Jardim da Saudade (Ao meu irmão, Frei Tito)
Frei Betto
Frade dominicano e escritor. Viveu junto com Tito no convento dos frades dominicanos em São Paulo. Autor de Batismo de Sangue em que relata a luta política de Frei Tito.
Na terça-feira. 17 de fevereiro de 1970, oficiais do Exército retiraram Frei Tito de Alencar Lima do Presídio Tiradentes, onde se encontrava preso desde 1969, acusado de subversão. “Você agora vai conhecer a sucursal do inferno”, disse-lhe o capitão Maurício Lopes Lima.
No quartel da rua Tutóia, um outro prisioneiro, Fernando Gabeira, testemunhou o calvário de frei Tito: durante três dias, dependurado no pau-de-arara ou sentado na cadeira-do-dragão -feita de chapas metálicas e fios-, recebeu choques elétricos na cabeça, nos tendões dos pés e nos ouvidos. Deram-lhe pauladas nas costas, no peito e nas pernas, incharam suas mãos com palmatória, revestiram-no de paramentos e o fizeram abrir a boca “para receber a hóstia sagrada” - descargas elétricas na boca. Queimaram pontas de cigarro em seu corpo e fizeram-no passar pelo “corredor polonês”.
O capitão Beroni de Arruda Albernaz vaticinou: "Se não falar, será quebrado por dentro. Sabemos fazer as coisas sem deixar marcas visíveis. Se sobreviver, jamais esquecerá o preço de sua valentia". A ceder e viver, Tito preferiu morrer. “É preferível morrer do que perder a vida", escreveu ele em sua Bíblia. Com uma gilete, cortou a artéria do braço esquerdo. Socorrido a tempo, sobreviveu.
Foi libertado em dezembro de 1970, incluído entre os prisioneiros políticos trocados pelo embaixador suíço, seqüestrado pela VPR. Ao desembarcarem em Santiago do Chile, um companheiro comentou: “Tito, eis finalmente a liberdade!”. O frade dominicano murmurou: “Não, não é esta a liberdade”.
Em Roma, as portas do Colégio Pio Brasileiro, seminário destinado a formar a elite do nosso clero, fecharam-se para o religioso com fama de "terrorista". Em Paris, nossos confrades o acolheram no convento de Saint Jacques, em cuja entrada uma placa recorda a invasão da Gestapo, em 1943, e o assassinato de dois dominicanos.
O capitão Albernaz tinha razão: sufocado por seus fantasmas interiores, Tito tornou-se ausente. Ouvia continuamente a voz rouca do delegado Fleury, que o prendera, e o vislumbrava em cafés e bulevares. Transferido para o convento de I'Arbresle, construído por Le Corbusier, nas proximidades de Lyon, as visões aterradoras continuaram a minar sua estrutura psíquica. Escrevia poemas:
“Em luzes e trevas derrama o sangue de minha existência / Quem me dirá como é o existir / Experiência do visível ou do invisível”.
Os médicos recomendaram-no suspender os estudos para dedicar-se a trabalhos manuais. Empregou-se como horticultor em Villefranche-sur-Saône e alugou um pequeno cômodo numa pensão de imigrantes, o Foyer Sonacotra, cujas despesas pagava com o próprio salário. O patrão o percebeu indolente, ora alegre, ora triste, sugado por um tormento interior. Em seu caderno de poemas, Tito registrou:
“São noites de silêncio / Vozes que clamam num espaço infinito / Um silêncio do homem e um silêncio de Deus”.
No sábado, 10 de agosto de 1974, frei Roland Ducret foi visitá-lo. Bateu à porta de seu quarto, na zona rural. Ninguém respondeu. Um estranho silêncio pairava sob o céu azul do verão francês e envolvia folhas, vento, flores e pássaros. Nada se movia. Sob a copa de um álamo, o corpo de Frei Tito dependurado por uma corda, balançava entre o céu e a terra. Ele tinha 28 anos.
Em março de 1983, seus restos mortais retornaram ao Brasil. Acolhidos em solene liturgia na Catedral da Sé, em São Paulo, encontram-se enterrados em Fortaleza, sua terra natal. O cardeal Aros frisou que Tito afinal encontrara, do outro lado da vida, a unidade perdida.
Nos eventos que ocorreram em várias cidades do país, rezamos juntos o poema que Tito escreveu em Paris, a 12 de outubro de 1972:
“Quando secar o rio da minha infância / secará toda dor. Quando os regatos límpidos de meu ser secarem / minh'alma perderá sua força. Buscarei, então, pastagens distantes / lá onde o ódio não tem teto para repousar. Ali erguerei uma tenda junto aos bosques. Todas as tardes, me deitarei na relva / e nos dias silenciosos farei minha oração. Meu eterno canto de amor: / expressão pura de minha mais profunda angústia. Nos dias primaveris, colherei flores / para meu jardim da saudade. Assim, exterminarei a lembrança de um passado sombrio”.
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