nacional. Em muitos casos, os próprios governos estaduais, a exemplo de Santa Catarina, do Mato Grosso e Mato Grosso do Sul, têm orientado os ocupantes de terras indígenas a entrarem com ações ordinárias na Justiça Federal pedindo a suspensão dos efeitos de portarias declaratórias expedidas pelo Ministério da Justiça ou a anulação de portarias, da própria Funai, que constituem Grupos Técnicos (GTs) para proceder aos estudos de identificação e delimitação de terras indígenas.

A violência contra os povos e lideranças indígenas

Temos observado que continua bastante recorrente o fato que, nos casos em que o intento de inviabilizar a demarcação de uma terra indígena não é atingido por meio de pressões políticas ou de ações judiciais, alguns segmentos político-econômicos apelam para a violência, promovem invasão das terras indígenas, atacam e assassinam as lideranças destes povos.

Nos últimos anos, infelizmente, explodiu a prática de violência contra os povos indígenas. Entre os anos 2003 e 2010, de acordo com os dados levantados pelo Cimi, foram assassinados 499 indígenas no Brasil. Neste sentido, com a intenção de denunciar a situação e cobrar a atenção das autoridades públicas para que tomem providências urgentes no combate a esses graves problemas, o Cimi lançará, nos próximos dias, o Relatório de Violências Contra os Povos Indígenas no ano de 2010.

De acordo com estes levantamentos, o Estado de Mato Grosso do Sul tem sido recordista em violências contra os povos indígenas. Ali as comunidades indígenas são obrigadas a viver em beira de estrada, são frequentemente expulsas de seus acampamentos, têm suas barracas e pertences queimados e seus líderes assassinados. Cerca de 50% dos assassinatos de indígenas ocorre naquele Estado. De acordo com recente informação do Ministério Público Federal, na terra indígena de Dourados, constituída de três mil e seiscentos hectares, nos quais vivem, em situação de confinamento, mais de 12 mil indígenas, o índice de homicídios é 800% maior que a média nacional. Esta prática de violência contra os povos indígenas no Mato Grosso do Sul, especialmente em relação ao povo Guarani Kaiowá, não deixa de ser um genocídio.

Vale ainda ressaltar que em diferentes Estados do Brasil também foram praticados assassinatos de indígenas e nem todas as informações são divulgadas.

A omissão em relação ao intenso processo de violências enfrentadas pelos Guarani-Kaiowá é talvez o elemento mais significativo da falta de interesse do Governo Federal pelos povos indígenas. Os abusos contra este povo têm sido denunciados pelo Cimi e por outras organizações de defesa dos direitos humanos e indígenas no Brasil e em nível internacional. Entretanto, mesmo assinando um Termo de Ajustamento de Conduta, no qual a Funai se comprometeu, em 2008, em realizar os estudos de identificação e delimitação de terras de ocupação tradicional indígena naquele Estado, até o presente momento o órgão indigenista está omisso. A demarcação das terras poderia evitar a morte de centenas de pessoas do povo Guarani-Kaiowá.

Os autores dos crimes contra os indígenas raramente são identificados e, quando isso ocorre, os criminosos conseguem retardar o julgamento dos processos por vários anos. Quando julgados, muito raramente são condenados. Isso aumenta ainda mais a sensação de impunidade.

Uma ação mais eficaz de proteção às comunidades e suas lideranças e de punição daqueles que praticam tais violências poderia abrandar, ao menos em parte, o sofrimento imposto a estas pessoas por tão longo tempo.

Os projetos desenvolvimentistas e os seus impactos sobre as terras indígenas

É com muita preocupação que acompanhamos a implementação de projetos desenvolvimentistas e os impactos que estão causando e poderão causar sobre as terras e as vidas dos povos indígenas. Levantamento feito pelo Cimi demonstra que ao menos 450 obras afetam terras indígenas no país. Grande parte dessas obras estão incluídas no Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), do Governo Federal.

Dezenas de hidroelétricas, redes de transmissão, rodovias, ferrovias, hidrovias, portos, são construídos em todas as regiões do país, sem que os povos indígenas sejam ouvidos como exige a Constituição Federal. Aqui merecem um destaque os licenciamentos ambientais, muitos deles, eivados de vícios jurídicos e concedidos pelos órgãos governamentais, única e exclusivamente devido às pressões políticas que desabam sobre técnicos e diretores responsáveis. Neste sentido, a concessão das licenças ambientais da Usina Hidrelétrica de Belo Monte, planejada para ser construída no Rio Xingu é um caso emblemático e mais um exemplo vergonhoso de desrespeito aos Povos Indígenas e violação de seus direitos. O Consórcio Norte Energia não hesita em criar spots de propaganda enganosa, veiculados nestes dias em 17 aeroportos brasileiros. O consórcio confunde propositadamente a opinião pública ao afirmar que aldeias indígenas não serão afetadas por não serem inundadas. Ocorrerá justamente o contrário: os habitantes, tanto nas aldeias como na margem da Volta Grande do Xingu, ficarão praticamente sem água, em decorrência da drástica redução do volume hídrico em 80%. Ora, esses povos vivem da pesca e da agricultura familiar e utilizam o rio para se locomover. Como vão sobreviver?

