terça-feira, 16 de agosto de 2011

A MEMÓRIA E O SONHO

Pe. Alfredo J. Gonçalves, CS

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Uma simbiose entre memória e sonho constitui a dupla face de como a tradição judaico-cristã concebe o tempo. A conquista da terra prometida se contrapõe à lembrança do paraíso perdido. O Povo de Israel se move entre a amarga nostalgia deste e a jubilosa esperança daquela. A passagem do Mar Vermelho deixa para trás a opressão do Faraó. A vinda do Messias haverá de redimir toda culpa, a salvação escatológica apagará o pecado original, a utopia do Reino substituirá o vale de lágrimas. Da mesma forma que Jesus renova o velho Adão, Maria resgata a velha Eva. A ressurreição vence a cruz e a vida e se sobrepõe à morte. Nas palavras do apóstolo Paulo, “onde o pecado foi grande, maior haverá de ser a graça” (Rm 5,20).

Segundo a Carta aos Hebreus e a Carta de São Paulo aos Romanos, Abrão é considerado o pai da fé porque foi capaz de deixar a sua terra natal e pôr-se em marcha, confiante na promessa de uma descendência numerosa e de uma nova pátria. O conceito bíblico-teológico de aliança denota essa aposta do grande patriarca, e de seus sucessores Isaac e Jacob na confiança em Deus. No chamado credo histórico (Dt 26,5-10), a chegada à “terra onde corre leite e mel” pressupõe a penosa travessia do deserto; a êxodo e a libertação formam ambos a contraface da escravidão no Egito. Na espiritualidade dos salmos, a expressão “casa de Deus”, enquanto abrigo sólido, rochedo e fortaleza, é uma poesia invertida da tenda de um povo acostumado ao caminho. Os salmos são poesias e estas costumam representar sonhos que transfiguram as carências da travessia num refúgio final e definitivo. Se, por um lado, o exílio na Babilônia mutila o riso, o canto e a cultura, simbolizados pela harpa emudecida e pendurada nos salgueiros (Sl 137), por outro lado, no retorno à pátria, “os que semeiam em lágrimas ceifam em meio a canções (Sl 126). Ao final, a multidão dos 144 mil salvos, que “lavaram e alvejaram suas roupas no sangue do Cordeiro”, são os que passaram pela “grande tribulação” (Ap 7,1-17).

Em todos esses casos, o esquema se repete em forma de sequência linear: paraíso, queda, culpa, expulsão e promessa de retorno. Êxodo, exílio, diáspora, deportação e dispersão são companheiros do cotidiano de um povo sem pátria. De um ponto a outro, o deserto da travessia, onde a sede e a fome ressecam as forças dos caminhantes. Os pés feridos e os olhos cansados oscilam entre a saudade das “cebolas do Egito” e uma reiterada renovação da esperança em chegar à nova pátria. Mas o deserto só poderá ser fértil mediante uma constante conversão e fidelidade à aliança. Passado, presente e futuro interagem e se interpelam reciprocamente, enquanto vai crescendo a confiança de que o próprio Deus caminha à frente de seu povo.

Conforme tal concepção do tempo, a trajetória da humanidade oscila numa tríplice dimensão temporal: a) projeta-se para trás, bebendo na recordação da obra criadora e na libertação do Egito como experiência fundante e, ao mesmo tempo, amargando o remorso do rompimento e da quebra da aliança, com suas conseqüências negativas; b) faz do momento atual uma oportunidade viva e privilegiada para o arrependimento e a expiação; c) e se projeta igualmente para diante, na certeza final da misericórdia salvífica. É o que constata e problematiza Umberto Galimberti, em seu livro Il tramonto del’Ocidente. Embutida nesse esquema está a idéia moderna de progresso, o qual supõe melhorias constantes. Segunda ela, uma geração deverá ser superior à geração que lhe precedeu. De grau a degrau, a humanidade estaria numa escada em ascensão. Sem dúvida que A origem das espécies, de Darwin, com a noção de seleção natural, contribui para esse conceito de permanente avanço.

O movimento profético do Antigo Testamento é ainda mais explícito quanto ao pêndulo entre a memória do paraíso e a certeza da promessa, esquema histórico em que oscila a trajetória do Povo de Israel. Três expressões fartamente repetidas atestam isso: o lembra-te, a denúncia e o anúncio. O “lembra-te” remete ao passado e à escravidão no Egito, alertando para não repetir semelhante prática e “distorcer o direito do estrangeiro, do órfão e da viúva” (Dt 24,17-18). Implícita ou explicitamente, ele contextualiza a mensagem dos profetas, no sentido de atualizar para os tempos da monarquia e do exílio a experiência fundante do Deus Libertador. Ou seja, se vocês passaram pela dura experiência da exploração por parte de uma nação estrangeira, como podem agora explorar os mais frágeis entre vós?

