terça-feira, 30 de março de 2010

Maldita “oração da propina”

José Lisboa Moreira de Oliveira*

Todos aqueles e aquelas que estão acompanhando os escândalos de corrupção capitaneados por alguns políticos aqui do Distrito Federal devem ter visto pelo me-nos uma vez na televisão a cena da “oração da propina”. Alguns desses políticos, após terem repartido entre si a dinheirama roubada dos cofres públicos, após terem enfiado esse dinheiro nas cuecas, nas meias, nos bolsos e nas bolsas, juntaram-se para fazer uma oração de agradecimento pelo roubo que acabavam de realizar. Esse epi-sódio passou a ser chamado pela mídia de “oração da propina”, uma vez que o di-nheiro roubado provinha de propinas pagas por empresas beneficiadas por proces-sos de licitações fraudulentos.

Ora, essa maldita “oração da propina” revela uma das mais terríveis contradi-ções das religiões e, principalmente, do cristianismo. De fato, não são poucas as pes-soas que usam da religião e da oração para tirar vantagens pessoais, esconder atos desonestos e fraudar o próximo, particularmente os mais simples e mais pobres. Mesmo nos nossos dias, quando boa parte das pessoas já adquiriu mais consciência crítica, ainda é comum encontrarmos casos em que espertos e ladrões se aproveitam da boa fé das pessoas para ludibriá-las e roubá-las.

Aliás, diga-se de passagem, num mundo em que pelo menos 80% da popula-ção pratica algum tipo de religião, num país como o Brasil em que quase 93% das pessoas declaram-se adeptas de uma religião, a religiosidade tornou-se fonte de lucro para muitos malandros e exploradores. Não só as lideranças religiosas apelam para a religião com a finalidade de explorar seus fiéis e se enriquecerem. Também o comér-cio, a indústria, a propaganda, a ideologia neoliberal fazem da exploração do elemen-to religioso a “alma do negócio”.

Podemos citar alguns exemplos. Nas cédulas do dólar, moeda símbolo do neo-liberalismo e do espírito dominador dos Estados Unidos sobre o mundo, está escrita a seguinte frase; “We trust in God” (Nós confiamos em Deus). Verdadeira blasfêmia! Podemos falar de programas religiosos, veiculados na mídia, inclusive católica, feitos para extorquir as pessoas, principalmente as mais ingênuas, a fim de obterem dinhei-ro para sustentar as mordomias dos donos das emissoras e os programas de “lava-gem cerebral” montados com o deliberado propósito de enganar os simples, tirando-lhes cada vez mais a consciência crítica. Um pecado que brada aos céus!

Além disso, com frequência, vemos imagens de santos, frases bíblicas, crucifi-xos e outros símbolos religiosos em empresas, casas e carros comerciais e até em bo-tequins, conhecidos pela notória exploração dos clientes e pelas constantes fraudes e propagandas enganosas. Sem falar naquelas pessoas que costumam aparentar uma excessiva e melosa religiosidade, que, na verdade, não passa de uma fachada para enganar os outros e desviar a atenção da verdadeira identidade que está por trás da máscara religiosa (cf. Lc 20,45-47). Os recentes escândalos de padres pedófilos têm revelado essa verdade. A quase totalidade deles era extremamente conservadora, excessivamente religiosa, sujeitos amantes da batina e do clergyman, piedosos devo-tos de Nossa Senhora, extremados adoradores da Eucaristia, milagreiros, curadores, veneradores do Santo Padre e assim por diante. Tudo para disfarçar a real personali-dade criminosa de gente que abusava de inocentes, de crianças indefesas.

Portanto, a “oração da propina” feita por alguns políticos larápios do Distrito Federal revela o quanto a religiosidade continua sendo manipulada por muita gente, sem o menor escrúpulo, para encobrir roubos, fraudes e atos de safadeza. Mostra a ambigüidade da experiência religiosa e o sério risco de que a religião seja manipula-da para acobertar interesses egoístas e escusos. Demonstra a urgente necessidade de discernimento e de consciência crítica para desmascarar toda falsa religiosidade que, usando o nome de Deus em vão, busca explorar de forma abusiva a boa fé das pesso-as. Deixa evidente a obrigação que se nos impõe no sentido de arrancar toda máscara religiosa utilizada como disfarce para enganar os mais simples (cf. Mt 18,6-7). Leva-nos ao compromisso ético de recusarmos qualquer forma de participação em ativi-dades religiosas que servem apenas para “devorar os bens da viúvas” (Lc 20,47), ou seja, para roubar o que pertence aos pobres de nossas comunidades.