A postura desrespeitosa e a inexistência de diálogo por parte do Governo Federal com os povos indígenas acerca de projetos que impactam suas terras é recorrente. Neste sentido, os casos da Transposição das Águas do Rio São Francisco e da UHE Belo Monte são exemplares. É bom sabermos que o empreendimento no Rio São Francisco já está revelando sua insanidade. Os custos aumentaram notavelmente. Os trabalhos estão parados. As empresas despediram a quase totalidade dos trabalhadores, ficando apenas pequenos grupos para a vigilância e manutenção das estruturas. Não há previsão quanto a retomada das obras.
No caso de Belo Monte a falta de diálogo e de oitivas indígenas levou a Comissão Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos (OEA) requerer, por meio de uma medida cautelar, ao Governo brasileiro, a suspensão imediata das obras. Inesperada e inexplicavelmente, o Governo brasileiro reagiu com ameaças de retaliação política e econômica à decisão da OEA. Em seu discurso de posse a atual Presidente da República comprometeu-se com a defesa dos direitos humanos. A solene promessa não resistiu ao primeiro caso concreto que se pôs à sua frente.
Expandir investimentos, assegurar infra-estrutura para acelerar o “crescimento econômico” do país tornou-se quase uma “lei absoluta” e, por isso, não são questionados os meios usados e nem mesmo os impactos sociais, ambientais, econômicos, culturais e políticos que estas ações estão provocando ou irão provocar.

A Criminalização das lideranças dos Povos Indígenas

Outra questão que muito nos preocupa é a prática da criminalização das lideranças dos povos indígenas. A omissão do governo na demarcação das terras e a ação governamental na implementação de projetos desenvolvimentistas surte como efeito até almejado por todos nós a organização dos povos e comunidades indígenas para fazer avançar os procedimentos de demarcação, bem como, para evitar a construção dos empreendimentos causadores de impactos danosos sobre as suas terras e suas vidas.

A reação, por parte dos aparatos estatais, a essa organização e mobilização dos povos indígenas foi imediata na forma esdrúxula de criminalizar suas lideranças. Exemplos mais recentes são os constantes ataques promovidos por agentes da Polícia Federal contra os povos Tupinambá e Pataxó Hã-Hã-Hãe, no Estado da Bahia. Muitas lideranças desses povos sao processadas judicialmente, algumas delas estão presas. Outro exemplo bastante sintomático diz respeito ao povo Xucuru, no Estado de Pernambuco: 42 lideranças foram condenadas, em média, a 10 anos de prisão cada uma.

Dados fornecidos pelo Sistema Integrado de Informações Penitenciárias, vinculado ao Ministério da Justiça, demonstram que, atualmente, 758 indígenas encontram-se aprisionados no país.

O Cimi, por diversas vezes, tem denunciado as ações repressivas, praticadas por agentes do Estado contra lideranças e comunidades indígenas.

O ataque aos direitos indígenas instituídos na legislação brasileira.

Os setores anti-indígenas representados no Congresso Nacional, especialmente aqueles ligados ao modelo de produção conhecido como “agronegócio”, tem atuado com grande virulência na tentativa de restringir os direitos indígenas no âmbito do Poder Legislativo. Atualmente, existem mais de duzentos Projetos de Lei (PL), Propostas de Emendas Constitucionais (PEC) e Projetos de Decretos Legislativos (PDCs) contra os povos indígenas, tramitando na Câmara dos Deputados e no Senado Federal.

Projetos de interesse dos povos indígenas, no entanto, tais como o PL 2057/91, que trata do novo Estatuto dos Povos Indígenas e o PL 3571/08, que cria o Conselho Nacional de Política Indigenista (CNPI), estão engavetados. A proposta de novo Estatuto dos Povos Indígenas já completa 20 anos de tramitação. Nada indica que seja aprovado nos próximos períodos.

Para responder a essa urgente demanda, os povos indígenas, juntamente com outros setores comprometidos com esta causa, deverão intensificar as mobilizações em todas as regiões pela aprovação do Estatuto dos Povos Indígenas e pela consolidação de uma política indigenista que atenda, em definitivo, aos anseios e expectativas dos povos indígenas no Brasil.

A insuficiência e a baixa execução do orçamento indigenista

Os dados do orçamento indigenista, ao longo dos últimos anos, também demonstram o descaso com os 241 povos indígenas do país. Mesmo quando há recursos aprovados, estes acabam não sendo executados conforme o previsto.

A título de exemplo, em 2010, na ação de Demarcação e regularização de terras indígenas, a Funai gastou apenas 47,51% dos R$ 25 milhões orçados. No mesmo ano, a FUNASA deixou de investir na estruturação de unidades de saúde para atendimento da população indígena cerca de R$ 19,357 milhões que estavam aprovados no orçamento da União; também R$ 27,139 milhões previstos para serem utilizados na promoção, vigilância, proteção e recuperação da saúde indígena, e mais R$ 987,8 mil que se destinavam a ação de vigilância e segurança nutricional dos povos indígenas. Todo esse recurso retornou ao Tesouro Nacional para alimentar a meta de superávit do país.

