Pe. Alfredo J. Gonçalves, CS,
Inegavelmente, a devoção ao Sagrado Coração de Jesus, praticada nas primeiras sextas-feiras de cada mês, remonta aos próprios relatos evangélicos, de modo particular no último desses relatos. De fato, a manifestação mais terna e sensível do coração de Jesus encontra-se nos capítulos 13 a 17 de Evangelho de João. Trata-se, sem dúvida, de uma espécie de “testamento espiritual” do Mestre. Prevendo para breve sua morte trágica, Jesus reúne os amigos mais íntimos num encontro especial de despedida, que começa com o gesto da última ceia, desdobra-se com as palavras de conforto e esperança e termina com a chamada oração sacerdotal. Evangelho dentro do Evangelho, essas páginas respiram uma atmosfera de intensa familiaridade, traduzindo, ao mesmo tempo, um carinho desbordante entre Mestre e discípulos. Em nenhum lugar como nessas páginas se reflete a maior dádiva do cristianismo à cultura ética da humanidade: o perdão e a misericórdia, o amor incondicional e a compaixão.
A própria linguagem é reveladora do clima de ternura e carinho. A terminologia revela o coração materno de Jesus, com palavras de uma expressão íntima e calorosa ao extremo: “meus filhinhos”; “vou para o Pai, mas não vos deixarei órfãos”; “amem-se uns aos outros como eu vos amei”; “por um pouco não me vereis, depois me vereis de novo”; “sejam um como eu e o Pai somos um”; “na Casa de meu Pai existem muitas moradas, eu vou reservar para vocês um lugar”; “permanecem unidos a mim, eu sou a videira, vós os ramos”; “Eu sou o caminho, a verdade e a vida”; “não temas, eu venci o mundo”. Coração paterno/materno, por um lado transbordando de tristeza pela separação, por outro exultando de alegria pela missão cumprida e pelo retorno ao Pai. Prestes a partir, a deixar os seus, deixa-lhes palavras inesquecíveis, gravadas na alma de cada um com o fogo do amor e da paixão. Somente “o discípulo mais amado” poderia reproduzir tais momentos tão íntimos, profundos e familiares. E somente ele poderia resumir tudo isso numa das expressões mais caras sobre a teologia da revelação: “Deus é amor” (1Jo 4,8).
Mas a devoção ao Sagrado Coração de Jesus ganha seu maior impulso com as aparições de Nosso Senhor a Santa Maria Margarida Alacoque, no mosteiro de Paray-le-Monial, Autun, França, a partir de 1673. O Papa Pio XII, na carta encíclica Haurietes aquas, de 15 de maio de 1956, enfatiza que é o próprio Jesus que toma a iniciativa de nos apresentar o seu coração como fonte de abrigo, consolo e de paz: “Vinde a mim todos vós que estais cansados e oprimidos, e eu vos aliviarei. Tomai sobre vós o meu jugo e aprendei de mim, porque sou manso e humilde de coração, e encontrareis descanso para o vosso espírito. Porque o meu jugo é suave e o meu fardo é leve” (Mt 11,28-30).
A devoção ao Sagrado Coração de Jesus, por outro lado, não pode ser desvinculada da devoção ao Sagrado Coração de Maria. Uma é tão antiga quanto a outra, estando ambas ancoradas nos escritos neotestamentários. De fato, no Evangelho de Lucas, evangelista da infância de Jesus, no capítulo dois por duas vezes se repete uma expressão praticamente com as mesmas palavras: versículo 19: “Maria, porém, conservava todos esses fatos, e meditava sobre eles em seu coração”; versículo 51b: “E sua mãe conservava no coração todas essas coisas”. Que fatos e que coisas? Certamente aquelas que diziam respeito ao Menino que “crescia em sabedoria, em estatura e graça, diante de Deus e dos homens” (L 2,52). Mãe e Filho mantêm o coração sintonizado nos mistérios de Deus.
