quarta-feira, 24 de agosto de 2011

OS MIGRANTES E A IGREJA DO CAMINHO

Pe. Alfredo J. Gonçalves, CS

Em recente artigo veiculado pela Internet – Aos desolados pela Igreja – Leonardo Boff confrontava as instituições atuais da Igreja Católica com o início do cristianismo, a chamada religião do Caminho. Trazia à tona, na verdade, um tema já abordado por ele no livro Igreja, Carisma e poder, que lhe rendeu alguns dissabores com o então Cardeal Ratzinger, hoje Papa Bento XVI. Vale aproveitar o embalo para tecer algumas considerações sobre o binômio templo/caminho como uma tensão histórica que se configura com a imagem de um pêndulo entre um extremo e outro, com as devidas graduações intermediárias. Não será difícil dar-se conta da importância que tem a Pastoral dos Migrantes para o fortalecimento da “fé a caminho”.

O Caminho
De fato, antes de ser Igreja (ou Igrejas no plural) o movimento de Jesus era caminho. Prova-o, primeiramente, os relatos ligados ao nascimento e à infância de Jesus, especialmente no Evangelho de Lucas. Desde o ventre materno, deve deixar sua terra, aventurar-se até Belém “onde não havia lugar para eles” (Lc 2,7). Logo seus pais são forçados a escapar da fúria assassina de Herodes, refugiando-se no Egito e de lá retornando. Históricos ou não, tais relatos revelam que o mistério da encarnação ocorre num contexto acidentado, como o foi o êxodo do Egito e a travessia do Povo de Israel pelo deserto, entes de chegar à Terra Prometida.

Prova-o, em seguida, o próprio itinerário do Jesus histórico que, no dizer do evangelista, “percorria todas as aldeias e cidades (...) e, ao encontrar as multidões cansadas e abatidas, tinha compaixão, porque eram como ovelhas sem pastor” (Mt 9,35-38). Os estudiosos do Novo Testamento são unânimes em classificar a ação de Jesus como de um profeta itinerante, que “passou pela vinda fazendo o bem”, não a partir do templo, mas a partir da periferia e daqueles que a habitavam: pobres, indefesos, doentes, discriminados, excluídos (At 10,38).

Prova-o, em terceiro lugar, o episódio do Pentecostes e seus desdobramentos, quando os discípulos de Jesus, hermeticamente fechados pelo medo, diante do fim trágico na cruz, foram sacudidos pelo vento forte, pelo barulho e pelo fogo do Espírito (At, capítulo 2). Tornam-se imediatamente apóstolos missionários incansáveis, alargando cada vez mais o campo de irradiação da Boa Nova de Jesus Cristo. Proliferaram então as primeiras comunidades cristãs, cujos retratos apontam para uma nova forma de integrar fé e vida, religião e compromisso social (At 2, 42-47; At 4,32-37). Nos termos do Documento de Aparecida, o Pentecostes pode ser considerado como uma espécie de encruzilhada entre o “ser discípulo” e o “ser missionário”. O episódio dos discípulos de Emaús (Lc 24,13-35) ilustra bem isso: o caminho da ida, do fracasso, da impotência e da fuga, se converte no caminho da volta: entusiasmo que “arde o coração”. Através do encontro com o Ressuscitado, dois discípulos medrosos tornam-se dois missionários ardorosos.

Prova-o, por fim, as grandes viagens do apóstolo Paulo, o qual, tendo-se convertido ao cristianismo, põe-se a transitar pelas rotas do comércio antigo, fundando pequenos núcleos de cristãos nas cidades mais importantes da época: Corínto, Tessalônica, Galácia, Éfeso, Filipos, Antioquia, Roma. Não só os funda, mas passa a alimentá-los através de suas cartas e de suas visitas. Não é sem razão, aliás, que a conversão de Saulo de Tarso em Paulo tenha ocorrido a caminho de Damasco (At, capítulo 9). Numa palavra, diferentemente dos outros povos e culturas, a tradição judaico cristã, para além do templo, desenvolve uma espiritualidade inextricavelmente vinculada ao êxodo, exílio e deserto, como também ao caminho e à travessia.

O templo
O caminho se contrapõe ao templo de Jerusalém, ponto de referência para um tríplice poder: religioso, político e econômico. Por ali passavam os impostos, as decisões do Sinédrio e os sacrifícios litúrgicos. Já no Antigo Testamento, o templo de Salomão substitui a tenda da arca. A provisoriedade da travessia dá lugar à magnificência da fortaleza. O Deus poderoso e onipotente do templo, símbolo da ordem estabelecida, toma o lugar da espiritualidade do Deus a caminho, que “viu a miséria, ouviu o clamor, conhece o sofrimento e desce para libertar”, conforme o chamado “credo histórico” de Israel (Ex 3,7-10; Dt 26,5-10). Alguns profetas, Miquéias entre eles (capítulo 3), se insurgem veementemente contra os sacerdotes do templo. Profecia e sacerdócio régio professavam, de um lado e de outro, um antagonismo irreconciliável. Nos séculos que antecederam e se seguiram à vida de Jesus, o templo representava o coração socioeconômico e político do país, tendo sido destruído pelas forças do Império Romano no ano 70 d.C. Jesus inverte o movimento do pêndulo, deslocando-se do templo para o caminho, ou para os caminhos.

