quinta-feira, 2 de fevereiro de 2012

Vale do Jequitinhonha: chapada da esperança e da migração‏

Vale do Jequitinhonha: chapada da esperança e da migração

A missão no Vale do Jequitinhonha (MG) é muito conhecida nos bastidores da vida religiosa. Fala-se sempre desta experiência missionária, especialmente pelos que já foram em algum momento lá. Com isto, não é sem motivo que este lugar desperte em grande parte dos seminaristas e religiosos algum certo tipo de curiosidade. O que tem lá de tão especial assim? Para os que tiverem esta pergunta em mente, afirmo de antemão que jamais encontrarão respostas com qualquer relato ou comentário dos que já foram. Será preciso ir realmente até lá para ficar satisfeito com a resposta desta questão.

A última missão aconteceu na Paróquia de São Bento, da cidade de Novo Cruzeiro, Diocese de Araçuaí, entre os dias 22 e 28 de janeiro, e reuniu mais de 40 missionários (padres, religiosos e religiosas, seminaristas e leigos). O tema da missão nos convidava a refletir sobre uma condição fundamental da comunidade: a projeção das condições de vida para o futuro – “Desenvolvimento local sustentável e segurança alimentar em comunidades rurais: Novo Cruzeiro é possível”. A atividade missionária aconteceu em dois setores rurais específicos: Lufa e Queixada. Sobre a dinâmica institucional religiosa, é preciso dizer que esta paróquia específica tem 72 comunidades pertencentes a ela, e o primeiro entrave começa justamente neste ponto, pois há somente um padre para atender este território.

No encontro de preparação inicial dos missionários, antes da celebração do envio, fomos orientados sobre os aspectos gerais do contexto social, político, cultural e religioso da comunidade. O destaque apontado foi indiscutivelmente o fator migratório na região, que tem sido a vários anos um fenômeno recorrente na localidade. Ou seja, a migração assume nesta condição uma função vital, qual seja a da sobrevivência. Assim, a missão foi uma celebração da vida deste migrante e sua família, pois mais do que a migração pela necessidade de subsistência na origem, ela também é o prolongamento da reprodução simbólica de todos os traços culturais no destino. Esta conjunção de motivações é o exato sentido sobre a mobilidade humana que os missionários foram orientados na preparação inicial, como proposta de envolvimento nas visitas domiciliares e celebrações locais.

Para onde partiram e estão partindo os trabalhadores da comunidade? A primeira informação sobre isto recebi do Pe. Delmiro, o pároco, quando disse que muitas famílias tinham pessoas (maridos, filhos e filhas, tios, sobrinhos, netos) na cidade de Piracicaba (SP). Este dado inicial soou-me como estarrecedor, não pelo fato migratório, mas pelo lugar de destino. Piracicaba? Como piracicabano nato que sou, nunca imaginava que fosse encontrar em Novo Cruzeiro uma migração maciça para Piracicaba, minha cidade natal. Minha tríplice curiosidade estava formada: a de seminarista, a de sociólogo e a de piracicabano. No primeiro momento não fiquei tão convencido que havia tanta ligação com Piracicaba.

Edna, que me recebeu para a primeira noite de hospedagem, foi logo dizendo quando chegamos em sua casa para dormir, que ela tinha uma irmã morando em Piracicaba. Este foi o início de tantos relatos que comecei a ouvir das famílias que realmente tinham parentes e conhecidos em Piracicaba. Quando fomos enviados nas comunidades rurais, fui recebido na casa do Sr. Nelo e Dona Francisca, que também tem um filho vivendo em Piracicaba. Desta forma, aos poucos esta realidade da migração para Piracicaba especificamente foi se demonstrando tão intensa e verídica, que fui constatando o que chamo de curiosa relação Novo Cruzeiro – Piracicaba, que é tão próxima e estreita, cuja distância é superada por transportes locais que levam e trazem migrantes duas vezes por semana pelo custo de R$ 130,00, e com o detalhe importante de estar sempre com a lotação esgotada, obrigando muitos a ficarem numa lista de espera. Quando indaguei sobre o motivo específico porque muitos iam para Piracicaba, a resposta foi unânime: “lá é parecido com a roça daqui”, ou seja, muitos ainda conseguem a possuir a liberdade de andar livremente de bicicletas pelas ruas, algo que numa cidade como São Paulo isso já não é tão possível assim. Esta é a semelhança de contexto que os migrantes constroem no imaginário para viabilizar o destino em Piracicaba.

Com as famílias de Edna e do Sr. Nelo e Dona Francisca que tem pessoas em Piracicaba, foram somando-se as famílias do Sr. Mililiu, Sr. Manoel e Dona Nair, Dega, Girlene, João, Isa, Antonio, Rosa, Marcinho, Ivanildo, entre estes vários que também já estiveram em Piracicaba e retornaram temporariamente para um breve período e depois voltariam para Piracicaba. Este processo “lá” e “cá” tem implicações importantes para a dinâmica social local, pois no retorno à origem, os migrantes sempre trazem consigo novas posturas de sociabilidade, como o fato de que já são poucos os momentos em que os vizinhos se ajudam entre si a bater o feijão. Os antigos laços tradicionais de solidariedade começam a ser desconstruídos. Isto faz com que as atuais dificuldades enfrentadas pela comunidade tornem-se ainda mais complexas, dada a falta de reciprocidade entre os moradores locais.

Assim, problemas com a água cada vez mais escassa, estradas e meios de transportes precários, falta de comunicação via telefone, difícil atendimento à saúde pública, pouca oportunidade para a venda da agricultura familiar, escolas com estruturas de baixa qualidade, etc., vai se constituindo cada vez mais complexos em sua composição, e de inimagináveis possibilidades de soluções.

Por fim, a grande marca que a missão no Vale do Jequitinhonha deixou a todos os missionários foi a bonita capacidade de construir esperanças que todo o povo de Novo Cruzeiro possui. Esperanças renovadas no canto das celebrações, lagrimejadas no olhar da despedida, no afetuoso abraço da partida, na crença do momento de uma palavra bem dita verbalizada na benção do missionário, e muito especialmente na possibilidade da travessia para construir uma vida melhor. O Vale do Jequitinhonha é uma verdade chapada da esperança e da migração.


Eduardo Gabriel, sociólogo e seminarista scalabriniano.

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