A Assistência à saúde indígena

A política de assistência à saúde indígena esteve estruturada, durante mais de uma década, no modelo de assistência terceirizada e foi transformada em espaço de negociações com partidos políticos da sua base de sustentação, especialmente o PMDB.

Vale destacar que durante um longo período a Funasa foi alvo de denúncias por malversação de recursos públicos e por corrupção. Auditorias realizadas pelo Tribunal de Contas da União constataram graves distorções em relação ao uso dos bens e recursos e na prestação dos serviços.

Tardiamente e já quase no final de seu governo, o presidente Lula determinou a criação da Secretaria Especial de Atenção a Saúde Indígena (SESAI), vinculada ao Ministério da Saúde. A Secretaria foi criada formalmente, mas ainda não foi estruturada. A transição da responsabilidade entre os dois órgãos tem sido muito tumultuada e marcada por intensas disputas político-partidárias.

Enquanto isso, os povos indígenas são cada vez mais prejudicados. Infelizmente, nestes primeiros 04 meses do ano de 2011, somente na Terra Indígenas Parabuburi, do povo Xavante, no município de Campinápolis, no Estado do Mato Grosso, ao menos 35 crianças morreram de causas perfeitamente tratáveis nos dias de hoje, tais como desnutrição e doenças respiratórias e infecciosas. No Vale do Javari, no Amazonas, doenças virais e infecciosas alastram-se, sem controle, entre os indígenas.

Educação escolar indígena

A política de educação escolar indígena é igualmente contraditória. A responsabilidade é do Ministério da Educação (MEC), que repassa os recursos e as atribuições da educação escolar aos Estados que, por sua vez, podem transferi-las aos Municípios. Com o objetivo de buscar uma solução para as distorções e contradições existentes na execução da política de educação foram apresentadas propostas dos movimentos de professores indígenas, de entidades de apoio e pesquisadores apontando para uma perspectiva da federalização da política. No entanto, os técnicos do Ministério da Educação optaram por um caminho diferente. Instituíram, através do Decreto nº. 6861, de 27 de maio de 2009, os chamados Territórios Etnoeducacionais, antes mesmo da realização de todas as conferências regionais, previstas para avaliar e propor alternativas para a educação escolar indígena. Esse processo de reflexão culminou na Conferência Nacional de Educação que, ao invés de discutir as propostas vindas das diferentes regiões, acabou por discutir o fato já consumado do novo modelo. O modelo dos Territórios Etnoeducacionais não foi debatido e sequer é compreendido pela maioria dos povos e comunidades indígenas e, por que não dizer, por muitos executores da política que, em geral, são os Estados e Municípios.

O Protagonismo dos Povos Indígenas

Ao longo dos anos, os povos indígenas se fizeram mais presentes nos espaços públicos, reivindicando e exigindo que as autoridades cumpram com suas responsabilidades. Nas últimas décadas o movimento indígena, de modo geral, tornou-se realmente protagonista.

No entanto, apesar de uma visibilidade maior e da criação de certos espaços de participação, algumas artimanhas utilizadas por parte daqueles que governam, engessam as ações indígenas em torno de discursos, pedidos de paciência, mais abertura ao diálogo e promessas a serem cumpridas. Com isso, as lutas indígenas que mostraram maior relevância, foram aquelas que se organizaram em âmbito local ou regional. As de caráter nacional foram como que dissipadas e muitas delas esvaziadas pela relação que se estabeleceu com setores do atual Governo Federal que eram, até muito recentemente, opositores aos governos anteriores e inclusive militantes da causa indígena.

Os Povos Indígenas Isolados

Uma realidade pouco divulgada e conhecida no Brasil são os povos indígenas isolados. Levantamentos realizados por missionários do Cimi, que deverão ser publicados nos próximos dias, constatam a existência de ao menos 90 referências de povos ou grupos de indígenas que vivem na Amazônia sem nenhum contato com a sociedade envolvente. Preocupa-nos imensamente a situação em que vivem estes povos, principalmente os 18 povos que estão na iminência de extinção devido a práticas de genocídio cometidas em função do avanço da fronteira agrícola e dos projetos desenvolvimentistas vinculados ao PAC, como, por exemplo, as hidroelétricas do Rio Madeira, em Rondônia.

O Estado brasileiro deve reconhecer os direitos dos isolados, garantir sua integridade social, cultural e econômica, a proteção de seu território e de seus recursos naturais, aplicando a legislação nacional e internacional. Convém suspender em todas as regiões onde há referências de presença de índios isolados, os projetos de infra-estrutura, de geração e transmissão de energia, de colonização e de extração de recursos naturais, principalmente de minérios.

Conclusão

Finalizo este comunicado com grande preocupação, pois as perspectivas não são animadoras, se bem que o novo Governo esteja apenas no seu início. Os discursos proferidos pela presidente da República apontam para a continuidade da política desenvolvimentista, toda ela voltada aos mega-investimentos em obras e na exploração dos recursos naturais. Há grandes desafios a serem enfrentados pelos povos e suas organizações. Haverá desafios para toda a sociedade. Algumas lideranças indígenas, enfatizam em artigos e discursos que, “embora os brancos insistam em destruir a terra, ela existirá enquanto os povos indígenas existirem. Destruindo os filhos da terra, destruirão a última esperança de vida no planeta, destruirão em definitivo a terra inteira”.