Historicamente, enquanto o templo simbolizava a manutenção do status quo, os profetas procuram atualizar a mística do êxodo para os tempos da monarquia, do exílio e com João Batista e Jesus, para o domínio do Império Romano. Eles questionam o deus estabelecido e rodeado de ouro, trazendo à memória do povo a lembrança de Ihaweh, o Deus que caminha conosco na história. A experiência amarga do exílio já havia contribuído para deslocar o foco da espiritualidade: do templo, da riqueza e do poder para a sabedoria e a relativização dos bens materiais. Deus não está no templo, agora em ruínas, mas em toda parte: no coração de cada ser humano e de cada cultura, na beleza da criação e na arte de saber viver. Êxodo, deserto e exílio depuram a fé, colocando-a sempre a caminho.

A volta do exílio e a reconstrução do templo, entretanto, recria a idéia do Deus forte e poderoso, utilizando a memória de Abraão, Isaac e Jacob, ancestrais do Povo de Israel, mas nem sempre levando em conta seu nomadismo primordial. Desenvolve-se uma ideologia fortemente nacionalista e exclusivista, atrelada a um estrito legalismo, onde o templo centraliza o culto e a moral. Contra isso Jesus se insurge veementemente, de modo especial na fórmula de que “o sábado foi feito para o homem, e não o homem para o sábado” (Mc 2,27). Se é verdade que as primeiras comunidades cristãs seguem a trilha inaugurada por Jesus, vários setores do judaísmo permanecem ancorados no Deus do templo, mesmo após a destruição deste.

Mas também para os cristãos, passados os primeiros séculos de nossa era, as coisas mudam após conversão do imperador Constantino, no século IV. O cristianismo é elevado à categoria de religião de Estado, do Império. A espiritualidade do caminho começa um processo, lento mas progressivo, de franca sedimentação. Entre trono e altar se inicia, reciprocamente, uma longa aproximação, que mais tarde terminará em namoro e casamento. Se a idéia do imperador era cimentar e salvar com um novo espírito religioso o poderio romano, este rui e se desintegra no decorrer do século seguinte. Daí para frente, e durante todo o período medieval, irá prevalecer o conceito de Deus do templo, em detrimento do cristianismo do caminho.

O poder central do império se esfacela, mas nascem os poderes locais, ao redor dos senhores feudais. Destronada pouco a pouco a espiritualidade itinerante, instala-se no interior do feudalismo, e a este fortemente vinculada, a hierarquia eclesiástica, simultaneamente reforço e reflexo do próprio sistema feudal. Daí às fogueiras para execução de feiticeiras e hereges, à condenação de sábios e cientistas, às campanhas militares das cruzadas e ao batismo forçado dos indígenas coloniais, o caminho era muito curto. Trono e altar, cruz e espada, padre e soldado constituíam duas faces da moeda. De fato, se “extra eclesia nula salus = fora da Igreja não há salvação”, todo combate ao demônio torna-se legítimo. O resultado não poderia ser outro, senão o fundamentalismo teocrático, cego, intolerante e fanático, acompanhado das várias faces da “guerra santa”.

Entretanto, mesmo no interior dessa noite escura, na base das fortalezas e castelos, palácios e catedrais medievais, nunca a chama do Evangelho se deixou apagar por completo. Sob as cinzas a brasa se mantinha viva. Santa Tereza D’Ávila, São João da Cruz, São Domingos, Santo Inácio de Loyola, São Francisco de Assis, Bartolomeu de Las Casas – entre tantos outros testemunhos – são exemplos vivos da persistência da semente lançada por Jesus Cristo. Muitos santos e santas eram como que estrelas, que brilhavam tanto mais fortes, quanto mais intensa a escuridão. Todos, de uma ou outra forma, tratavam de resgatar a espiritualidade do caminho. A Ordem dos Frades Menores, junto com outras Ordens mendicantes, não nascem à toa. Mergulham suas raízes nos primórdios do cristianismo primitivo, com seus ideais fundamentados na Boa Nova do Evangelho.

Novamente aqui, recrudescem a tensão e os conflitos entre o deus estabelecido e a mística do Deus a caminho. O pêndulo segue oscilando. Na segunda metade do século XIX, em plena “sede de inovações e agitação febril” da Revolução Industrial, surgem os “santos sociais”, fundadores e fundadoras de Congregações marcadamente apostólicas. Surge igualmente o documento inaugural da Doutrina Social da Igreja, a Rerum Novarum, publicada pelo Papa Leão XIII em 1891, e dedicada à “questão social”. Isso no pano de fundo da “onda vermelha” que multiplicava células comunistas por todo continente europeu. Talvez esteja aí o terreno fértil do contexto histórico onde proliferam os precursores do Concílio Ecumênico Vaticano II, sendo este uma nova encruzilhada na história da Igreja Católica.

