quinta-feira, 10 de fevereiro de 2011

COMUNIDADE E EVANGELIZAÇÃO

Pe. Alfredo J. Gonçalves, CS
Comunidade e Evangelização – tema proposto pela Direção Geral para a reflexão neste ano de 2011 – constituem dois pólos indissociáveis da Vida Religiosa Consagrada (VRC). Longe de se excluírem ou se isolarem, ambos se interpelam e se entrelaçam, se fortalecem e interagem reciprocamente. Quando a vida comunitária se desdobra em atividades apostólicas, estas tendem a enriquecer o oxigênio da atmosfera que se respira no interior daquela. Em inversamente, quando as exigências e desafios da evangelização contam com a retaguarda de um ambiente familiar e fraterno, o apóstolo sentir-se-á bem mais sólido e seguro em sua missão. Numa palavra, o religioso e o missionário formam duas faces da mesma moeda. Numa dialética circular e espiral, convergem para uma busca de rica e verdadeira integração. Fundindo-se numa única pessoa, representam duas dimensões de uma vocação que é sempre irrepetível.

1. Diferentes sim, desiguais não
Se os dois pólos se complementam e se encontram devidamente integrados, então podemos desfazer alguns mitos ou pretextos, que hoje estão em voga e que pretendem explicar os conflitos ou as freqüentes desistências a partir de falsas premissas. O primeiro mito ou pretexto insiste em que as diferentes etnias e línguas, povos e culturas costumam impedir uma harmonia mais perfeita entre a vida comunitária e a atividade evangelizadora. Mero engano! Se é verdade que essas diferenças requerem atenção e cuidado permanente, a experiência mostra que elas, por si só, não são motivo de pobreza, e sim de maior riqueza e aprofundamento recíproco. Para além das tensões étnicas, lingüísticas e culturais, o que nos divide são motivações bem mais profundas e perniciosas em sua raiz oculta e desconhecida. Toda pessoa humana é capaz de comunicar-se, não apesar de um idioma e de costumes diferentes, mas justamente por causa disso ou através disso. Basta que, em meio às distinções, estejamos dispostos a um intercâmbio onde cada um contribui para o crescimento mútuo. Não custa lembrar o lema do Movimento Leigo Scalabriniano: diferentes sim desiguais não! Se somos diferentes em termos culturais, bem podemos ser iguais ou eqüitativos em termos socioeconômicos e políticos.

2. O ancião, o adulto e o jovem
Um outro mito ou pretexto tem a ver com os conflitos de gerações. A convivência entre avós, pais e netos, por um lado, ou entre anciãos, adultos e jovens, por outro, tem sim seus problemas. Mas não costumam ser estes que semeiam a discórdia, seja no interior da comunidade religiosa, seja na reflexão sobre um plano conjunto de ação pastoral. Também aqui, para além das tensões provocadas pelas gerações desiguais, não será difícil identificar outras motivações de desamor, muitas vezes inconfessadas e inconfessáveis. Na grande maioria dos casos, as desavenças entre religiosos jovens, adultos e anciãos passam não tanto pela diferença de idade, e sim pela inveja e o ciúme, o rancor e o ódio, ou, mais fundo ainda, nas brigas surdas pela disputa de poder, dinheiro e influência. Nesse terreno minado, o conflito entre gerações acaba simultaneamente velando e revelando algo mais sério e preocupante. Generaliza-se então, como uma espécie de regra muda, tácita e cotidiana, a atitude nociva de “puxar o tapete” do outro. Na contramão dessa prática, são muitas as comunidades religiosas onde pessoas de diferentes idades estabelecem uma harmonia alegre e saudável, onde experiência e audácia convergem para iniciativas enriquecedoras. Isso faz perguntar: até que ponto, como religiosos e sacerdotes, desenvolvemos a capacidade de compartilhar sadiamente tanto os sucessos quanto os fracassos uns dos outros? E isso independentemente da idade, da raça, da formação ou da origem de cada um. Algumas perguntas incômodas e interpeladoras: bem no fundo, ficamos tristes diante da queda dos companheiros e alegres diante de suas vitórias? Sabemos partilhar juntos o pranto e a festa? Não é esse um bom termômetro para avaliar o grau de nossa amizade e solidariedade fraterna?

