Pe. Alfredo J. Gonçalves, CS
São bem conhecidas as histórias de Mércia Nakashima e Elisa Samúdio. Com amplo espaço nos telejornais e na imprensa falada e escrita, ambas exibem, e ao mesmo tempo escondem, o machismo dissimulado da sociedade brasileira. É bem verdade que se trata de episódios extremos de violência contra a mulher, mas não deixam de apresentar um retrato do que ocorre à sombra da inviolabilidade do lar e da vida amorosa ou conjugal. “Em briga de marido e mulher não se põe a colher”, diz um ditado popular nada apropriado para a consciência crescente da igualdade entre os sexos.
Somados à tragédia de Eloá e Lindenberg, vinculada pela mídia no final de 2008, o destino de Mércia e Elisa são exemplares de uma situação nada exemplar. Revelam a fragilidade e vulnerabilidade da namorada, noiva e esposa frente ao companheiro. Três casos, entre tantos outros, que mostram a mulher refém dos próprios sentimentos ou, pior ainda, dos sentimentos alheios. Fica claro que a situação de namoro, noivado ou casamento, ou até mesmo uma paquera eventual, põe a nu um relacionamento desigual. Enquanto o homem, a qualquer momento pode romper a relação, deixar a companheira e “partir para outra”, a mulher tem de pensar duas vezes antes de fazê-lo. Corre o risco de se tornar vítima do rancor, do ciúme ou da vingança que, em casos extremos, significam a morte. Aliás, como evidenciam inúmeras obras de literatura, amor e ódio moram no mesmo coração e na mesma casa.
Mas há outro aspecto que merece reflexão. A veiculação de semelhantes tragédias pelos meios de comunicação tem dupla face. Num primeiro momento, tende a transformar o caso em questão num grande espetáculo, uma espécie de show midiático. Mais do que uma informação sóbria e séria sobre os acontecimentos, o que se vê é um apelo ao emocionalismo do leitor ou telespectador. A forma sensacionalista de apresentar o desenrolar dos fatos, por um lado, e o processo de investigação policial, por outro, repetida com detalhes macabros e à exaustão, dirige-se mais aos sentimentos do que à razão, mais ao coração do que à cabeça.
A notícia já vem revestida de um juízo de valor apelativo e sedutor, impossibilitando uma visão crítica por parte do cidadão. Prevalece a divulgação imediata da manchete, não a análise de suas causas e conseqüências, e menos ainda a contextualização histórica e social da mesma. Impera a idéia do “furo de reportagem”, muitas vezes sem confirmação prévia e adequada das condições em que tudo aconteceu. Em semelhante ambiente, não poucos veículos de comunicação adquirem um matiz fortemente panfletário. Isso sem falar do exibicionismo desnecessário e vexatório, que costuma agredir e desnudar a dignidade tanto das vítimas quanto dos suspeitos.
Num segundo momento, a espetacularização de tragédias desse gênero tende a encobrir um cotidiano de agressividade menos sensacionalista, mas não menos violento. Na medida em que se explora situações extremas, recheadas de imagens e detalhes escabrosos, a tendência é deixar na sombra as relações conflituosas do dia-a-dia. Relações que se prolongam por anos e até décadas no interior da vida conjugal e familiar. São centenas, milhares, milhões de vítimas e de agressores silenciosos, protegidos pela privacidade da família. Vítimas constituídas especialmente de mulheres e crianças, quase sempre obrigadas a esconder das pessoas mais íntimas (e das autoridades policiais) seus hematomas e cicatrizes, para não ter a situação ainda mais agravada.
Além de ocultar a violência cotidiana, a espetacularização midiática de alguns casos pode legitimar um machismo que tem raízes profundas na sociedade patriarcal brasileira, para não falar de outros países. “Que coisa bárbara, esse cara é um monstro, aquilo que é violência!” – tende a dizer o espectador frente ao destino trágico de Eloá, Mércia, Elisa, Isabela Nardoni, entre outras. Cego pelos holofotes e câmaras da mídia espetacular, torna-se incapaz de interpretar como violência o sofrimento silencioso e silenciado, às vezes por anos a fio, da própria esposa, irmã, filha, sogra, avó, da vizinha... Surdo pela estridência sensacionalista com que a notícia é veiculada, torna-se incapaz de ouvir o gemido, o choro, ou até mesmo o grito que vem do interior de sua própria casa... Mudo frente à telinha, por onde seguem desfilando imagens e comentários chocantes, tornar-se incapaz de avaliar o peso de uma jornada dupla ou tripla sobre os ombros da companheira que se encontra a seu lado.
O espetáculo exibido no cenário de um palco profusamente iluminado esconde e silencia o que ocorre nos bastidores e nos porões da sociedade. Sabemos o nome e sobrenome dessas mártires assassinadas de forma brutal, em muitos casos com requintes de crueldade, mas ignoramos a existência daquelas que sofrem um martírio diário e prolongado. Martírio destilado gota a gota na “paz do lar”! Essas permanecerão para sempre no anonimato.
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