Lembro mais uma vez a Campanha da Fraternidade e reafirmo a necessidade de que ela se prolongue como parte de nossa missão profética pela defesa da vida. Ao defendermos a causa indígena contribuiremos também com a defesa de nossa terra.

Este ano completam-se cinco anos desde a partida do saudoso Dom Luciano Mendes de Almeida para a Casa do Pai (27.08.2006). Todos nós que o conhecemos lembramos com gratidão este homem de Deus que consagrou a sua vida aos pobres e aos discriminados pela sociedade. Recordo-me com que determinação e vigor defendeu diante do Congresso Nacional e nos Meios de Comunicação os Povos Indígenas e nosso empenho em favor deles e alertou à sociedade brasileira: "É hora de consolidar nossa democracia, com sua riqueza étnica e cultural, e acreditar no futuro das comunidades indígenas e do desenvolvimento sustentável que promovem. A solidariedade fraterna e cristã com respeito e estima ao pluralismo étnico e cultural no Brasil, atrairá as bênçãos de Deus a fim de que haja tempos novos de justiça e paz para todos".
Aparecida, 6 de maio de 2011

Erwin Kräutler
Bispo do Xingu
Presidente do Cimi

segunda-feira, 30 de maio de 2011

Trabalho escravo está migrando para fugir de fiscalização

A geografia da incidência do trabalho escravo no Brasil está mudando para escapar da fiscalização de órgãos responsáveis, afirma o procurador-geral do Trabalho, Otávio Lopes. O número de casos de trabalho escravo está aumentando em locais onde a prática não era tão comum, como os estados de Mato Grosso, do Maranhão e do Tocantins, e diminuindo em estados onde o problema era conhecido e reincidente, como o Pará.

A reportagem é de Débora Zampier e publicada pela Agência Brasil, 29-05-2011.

“O Pará ficou muito tempo sob os holofotes, mas lá já existe uma boa estrutura de fiscalização. Agora os criminosos estão descendo para estados como Mato Grosso e Tocantins para não serem pegos”, diz Lopes. A coordenadora nacional de Erradicação do Trabalho Escravo do Ministério Público do Trabalho (MPT), Débora Farias, lembra que, em 2009, o estado onde foram encontrados mais trabalhadores em regime de escravidão foi o Rio de Janeiro, seguido por Pernambuco. “O trabalho escravo não é uma maldade, ele tem um aspecto econômico. Embora tenha grande incidência nas fronteiras agrícolas, ele pode estar em qualquer lugar”, constata a promotora.

Otávio Lopes destaca que O MPT está preocupado com as fases preliminares das grandes obras de infraestrutura que estão sendo erguidas no país, nas quais, segundo ele, tem havido grande incidência de trabalho escravo. “É importante fiscalizar não só quando a obra se inicia, mas também quando se instala o canteiro de obras, especialmente na preparação dos futuros canteiros, no desmatamento, no trabalho preliminar.”

A instalação de grandes obras também preocupa o governo, especialmente na questão do aliciamento de trabalhadores de outras regiões, que acabam acreditando na promessa de um trabalho digno. Segundo a secretária de Inspeção do Trabalho do Ministério do Trabalho e Emprego, Vera Albuquerque, uma prática comum é registrar o trabalhador em cidade diversa daquela de onde ele veio, dificultando a fiscalização por órgãos competentes e a manutenção de garantias mínimas.

Uma das formas encontradas para combater o aliciamento de trabalhadores para outras regiões é a exigência, por parte do empregador, da posse de uma Certidão Declaratória de Transporte de Trabalhadores. A regulamentação da certidão foi definida em portaria assinada no Ministério do Trabalho no final de abril. A certidão deve ser retirada pelo empregador no órgão local do ministério na região onde o trabalhador foi recrutado e mantida à disposição da fiscalização, durante a viagem e no local da prestação de serviços.

http://www.ihu.unisinos.br/index.php?option=com_noticias&Itemid=18&task=detalhe&id=43774

Pessimismo e esperança de mudança: os desafios do Haiti

Se os votos de mudança para o Haiti do presidente Michel Martelly devem se tornar realidade, eles terão que ser sentidos por jovens como Mikency Jean. Aos 22 anos, nascida em Cap Haitien, Jean foi para a capital Porto Príncipe aos 11 anos de idade para trabalhar como empregada doméstica (ou restavek) para sua tia. Jean não gosta de se demorar muito sobre esse trabalho – há pouco a dizer sobre os dias de 12 horas na limpeza e na cozinha sem remuneração.

A reportagem é de Chris Herlinger, publicada no sítio National Catholic Reporter, 27-05-2011. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

Ao contrário, Jean prefere falar sobre a sua participação em um programa de treinamento promovido pela igreja para as jovens restavek e sobre as possibilidades de um trabalho remunerado e de uma carreira como cozinheira de restaurante.

O sonho inicial de Jean era de ser enfermeira, embora ela não pense mais sobre isso, porque ela não tem os meios para estudar enfermagem. Mesmo assim, sua formação atual tem lhe dado um sentido de direção e os sonhos para uma vida melhor.