De volta ao caminho
Abrindo as janelas de uma Igreja com cheiro de mofo aos novos ares e aos desafios do mundo moderno, como insistia o Papa João XXIII, o Concílio Vaticano II representou um impulso inquestionável para um retorno ao caminho. Caminho aqui como metáfora das “alegrias e esperanças, tristezas e angústias dos homens de hoje, especialmente dos que mais sofrem, que são também as alegrias e esperanças, tristezas e angústias dos discípulos de Jesus Cristo” (Gaudium et Spes, nº 1). Nesse mundo “em rápidas e profundas mudanças” (GS, nº 4), engendra-se uma nova eclesiologia, onde a idéia de Povo de Deus substitui o conceito de Igreja hierárquica. Toda a Igreja passa a ser missionária e cada batizado realiza, nela ou fora dela, seu “sacerdócio profético e real”, a um tempo eclesial e ministerial, como serviço ao mundo e à Igreja. O compromisso sóciopolítico diante dos contrastes contemporâneos pressupõe essa nova eclesiologia, não mais nos moldes piramidais da Idade Média, e sim numa visão circular, com o Cristo ao centro, onde as tarefas são distintas mas igualmente reconhecidas, nem melhores ou piores, nem mais importantes ou menos importantes, apenas diferentes (Lumen Gentium).

A Vida Religiosa Consagrada (VRC), juntamente com as Pastorais Sociais, com as Comunidades Eclesiais de Base (CEBs), com a Teologia da Libertação (TdL) e com numerosos entidades, movimentos sociais e organizações não governamentais (ONGs), partilham hoje uma tarefa comum: beber das fontes evangélicas e do carisma correspondente, para retornar ao caminho. Visitar o berço, não para permanecer ali de forma saudosista, mas para avançar em direção à fronteira. Não se trata de construir museus com o fim de contemplar os feitos passados. Os museus podem ser muito úteis, desde que se purifiquem de um narcisismo doentio e ineficaz, para voltar-se aos novos desafios que a história apresenta. Também não se trata de imitar pura e simplesmente os fundadores. Seguir não é imitar, e sim recriar. Imitar é uma forma de trair o espírito e a intuição do carisma, pois a história se transforma e levanta problemas sempre novos. Refaz-se, desse modo, a grande tensão história entre tenda e templo, entre espiritualidade do caminho e culto ao deus estabelecido, entre carisma e instituição (na concepção de Max Weber). Nos tempos atuais, porém, o pêndulo parece tender mais para o lado do poder, da pompa, da grande solenidade, do aparato exterior, da visibilidade de uma Igreja triunfante, do liturgismo, dogmatismo e doutrina... Enfim, de um novo estilo de cristandade.

Convém introduzir um parágrafo sobre a Pastoral dos Migrantes, enquanto presença viva e ativa junto ao universo na mobilidade humana. O Documento de Aparecida, a exemplo de Puebla e Santo Domingo, dedica um subitem “aos rostos sofredores que doem em nós”, privilegiando, entre outros, os migrantes. Estes, com efeito, podem converter-se em protagonistas de um novo tempo. Profetas que, simultaneamente, denunciam estruturas que negam a pátria a milhões de pessoas e anunciam a necessidade de novas relações nacionais e internacionais, na busca de uma nova cidadania. São, não raro, sangue novo nas veias de organismos decrépitos, oxigênio primaveril em sociedade que se encaminham para o outono, abelhas vivas que conduzem o pólen de valores novos para fecundar as flores de outra cultura. Se no coração de cada ser humano e no coração de cada cultura existem sementes do Verbo, o ato de migrar é portador de tais sementes. Conclui-se que “os migrantes que partem de nossas comunidades podem oferecer valiosa contribuição missionária às comunidades que os acolhem” (Doc. Ap., nº 415).

Deste modo, a tarefa hoje se torna mais desafiadora e urgente. Voltar ao caminho é voltar aos porões da sociedade, aos becos e ruas mais obscuras, aos grotões abandonados do campo, aos presídios e prostíbulos, aos assentamentos e acampamentos, às “bocas” de fumo e de crack, aos lixões e periferias... É voltar ao submundo dos pobres e indefesos, órfãos e perdidos, marginalizados e excluídos. Somente uma presença gratuita e silenciosa junto a esses “prediletos do Pai” pode resgatar a espiritualidade do caminho, ou a mística de quem caminha. De fato, quem muito caminha aprende a depurar a mala e a alma, a focalizar o olhar e os passos naquilo que é essencial e a relativizar o que é supérfluo. Em outras palavras, aprende a cultivar tesouros que a traça não corrói nem os ladrões roubam (Mt 6,19-21).

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