3. No meio do caminho tinha uma pedra...
Enfim, o terceiro mito ou pretexto vem dos próprios desafios da ação evangelizadora. Neste caso, precisamos ser claros e taxativos: não são os obstáculos e adversidades do trabalho que nos derrubam. Somos pessoas chamadas por Deus, respondemos ao chamado com manifesta coragem, estamos preparados para as pedras e espinhos do caminho. Não é isso que nos paralisa pelo medo ou a impotência. O que nos faz tropeçar, o que enfraquece nossas pernas, o que nos abate e debilita a ousadia inicial é, antes de tudo, a carência de um ambiente amigo, fraterno e solidário. Por mais adultos e crescidos que sejamos, na hora da crise bate a saudade consciente ou inconsciente do colo e do clima de um lar.
Vale aqui o exemplo do casal: quando este está apaixonado, enfrenta qualquer tipo de dificuldade para salvar o amor e a família. Da mesma forma, uma comunidade religiosa, que pelo carisma comum cultiva um mínimo de bem querer, não se deixa abater facilmente frente às dificuldades da pastoral. O que nos asfixia ou asfixia a nossa vocação não é tanto o excesso de trabalho ou de responsabilidades, mas a falta de um ambiente familiar, de um lugar de abastecimento, para utilizar a metáfora do posto de combustível. Ou seja, ponto de chegada que se converte em novo ponto de partida. Espaço aberto e confiável, onde o pranto e o riso se sentem livres; espaço de encontro, onde podemos nos desnudar sem receio nem vergonha. Pois a nudez só é possível diante do olhar que nos ama, porque este a reveste de carinho e ternura.
Sem esse lugar íntimo e afetivo de irmãos que se querem bem, dificilmente nos mantemos de pé, dificilmente manteremos vivo e ativo o ardor missionário que nos fez marchar até o presente momento. Um lar sadio dá asas aos pés do missionário, pois, ocorra o que ocorrer, ele tem a certeza de encontrar sempre refúgio, abrigo e compreensão. Quando alguém em casa reza e torce por nós, revigoram-se as energias para a luta diária; ao contrário, se em casa não há interesse e repercussão pelo que fazemos, o desânimo começa a dominar nossa vocação e missão.
Para os três casos, existe uma exuberante vegetação de palavras, ações e escritos de Scalabrini que poderiam nos orientar a desmentir os mitos ou pretextos apontados acima. Fixemo-nos, de modo particular, em suas palavras de despedida dedicadas aos primeiros missionários dos migrantes na Catedral de Piacenza. Nelas se traduz de maneira eloquente a importância de casar indissoluvelmente a comunidade com a missão evangelizadora. Mas vale também sua clássica descrição da Estação de Milão, onde o coração de pastor, sangra pelas feridas de suas “ovelhas que partem”, a ponto de intuir a necessidade de uma obra simultaneamente religiosa e apostólica para seguir-lhes os passos, ao mesmo tempo incertos, corajosos e titubeantes.