No entanto, Jean disse que ela e outras pessoas da sua idade estão temerosas com relação ao futuro. Elas não têm certeza se a sua formação irá finalmente lhes garantir os empregos que querem. "Falamos sobre isso o tempo todo", disse ela, "e não sentimos que há um futuro brilhante para o país".

É precisamente esse sentimento de pessimismo – baseado na realidade e no pragmatismo e fortemente sentido entre os jovens do Haiti – que Martelly enfrenta ao começar a sua presidência em um país que ainda se recupera de anos de incerteza política, inquietação econômica, agitação social e, claro, 16 meses de recuperação de um terremoto devastador.

Em seu discurso inaugural no dia 14 maio, o ex-cantor de carnaval pediu o fim do que ele chamou de humilhante "política da mendicância", em uma aparente referência aos anos de dependência haitiana à ajuda internacional. "Nós somos trabalhadores, nós trabalhamos muito bem quando nos são dadas as oportunidades", disse ele. "Haitianos, este país é nosso, vamos nos unir para refazer o nosso país".

Ao mesmo tempo, Martelly convocou a uma restauração da "autoridade do Estado, o Estado de Direito". Ordem e disciplina, disse, "vão prevalecer em todo o território nacional". A ordem, disse, será necessária para que, fora do país, os "investidores [possam] ganhar confiança, venham investir, construir, para que possamos encontrar o desenvolvimento que eu busco" – o desenvolvimento, explicou, que permitirá que os haitianos "saiam da pobreza, para que vocês possam viver de outra forma".

Martelly pediu que a comunidade internacional tenha confiança nele, encontrando em seu novo governo "transparência e honestidade. Este é um novo Haiti, um novo Haiti aberto aos negócios agora".

Qualquer presidente do Haiti deve se dirigir a públicos diferentes – por isso, o apelo à unidade nacional interna e a promessa de mudança, enquanto, ao mesmo tempo, são atraentes para os investimentos externos, dificilmente parecem ser surpreendentes, embora os dois objetivos raramente tenham estado em sincronia em um país onde a dominação externa tem sido uma norma atroz.

O futuro do Haiti

Martelly terá sucesso? Pode ser difícil – o pessimismo de Jean Mikency mal chega perto da apreensão e da decepção que muitos haitianos sentem com relação ao seu governo.

Em termos de serviços de saúde, por exemplo, o governo haitiano é uma presença vaga, particularmente em áreas rurais pobres. "O governo não existe", disse o Dr. Jean-Gardy Marius, um médico haitiano que supervisiona uma clínica em Rousseau, cerca de 70 quilômetros ao norte de Porto Príncipe. A clínica recebe ajuda de igrejas dos EUA e da Europa.

"O governo haitiano nem sabe quantas pessoas vivem neste país", disse Marius. "Nunca tivemos um governo que tenha pensado no povo haitiano. O governo apenas trabalhou pelas suas famílias ou amigos. Nunca houve uma política nacional. Nunca".

"Você trabalha contra muitos fatores neste país. As pessoas das áreas rurais não têm nada. Nada. Eles não têm esperança. Inúmeras pessoas estão vivendo pela bondade de Deus".

Os haitianos frequentemente invocam a bondade de Deus, e um sentimento de esperança na vida social realmente existe. As cooperativas de alimentos nas regiões do noroeste haitiano e de Artibonite, por exemplo, têm conseguido, desde a década de 1990, cultivar e colher juntando recursos expressamente porque o Estado não forneceu aos agricultores coisas básicas como terra ou sementes.

A questão dos alimentos e da fome no Haiti tem uma distinta "conotação política, porque o governo não está presente e não tem um sistema para fornecer crédito agrícola aos agricultores", disse o organizador de cooperativas Cher-Frere Fortune. Um Estado operante e que funciona – "um Estado estruturado" – deveria ser capaz de "levar os serviços às áreas onde as pessoas vivem", disse. O governo haitiano não tem sido capaz de fazer isso, acrescentou.

Compromisso real ou promessa vazia?

Em seu discurso inaugural, Martelly abordou a questão dos problemas rurais e da dependência quase paralisante do Haiti em Porto Príncipe, dizendo que não é só a capital atingida pelo terremoto que "deve ser reconstruída, é todo o país que precisa ser construído, reconstruído... reflorestado, ser desenvolvido". O novo presidente ainda disse especificamente que sementes devem ser disponibilizadas aos agricultores.

Isso representa um compromisso real ou é apenas mais uma promessa política vazia? Fortune, assim como diversos outros na casa dos seus 40 anos que trabalham para as agências de ajuda humanitária no Haiti, têm uma abordagem bastante fria com relação Martelly, ainda conhecido pelo seu nome artístico de "Sweet Micky".

Enquanto Fortune e outros admiram o novo presidente por ter conquistado a política haitiana com uma plataforma populista de mudanças durante as recentes eleições nacionais, eles também tiveram muitos desapontamentos políticos em suas vidas para abraçar Martelly plenamente.