Não custa deter-nos um pouco nos verbos guardar, conservar e meditar, atribuídos a Maria. Resumem uma atitude de oração e abertura ao Espírito, de mística e contemplação. Expressam também a busca humana pelo sentido mais profundo dos acontecimentos cotidianos: que corrente subterrânea e obscura se esconde por trás das ondas aparentes da história? Revelam, enfim, um coração simultaneamente irrequieto, mas sereno, que na intimidade com Deus aprendeu a sabedoria da confiança. O coração de Maria e o coração de Jesus sabem que os aparentes medos, paradoxos, inquietações, incongruências e contradições em que se debatem os seres humanos carregam um significado secreto e misterioso. Os fatos sociológicos, nus e crus, brutais e absurdos, ao mesmo tempo velam e revelam um sentido que somente o olhar da fé é capaz de penetrar. A brisa divina que afaga as pétalas das flores e das folhas, as penas das aves e a superfície das águas, é a mesma que acaricia o rosto dos caminhantes. Guardar e meditar tem a ver com a memória. Memória que retoma o passado, avalia suas potencialidades com a luz do presente, voltada para o horizonte do futuro. E essa arte de guardar e meditar, quando reinterpretada a partir da fé, é capaz de sentir os dedos invisíveis de Deus costurando o tecido fragmentado e dilacerado da história. Tal como a sinfonia da criação se expressa no canto das águas e dos pássaros, no sorriso das crianças e dos sábios, no brilho dos astros e no olhar de quem ama, também se expressa na harmonia dos que penetram o mistério da salvação. O coração destes, a exemplo de Maria e de Jesus, passa a bater no compasso da melodia de todos os seres criados. Torna-se um instrumento de notas afinadas na grande orquestra do universo.
Do ponto de vista da mobilidade humana, a devoção ao Sagrado Coração de Jesus e de Maria apresenta uma face inesperada. De fato, o coração de Jesus e de Maria costuma ser a pátria dos que perderam o direito a uma cidadania digna e plena, da enorme multidão dos “sem”: sem documentos ou trabalho, sem terra nem rumo, sem perspectivas de futuro. Imigrantes irregulares, migrantes internos, refugiados políticos ou climáticos, deportados, trabalhadores temporários, marítimos, itinerantes, prófogos, estudantes e técnicos... Todos estes rostos formam um enorme desfile dos sem pátria, às vezes mesmo dentro do território do país em que nasceram. Sem pátria porque desprovidos das condições mínimas necessárias à cidadania, porque viram seus direitos ignorados ou pisoteados pela tirania ou pelo descaso das autoridades.
Escrevendo “aos que vivem dispersos como estrangeiros no Ponto, Galácia, Capadócia, Ásia e Bitínia” (1Pd 1,1), o apóstolo Pedro lembra que a união entre eles há ser tão forte que forme a “Casa de Deus”, referência para os que tiveram que cortar raízes com a terra e a família, e em terra estranha sofrem hostilidade e perseguição. Isso nos leva ao pranto dos israelitas exilados, os quais expressam seu lamento dizendo que “junto aos canais da Babilônia nos sentamos e choramos com saudades de Sião. Nos salgueiros de suas margens penduramos nossas harpas”. “Como cantar um canto de Javé em terra estrangeira?” (Sl 137). Que dizer dos milhares ou milhões de pessoas que terão que deslocar-se em massa devido à onda de insurreição que vem sacudindo países de maioria islâmica como Egito, Tunísia, Síria, Argélia, Iêmen, entre outros?
Esses corações que amargam inúmeras adversidades por se sentirem órfãos numa terra estranha, ou mesmo no torrão em que nasceram, experimentando um sofrimento tal que chegam ao ponto de destilar veneno – “Feliz quem agarrar e esmagar seus nenês contra o rochedo” (Sl 137, 9) – encontram no Coração de Jesus e de Maria um abrigo, um refúgio, uma pátria. Ensinam também que, embora necessária e legitima a luta pela justiça e o direito e por condições dignas de vida, o coração humano só repousará tranquilo no reencontro com a Casa de Deus, a pátria definitiva.
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