Quanto à denúncia, faz um retrato do presente. Bastaria um rápido olhar às principais figuras do profetismo israelita para dar-se conta de sua “santa indignação” frente às injustiças e desigualdades sociais. Tanto o “Dia da ira de Javé” quanto as ameaças das potências vizinhas são interpretadas como resposta de Deus à infidelidade do povo, conforme a significativa metáfora do casamento de Oséias. Mas uma pausa no capítulo três de Miquéias é suficiente para constatar a veemência das palavras e a imagem do dedo em riste: “Escutem bem chefes de Judá, governantes da casa de Israel! Por acaso não é obrigação de vocês conhecerem o direito? Inimigos do bem e amantes do mal, vocês esfolam o povo e descarnam os seus ossos; vocês são gente que devora a carne do meu povo e o esfola; quebra seus ossos e os faz em pedaços, como um cozido num caldeirão (Mq 3,1-3).

O anúncio, por sua vez, aponta para o futuro. Aparece como tema de fundo de numerosos poemas que contrastam com a situação de opressão e abandono do povo. Eles encontram-se espalhados pelas páginas de numerosos profetas. Tomemos apenas dois exemplos. O primeiro, do Livro de Isaías, ressalta a criação de “um novo céu e uma nova terra”, onde, “não haverá mais crianças que vivam alguns dias apenas, nem velhos que não cheguem a contemplar seus dias (...). Construirão casas e nelas habitarão, plantarão vinhas e comerão seus frutos. Ninguém construirá para outro morar, ninguém plantará para outro comer, porque a vida do meu povo será longa como a vida das árvores, meus escolhidos poderão gastar o que suas mãos fabricaram” (Is 65, 17-25). O outro exemplo encontra-se no capítulo 37 de Ezequiel, em que um monte de ossos, simbolizando a destruição e morte de Israel, revive e põe em marcha pelo sopro da palavra divina transmitida pela boca do profeta.

É verdade que o passado não muda. Ou melhor, não mudam os fatos sociais. Não há borracha capaz de apagá-los. Permanecem como fósseis cristalizados da história. Mas muda o significado dos acontecimentos. De fato, estes podem ser constantemente reinterpretados, mediante uma concepção histórica do tempo. De acordo com o professor Hermilo Preto, já falecido, fato e significado estão em esferas distintas. Enquanto os fatos são lidos em chave sociológica, seu significado pode revestir-se de uma roupagem de fé. Neste sentido, um encontro profundo no presente, um amor apaixonado, pela sua força e novidade, produz e emite luz própria. Luz cujos reflexos que podem retroagir e conferir novo sentido a meros acidentes do passado. É assim que, o encontro dos pecadores com Jesus, por exemplo, resgata nas pessoas o que elas possuem de mais profundo e sagrado: vontade de amar e ser amadas. O olhar de Jesus penetra no sacrário oculto do ser humano: não para expor em praça pública suas misérias e fraquezas, mas para curar. A exemplo do bisturi do cirurgião, rasga o tumor pra extirpá-lo e devolver a saúde ao paciente/pecador.

Por mais maldito que tenha sido a trajetória de uma pessoa, sempre é tempo de recomeçar. Ninguém está definitivamente salvo nem definitivamente perdido. Toda a história do Povo de Israel é interpretada e reinterpretada à luz de experiências profundas de Deus. É assim que a ressurreição de Jesus joga luz nova sobre sua vida e obras, suas palavras e gestos. Ilumina de forma especial o mistério ou a “loucura da cruz”. Um exemplo banal pode ilustrar melhor: imaginemos que dois homens sofrem um acidente automobilístico. Ambos vão parar n hospital. Um deles acaba por se apaixonar pela enfermeira de plantão, com o outro nada acontece de especial. Enquanto na memória futura do segundo, o acidente terá sido apenas uma fatalidade e um transtorno, para o segundo, ele se converterá numa benção. O amor e o encontro são luzes que podem ressegnificar as sombras do passado. Iluminá-las, diz-nos a psicologia, é exorcizar seus fantasmas.

Da mesma forma que os povos vizinhos, também a saga de Israel é transmitida de geração em geração através de um conjunto de mitos. Mas, diferentemente deles e da concepção do eterno retorno, os hebreus e depois os cristãos legaram ao mundo ocidental como herança o conceito de história em sequência linear e progressiva. A compreensão do passado é fator predominante para entender o presente e o futuro. Poder-se-ia dizer que Gênesis e Apocalipse se reencontram e se fundem, se cruzam e recruzam praticamente em cada livro bíblico, tanto do antigo como do novo testamento. Encontram-se e também se entrelaçam nas linhas e entrelinhas da visão histórica do renascimento e do iluminismo, como mostra, por exemplo, a filosofia de Maquiavel e J.G. Herder, F. Hegel e K. Marx, G. Vico e W. Dilthey.

Marc Augé, o antropólogo/etnólogo francês, com tempero fortemente filosófico, tem toda razão quando, em seu novo livro Où est passé l’avenir? sublinha a tentativa do poder para negar a história no contexto da modernidade ou pós-modernidade. O predomínio do presente constitui o objetivo implícito ou explícito de todo império. A memória e o sonho são subversivos, o passado e o futuro podem trazer, respectivamente, o espectro do dos mortos ou a inovação dos insatisfeitos. Em ambos os casos, a ordem se vê ameaçada. Daí a manutenção a todo custo do status quo. A tirania instala seu próprio tempo histórico, por uma parte, reduzindo a cinzas os monumentos dos ancestrais e apagando-lhes as pegadas, por outra, cerrando as portas a toda possibilidade de alternativa.

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