"Um dos problemas que temos no Haiti – e temo por causa disso pelo presidente Micky – é que os presidentes tentam mudar o sistema, mas é o sistema que os muda", disse Polycarpe Joseph, um leigo de formação jesuíta e líder católico do Centro Ecumênico para a Paz e a Justiça, centro educacional de Porto Príncipe que promove o programa de formação para as jovens restavek.

"Veja o [ex-presidente Jean-Bertrand] Aristide", disse Joseph. "O sistema o devorou. É a forma que o sistema está construído. Suas mãos estão amarradas".

Talvez sim. Mas em uma clínica de cólera católica na área de Wharf Jeremie na Cité Soleil – uma das mais áreas complicadas da capital haitiana – parece haver uma esperança comedida para o novo presidente, especialmente entre aqueles que uma vez apoiaram Aristide.

"Aristide foi o único presidente que se preocupou com os pobres", disse a vendedora Doudeline Surena, 45 anos. "Não sei se ele [Martelly] vai ser assim. Mas certamente eu espero isso".

http://www.ihu.unisinos.br/index.php?option=com_noticias&Itemid=18&task=detalhe&id=43773

sábado, 28 de maio de 2011

Migrantes em greve de fome há 20 dias contra ato arbitrário do Instituto de Migração

Camila Maciel
Jornalista da Adital
Adital
Em greve de fome há vinte dias, 11 migrantes detidos no Centro Estatal de Reinserção Social de Sentenciados nº 3 (CERESO nº 3), localizado na cidade de Tapachula (Chiapas – México), pedem a retirada da acusação de danos à propriedade de terceiros por parte do Instituto Nacional de Migração (INM).

"Eles estão visivelmente esgotados. Fazemos um chamado às autoridades para que este caso não termine em um fato lamentável”, relata Fermina Rodríguez, diretora do Centro de Direitos Humanos Frei Matias de Córdoba, em entrevista a Adital.

A acusação se deve ao motim que aconteceu nas instalações da Estação Migratória Século XX (EM SXX), no último dia 3 de maio. Agentes do INM chegaram à Estação e tentaram levar dois migrantes cubanos para trasladá-los em "um ato arbitrário”, afirma Fermina. Os cubanos encontravam-se a espera de uma definição de sua solicitação de asilo político.

A abordagem se deu no refeitório. Quando as 40 pessoas se deram conta do que ocorria, trataram de sair, mas os acessos foram fechados. Outras 200 pessoas que se encontravam no pátio perceberam o obstáculo para ingressar no refeitório, o que desencadeou empurrões contra a porta de acesso.

Nesse momento, nove migrantes aproveitaram para fugir da EM SXX, minutos depois foram apreendidos seis migrantes que, junto com sete companheiros que foram detidos no momento da derrubada da porta, foram levados a Procuradoria Geral da República, onde são acusados, por parte do INM, de danos à propriedade. Desde então, 9 cubanos, 1 guatemalteco e 1 dominicano estão sem se alimentar.

Segundo Fermina Rodríguez, este fato demonstra a atuação do INM, pois eles não respeitam "o devido processo e acesso à informação”. O Centro avalia que "a transparência desses processos evitaria que a população migrante colocasse em risco sua integridade física, incluindo sua vida, como uma forma de se fazer escutar e fazer respeitar seus direitos”.

Fermina explica que, especificamente, no caso dos cubanos, além de ser um direito, é muito importante a informação de quando eles serão trasladados ou deportados, o que não é cumprido pelo INM, pois eles poderiam buscar ajuda de algumas organizações de direitos humanos para orientá-los ou intervir. Em Cuba, eles podem ser condenados por fugir de seu país.


A diretora informou que ainda não se conhece a situação da Estação Migratória Século XX depois do motim. A entrada dos integrantes do Centro não foi autorizada. "Já requeremos, inclusive, na Comissão Nacional de Direitos Humanos, mas ainda não tivemos resposta”, afirma.

Lei de Migração

Nesta terça-feira (24), foi promulgada a nova lei dos direitos migrantes no México. Fermina acredita que a nova legislação trará alguns avanços, embora as organizações de direitos humanos não tenham tido uma ampla participação para propor alterações.

A Lei de Migração determina, dentre outras coisas, que os migrantes têm direito a receber serviços educativos e de saúde, além de acesso ao sistema de procuração de justiça e apresentar queixas de violações a seus direitos humanos, sem importar se estão sem documentação. "É algo muito diferente do que faz o Instituto Nacional de Migração”.

Com informações da imprensa local.

Anistia exige justiça para as violações de direitos humanos cometidas em maio de 2010

Camila Queiroz
Jornalista da ADITAL
Adital
Maio de 2010, Jamaica. O país havia decretado estado de exceção para deter o suposto narcotraficante Christopher Coke. Em apenas cinco dias, entre 24 e 28 de maio, 74 pessoas foram assassinadas na capital Kingston, incluindo dois policiais. Pelo menos outras 54 pessoas ficaram feridas, entre elas 28 membros das forças de segurança.