4. Tríplice dimensão da VRC
A esta altura, podemos introduzir um terceiro pólo da VRC: o cultivo de uma espiritualidade cuja via e meta é a relação de Jesus com o Pai (Abba). Sem essa busca progressiva de uma intimidade com Deus, no seguimento dos passos trilhados pelo Mestre, ficam comprometidos tanto o pólo da Comunidade quanto o da Evangelização. Voltam à tona as três dimensões da Vida Consagrada: montanha, onde amadurece a oração e a contemplação; casa/mesa ou comensalidade, como lugar em que se partilha o pão e a vida; caminho, como campo de ação para as atividades sócio-pastorais, especialmente na área da mobilidade humana em geral, e da Pastoral Migratória em particular. Em não poucos casos, essas três dimensões são vistas como gavetas fechadas, incomunicáveis, cerradas entre si. Não raro, prevalece a dicotomia ou o dualismo entre uma e outra, quando não a hostilidade e a perseguição. Daí a esquizofrenia de muitas comunidades e, em consequência, de alguns religiosos, com suas vidas fragmentadas, sem um eixo convergente e norteador.
Resulta que é quase impossível manter-se ativos e criativos na missão se não contamos com o alimento místico da espiritualidade e com a companhia afetiva de uma comunidade. Encontro com Deus e encontro com os irmãos dão força e estabilidade à ação pastoral. Há aqui um segredo: as horas dedicadas à montanha ou à casa/mesa de forma alguma constituem tempo subtraído ao compromisso com os pobres ou migrantes. Ao contrário, é um tempo que direta ou indiretamente irá qualificar nossa práxis. Em poucas palavras, a prioridade não é multiplicar atividade sobre atividade, encher a agenda, e sim revestir as ações de um novo encanto. Qualidade que só pode ser engendrada pelo silêncio da escuta, da oração e da contemplação.
Vale dizer, pela confiança na eficácia da graça de Deus agindo em meio a nossas fraquezas e limitações. O Espírito somente pode transformar a história pessoal e coletiva quando permanecemos abertos à sua irrupção inesperada e surpreendente. Mas é o silêncio que produz essa abertura, capaz de produzir igualmente palavras novas, vivas e criativas. Do silêncio da família de Nazaré brotam as palavras de Jesus. E este, após trinta anos de escuta, não apenas traz uma Boa Nova, mas torna-se Boa Nova para os pobres, os aflitos, os indefesos...

5. Um ponto final
A conclusão poderia apontar algumas passagens evangélicas em que Jesus revela a importância das três dimensões analisadas. A respeito da montanha e do cultivo de uma intimidade crescente com o Pai, temos Lc 11,1-4, quando os discípulos, vendo o êxtase do Mestre, pedem que os ensine a rezar, cena de onde vem o legado espiritual do Pai-nosso. O melhor exemplo da dimensão da casa/mesa, no conceito de comensalidade, vem do Quarto Evangelho, nos capítulos de 13 a 17: verdadeiro “evangelho dentro do evangelho”, em que transparece o coração paterno/materno de Jesus, testamento espiritual deixado na hora trágica da partida. Somente João, “o discípulo que Jesus amava” e que está mais perto de seu coração, poderia nos deixar essa pérola preciosa, onde linguagem e conteúdo estão profundamente impregnados de ternura, carinho e amor compassivo. Por fim, a dimensão do caminho, da missão, da ação pastoral e evangelizadora encontra sua marca registrada nos episódios do Bom Samaritano (Lc 10, 25-37), dos discípulos de Emaús (Lc 24, 13-35) e do filho pródigo ou pai bondoso (Lc 15, 1- 32). Mas convém sublinhar o chamado “resumo das atividades de Jesus”, em Mt 9,35-38. Ao encontrar as “multidões cansadas e abatidas, como ovelhas que não têm pastor”, Ele revela o perdão, a misericórdia e a compaixão, três sentimentos que são a viga mestra do cristianismo como contribuição à cultura da humanidade.
Nesta perspectiva, a caravana de Jesus nunca atropela quem sofre e é marginalizado pela tríplice acusação de doente, pecador e excluído. Sua caravana sempre se detém diante daqueles que sofrem e gritam por socorro. Poderíamos enumerar a esse respeito os dois cegos de nascença, as crianças, os leprosos, a mulher que padece de fluxo de sangue, outra mulher, a adúltera anônima. Concentremos nossa atenção sobre esta última (Jo 8,1-12). Três atitudes são evidentes: a da própria mulher, vítima de uma sociedade patriarcal e que, por isso, cabisbaixa, já introjetou o pecado dentro de si mesma; a da opinião pública, que aponta o dedo em riste, acusa e se dispõe ao apedrejamento imediato; a de Jesus, que traz a pecadora para o centro e, a partir dela, passa a julgar os espectadores. A ré se converteu em juiz e os juízes saem sorrateiramente, para esconder a própria hipocrisia. “Vai e não peques mais!” Jesus não legitima o pecado, mas acolhe o pecador. Aqui, uma vez mais, o perdão aparece como pano de fundo, o DNA da Boa Nova de Jesus Cristo.

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