Infelizmente, por trás disso pode estar um grande aparato ideológico e grupos que não querem a formação da consciência crítica do povo, financiando a expansão de certas expressões religiosas que contribuem para a alienação. De fato, o método usado por determinados movimentos religiosos, leva as pessoas à suspensão total da atitude racional e dá muita ênfase ao espetacular, ao jogo emocional, ao transe, às “possessões diabólicas”, favorecendo a passividade diante da manipulação praticada por grupos politicamente e socialmente dominantes e diante das injustiças do siste-ma sócio-político-religioso, os quais, segundo o evangelista Marcos, são uma verda-deira “legião de demônios” (Mc 5,9). Neste método a instrumentalização da lingua-gem e dos símbolos é muito forte especialmente quando usados na mídia, visando o ganho de novos adeptos. O que podia ser sinal de libertação e de vida para as pesso-as pode se tornar mero instrumento de escravidão. Neste sentido se entendem muitas das críticas feitas à religião, como, por exemplo, aquelas de Feuerbach e de Marx.

Dentro desse contexto cresce a “religião de clientela” que recorre a forças so-brenaturais para tentar explicar fenômenos e situações que não precisam de explica-ções do além para ser entendidas. Desse modo a religião passa a ser uma resposta localizada para problemas localizados, perdendo a sua capacidade de ser interlocuto-ra da sociedade. No atual contexto brasileiro a maioria das expressões religiosas, in-clusive a católica, parece cair na tentação de concorrer com as outras. É a tentação da funcionalização da religião: tornar-se, simplesmente, uma prestadora de serviços reli-giosos à sociedade, esvaziando, assim, a sua dimensão de instância interpeladora. Isso aparece com muita força na chamada “teologia da prosperidade”, através da qual as religiões vão prestando serviços de acordo com as necessidades dos fiéis. São muitas as pessoas que hoje buscam esses serviços e têm encontrado um retorno satis-fatório.

O risco, portanto, é de que as religiões, para serem modernas, terminem por “vender-se” como mercadoria agradável, light, sob a alegação de que “o povo quer”. E ao tornarem-se apenas prestadoras de serviços religiosos as religiões fogem do compromisso ético, transformando-se numa espécie de suporte, de justificativa para atitudes narcisistas e para a subjetividade fechada, além de fazerem o jogo do grupo dominante que mantém 2/3 da população mundial numa situação de pobreza e 1/3 dela na mais absoluta miséria. Pode acontecer então o que Wolff chama de “religião sem o humano”, ou seja, a substituição das reais necessidades das pessoas por bens apenas aparentes e enganadores. Esta forma de religiosidade interessa aos sistemas injustos porque não oferece a possibilidade de um confronto entre as exigências éti-cas e as práticas econômicas, sociais e políticas que ameaçam a vida. Desse modo a religião contribui para que não haja responsabilidade social, reforçando e alimentan-do a exclusão social e não incentivando a solidariedade. A religião que opta por esse caminho realça excessivamente a dimensão do divino, mas, como diz Wolff, termina “dando as costas para o humano”.

Estou convencido de que, no momento, a maioria das experiências religiosas tendem a se perder facilmente no irracionalismo e na fuga da realidade. Os exemplos estão aí bem visíveis aos nossos olhos. Por essa razão, no meu entender, é indispen-sável uma crítica às religiões, a fim de ajudá-las a contribuir para que no mundo não prevaleça nem um secularismo ateu e nem um fundamentalismo alienado, mas sim uma religião que consiga comunicar às pessoas esperança, sentido para a vida, pa-drões éticos e uma firmeza para a luta e a caminhada. Permanece também o desafio de exigir das religiões verdadeira humildade, uma vez que em todas elas o problema da violência se manifesta e em todas elas a violência existe. Muitas vezes a violência é camuflada sob a aparência de obediência cega aos dogmas ou de fidelidade irracional às normas.

Não podemos esquecer, de forma alguma, que, no momento atual, precisamos de construtores de pontes capazes de transformar o potencial das religiões em ban-deiras de paz e em ações de solidariedade. Precisamos de uma religião que não sepa-re e nem divida; uma religião que una e reconcilie. Temos necessidade de uma religi-ão que ajude a ver o que é comum: sobretudo os valores éticos e as atitudes éticas; religiões que professem valores e padrões, mas que também tentem vivê-los. E gru-pos religiosos ou experiências religiosas que favorecem atitudes como a da “oração da propina”, que não denunciam estes atos religiosos imorais e desumanos, não me-recem continuar existindo. Precisamos lutar para que esses tipos de religiosidade desapareçam o quanto antes da face da terra.

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