No aniversário de um ano do acontecimento, a Anistia Internacional (AI) lançou, ontem (23), o informe "Jamaica: um longo caminho até a justiça? Violações de direitos humanos sob o estado de emergência”. O objetivo é denunciar as violações ocorridas no período, como assassinatos ilegais, desaparecimentos forçados, prisões e detenções arbitrárias e, ao mesmo tempo, exigir que os culpados sejam julgados – até o momento, ninguém foi processado.

Durante os cinco primeiros dias de aplicação da lei de operação, cerca de 980 pessoas foram detidas e levadas à Arena Nacional, em Kingston. Dentre elas, 67 jovens menores de idade e quatro mulheres.

Já nos dois meses seguintes de estado de exceção, mais de quatro mil pessoas, inclusive crianças, foram detidas sob as normas de emergência. Duas delas, levadas "sob custódia”, estão desaparecidas até hoje. A Anistia Internacional denuncia que a maioria foi detida sem acusação, julgamento ou acesso à defesa.

Para a organização, o acontecimento foi o pior na história pós-independência da Jamaica, comparável apenas ao assassinato de 500 escravos por oficiais coloniais durante a revolta liderada por Sam Sharpe, em 1831.

No informe, depoimentos dos familiares das vítimas retratam os abusos cometidos por policiais, que mataram pessoas inocentes. Apesar disso, segundo o documento, o Comissário de Polícia elogiou o profissionalismo das forças de segurança, enquanto o ministro da Segurança Nacional declarou que a abordagem utilizada na comunidade Tivoli Gardens seria usada como modelo para "entrar em todas as comunidades onde existem a criminalidade e impérios criminosos".

Para que se faça justiça, a especialista da Anistia Internacional na Jamaica, Chiara Liguori, aponta a necessidade de uma comissão de investigação independente "para garantir que todas as violações de direitos humanos perpetradas em Tivoli Gardens no ano passado não fiquem impunes, como ocorreu com tantas outras na Jamaica”.

O documento indica ainda que as investigações foram prejudicadas por deficiências na etapa inicial, como a não proteção aos lugares onde os crimes foram cometidos e a não conservação das armas de fogo para realizar provas balísticas. Há também deficiência de pessoal qualificado, já que a Unidade de Medicina Legal do Ministério de Segurança Nacional conta com apenas dois patologistas forenses.

Ao final do informe, a Anistia Internacional apresenta mais de 50 recomendações às autoridades jamaicanas para que se crie uma comissão imparcial de investigação e se previna mais assassinatos ilegais.

O documento, em inglês, está disponível para download no link: http://www.amnesty.org/en/library/asset/AMR38/002/2011/en/d452da6f-50b9-4553-919c-0ce0ccedc9d8/amr380022011en.pdf

Mulheres das comunidades nativas exigem seus direitos

SEMlac
Serviço de Noticias da Mulher da América Latina e Caribe
Adital
Por Julia Vicuña Yacarine
(jvicuna@tarea.pe)
Tradução: ADITAL

"Existe um grande desconhecimento de nossa realidade por parte das autoridades; por isso, lhes pedimos que visitem nossas comunidades, conversem conosco, com nossos líderes e conheçam diretamente os problemas econômicos, de saúde e de educação que enfrentamos no dia a dia”, reclamou Andrea Campos Jari, dirigente da Federação Regional de Mulheres Ashaninkas, Nomatsiguengas e Kakintes (Fremank).

Campos, junto a meia centena de líderes amazônicas, enfeitadas com seus trajes típicos e acompanhadas por seus filhos e filhas pequenos e pelos líderes de suas comunidades, chegaram à capital peruana desde a selva central do Peru para participar na Audiência Pública: "Situação das Mulheres Indígenas Amazônicas e Propostas de Mudanças Elaboradas pelas Mulheres”, que se realizou no Congresso da República.

Mulheres Ashaninkas e Nomatsiguengas da Selva Central, mulheres Awajun, do Alto Marañón, representantes de populações historicamente excluídas do exercício de seus direitos individuais e coletivos, explicaram porque o território é um elemento fundamental para elas e para suas comunidades e demandaram uma adequada aplicação das normas nacionais e internacionais, principalmente do Convênio 196 da Organização Internacional do Trabalho (OIT).

O Congresso Peruano assinou e ratificou, em 2 de dezembro de 1993, o Convênio 169, cujos princípios básicos são respeito e participação das comunidades nativas; respeito ao território, à vida, à saúde, à cultura, à religião, à sua organização político-social-econômica e identidade própria; e participação nas decisões estatais que os afetem diretamente e participação na vida política e econômica nacional.

Educação que não chega

Na sede do Poder Legislativo peruano, as líderes amazônicas ressaltaram que a falta de acesso à educação é outro problema agravante na Amazônia peruana, onde a taxa de analfabetismo feminino flutua entre 76,3%, no caso da população Nomatsiguenga; 54,2% na Ashaninka; 38,4% na Kakinte e 73,9% na Awajun, situação que se agrava devido as grandes debilidades do sistema educativo nacional.

"Nós sempre fomos excluídas e discriminadas; temos direito a uma atenção intercultural bilíngue, tal como estabelece o Convênio 169, da OIT; porém, os professores, em sua maioria, somente falam castelhano”, denunciou na Audiência Pública Maritza Casancho Rodríguez, comunitária do setor Casancho, da Comunidade San Ramón de Pangoa, situada no sudeste do Departamento de Junín.

Por seu lado, Campos, de Fremank, denunciou que nas escolas de sua comunidade, Betania, situada no distrito de Rio Tambo, província de Satipo, também em Junín, muitos professores não são bilíngues. "Somente ensinam em espanhol e esse é um problema porque desconhecem que as comunidades nativas temos o direito a uma educação intercultural bilíngue”.

As mulheres demandaram a implementação de uma educação intercultural bilíngue que coloque fim ao racismo e à exclusão que continuam caracterizando o país e a realização de campanhas de alfabetização para as mulheres adultas nas comunidades, em coordenação com os setores de Educação, Saúde e com o Ministério da Mulher, entre outras ações.

O abandono no qual vivem as comunidades nativas também se expressa nos sistemas de saúde. Menos da metade (49,9%) de comunidades indígenas conta com algum tipo de estabelecimento de saúde e somente 45,5% possui botequins adequados para atender a emergências. A metade das mortes acontecem antes dos 42 anos, 20 anos menos de vida em relação à média nacional.

"Nunca tivemos uma atenção com qualidade. Os servidores de saúde desconhecem o Convênio 169 da OIT que estabelece que as comunidades nativas temos direito a uma atenção intercultural bilíngue. É necessária a presença de tradutores nos hospitais para atender adequadamente à população indígena que não fala espanhol”.

Para enfrentar essa dramática situação, exigem o incremento de recursos de Saúde para as comunidades indígenas; campanhas de promoção dos direitos sexuais e reprodutivos; a incorporação da medicina tradicional no sistema de saúde; a sensibilização e a capacitação de pessoal em saúde para oferecer uma atenção cálida e de qualidade, no marco do Convênio 169, da OIT.

As mulheres amazônicas também denunciaram que são vítimas de violência e demandaram a capacitação e sensibilização de suas comunidades para enfrentá-la.

"Pedimos a capacitação de toda a comunidade: mulheres, homens, adolescentes, crianças sobre os direitos das mulheres e o grave problema da violência”, reclamou Claudia Alegría Potsoteni, Secretária de Economia de Fremank e membro da Comunidade San Miguel de Otica.

No caso das autoridades e dos chefes das comunidades nativas, assinalou que, além de "ser sensibilizados, devem ser capacitados sobre as leis e acordos nacionais e internacionais para que possam aplicar bem a justiça. "Nós não lutamos contra nossos companheiros homens; queremos é igualdade de oportunidades”, explicou a dirigente amazônica.

Entre janeiro e outubro de 2010, segundo o Centro de Emergência da Mulher de Satipo, foram atendidos 314 casos de violência familiar e sexual e, o mais grave, é que os funcionários encarregados desse serviço não conhecem os idiomas nativos, e nem os diferentes enfoques de atenção incorporam a diversidade e a cosmovisão da mulher amazônica sobre a violência e a injustiça.

Reparação para as vítimas de violência política

Sobre os efeitos do conflito armado que sacudiu esse país entre a década dos 80 e 2000, tema do qual pouco se fala, Jonatan Sharete Quinchoker, Presidente da Organização Campa Ashaninka do Rio Ene, expressou sua preocupação com as vítimas da violência política e exigiu que sejam beneficiadas pelo Plano Integral de Reparações.

"Durante a década dos 80, os terroristas chegaram a nossa comunidade e levaram muitos jovens, causando grande dor às mães que sofreram com sua partida. Nós não queremos violência; porém, agora o narcotráfico é o grande problema para nós, porque cresce a cada dia. As mulheres indígenas temem por seus filhos, porque podem ser captados ou sequestrados para que trabalhem nos cultivos de coca”.

Em plena selva central, na zona do VRAE (siglas de Valle del Río Apurimac y Ene), limítrofe com territórios ashaninka, subsistem os últimos baluartes do Sendero Luminoso (organização terrorista que enfrentou o Estado peruano na década de 80) em aliança com grupos de narcotraficantes.

Estima-se que na zona existem uma 17.000 hectares de folha de coca que produzem cerca de 160 toneladas anuais de cocaína, segundo a Oficina das Nações Unidas contra a Droga e o Delito (ONUDD).

Por seu lado, David Juan Chanqueti Chumpate, chefe da comunidade Alto Kiatari, no Distrito de Pangoa, província de Satipo, assinalou que o governo de turno não presta atenção às comunidades indígenas do país; no entanto, "sinto-me contente porque, por primeira vez, há uma reunião interétnica no Congresso da república para apresentar as propostas das mulheres”.

As líderes entregaram a agenda de propostas, elaborada de maneira conjunta entre as instituições que as agrupam, ao congressista Washington Zeballos Gámez, presidente da Comissão de Povos Andinos, Amazônicos e Afroperuanos, Ambiente e Ecologia do Congresso.

A audiência pública realizou-se no dia 29 de abril, no marco do Projeto "Ações para promover o Exercício dos Direitos Humanos das Mulheres Indígenas Amazônicas na Província de Satipo (Junín)”, implementado pelo Centro da Mulher Peruana Flora Tristán, com o apoio da Cruz Vermelha Espanhola.