Pe. Alfredo J. Gonçalves, CS
Constatação
As catástrofes se multiplicam por todo o planeta. Algumas exibem uma carranca de tempestade avassaladora, tais como terremotos, furacões, tornados, tufões, inundações, tsunames que tudo varrem e devastam... Outras primam pela ausência de sinais borrascosos e por um silêncio que mais parece indiferenças dos céus: é o caso das secas ou estiagens prolongadas, da progressiva desertificação do solo, do desaparecimento de rios perenes, que se tornam temporários... Mas há também a agressão do ser humano, ou de seus modelos socioeconômicos e político-culturais, que avançam indiscriminadamente sobre as florestas, comprometem os biomas e causam o desequilíbrio dos ecossistemas... E ainda a contaminação crescente do ar, pela emissão de gás carbônico ou outras formas de poluentes, contribuindo para o aquecimento global, para o degelo dos pólos e das montanhas, para a elevação do nível dos oceanos e para a destruição da camada protetora de ozônio... Por fim, a poluição dos rios, lagos e mares, deixando as águas cada vez mais impróprias para o consumo e reduzindo cada vez mais a quantidade de água potável sobre a face da terra...
Resulta que nossa “morada terrestre”, de forma às vezes invisível, imperceptível, mas sempre implacável, reduz a possibilidade de gerar e preservar a vida. Enquanto, de um lado, muitos recursos naturais são irresponsavelmente utilizados e desperdiçados, de outro, a pobreza, a miséria e a fome ainda devoram cerca de um bilhão de seres humanos em todo mundo. Pior ainda se olharmos as coisas do lado da biodiversidade, isto é, da vida em suas diversas formas. Cresce a ameaça e o desaparecimento puro e simples de várias espécies da fauna e da flora. Nem precisa lembrar que cada forma de vida que desaparece, diminui a capacidade humana de sobrevivência sobre o planeta. Com frequência temos sentimentos carinhosos e ternos com o globo, chamando-o não raro de “mãe-terra”. Mas, primeiro nos países do ocidente e agora por toda parte, com o passar do tempo vamos impedindo que a Terra seja de fato a mãe da vida. A ação violenta e exploratória dos projetos humanos sobre ela e seus bens, engendra uma espiral de grave esterilidade.
Tanto que, hoje em dia, quando falamos de “catástrofes naturais” é quase obrigatório o uso das aspas. Até que ponto as convulsões do planeta, com suas tormentas, ventanias e ondas gigantes, são efetivamente fenômenos naturais? Os cientistas, os ambientalistas e uma série de organizações não governamentais e de movimentos sociais nos alertam que, em não poucos casos, tais catástrofes se originam na agressividade do “progresso técnico” sobre o sistema ecológico. O planeta reage violentamente ao ritmo e à velocidade, igualmente violentos, que sobre ele se abateu particularmente a partir dos séculos XVIII e XIX, com a consolidação da Revolução Industrial. Que o atestem a queima de combustíveis fósseis (carvão, gás e petróleo), a derrubada das matas nativas e a quantidade de dejetos que são jogados no solo e na água.
As regras do desenvolvimento são ditadas pelo mercado, com sua voracidade de lucro como motor dos avanços tecnológicos. A ciência trouxe evidentemente melhorias significativas nos transportes, nas comunicações, na medicina e no conforto pessoal e familiar. Mas, aliada à tecnologia de ponta, produziu gigantescas máquinas de matar. De fato, a indústria bélica constitui, em geral, a ponta de lança dos avanços de maior envergadura. Não é à toa que as tensões, os conflitos abertos e as guerras proliferam e se avolumam em capacidade destrutiva e em número de vítimas fatais. Depois de Primeira e Segunda Grandes Guerras Mundiais, um espectro ronda furiosamente nossas portas e janelas: a ameaça de destruição total. Os princípios éticos na prática política, bem como a subordinação da economia a políticas públicas, atualmente parecem uma verdadeira comédia. A fome de acumulação capitalista atropela todo tipo de moral e de prática bem intencionada.
Efeitos nocivos
Dos parágrafos anteriores, se deduz um quadro nada animador. A própria emergência do prefixo “bio” (=vida) nas últimas décadas atesta o fato. Por uma parte, esse prefixo grego se familiariza e populariza, passando das universidades e laboratórios para as ruas, as conversas diárias e para o interior das famílias. Sinal evidente de que a vida está ameaçada em toda a sua variedade. Quando o tema da vida ganha a pauta de grande parte dos encontros, seminários, reuniões, assembléias, romarias, cursos, etc. é sintoma que algo não vai bem com ela. Por outra parte, ao lado da ameaça progressiva, cresce a consciência de que é necessário fazer alguma coisa – e com urgência. O planeta está enfermo e, de acordo com a sabedoria popular, a saúde deve estar em primeiro lugar. Está em perigo o equilíbrio dos ecossistemas e a biodiversidade a eles vinculada. Uma bomba atômica silenciosa paira sobre seres humanos, animais e plantas.
A proliferação de doenças, algumas já extintas da face da terra, é outra conseqüência desse estado de coisas. Se o planeta está enfermo, tudo nele tende a se contaminar. O vírus da ganância, da produção e do consumo exacerbado desequilibrando uma convivência sadia com os recursos naturais, traz de volta epidemias já conhecidas e amplamente combatidas. Faz vítimas aos milhões, especialmente entre os países mais desprotegidos, como Somália, na África, Bangladesh, na Ásia, ou Haiti, na América. Aqui caberia um estudo técnico que pudesse nos alertar para a relação entre a deterioração do meio ambiente e o retorno de doenças mortíferas que estão atingido setores indefesos e abandonados da população global.
Não custa repetir os efeitos do derretimento das geleiras, do aquecimento global e da elevação dos oceanos – todos interligados. Neste ponto, o problema ecológico se cruza com a questão social. Com efeito, as primeiras pessoas vitimadas são aquelas que habitam os lugares mais vulneráveis a cheias, enchentes, inundações, etc. Não possuem condições econômicas para escapar à ameaça crescente. Enquanto os poderosos tomam conta dos lugares mais protegidos, sobra para os pobres os mangues, a beira dos rios e ribeirinhos... Mas não é só isso. Suas próprias moradias não resistem à fúria dos ventos e tempestades. Em casos de terremoto, tsuname, furacão, enchente... Quantos morrem sob os escombros e as ruínas de suas pobres casas ou barracos!
No cruzamento entre a devastação do meio ambiente, por um lado, e o fenômeno da mobilidade humana, por outro, novos rostos passam a desfilar pelas páginas dos jornais, pelas imagens da televisão e por todos os meios de comunicação: são os chamados migrantes climáticos. Ou também refugiados e “desplazados” climáticos. As cifras aqui são as mais desencontradas: entre o piso e o teto das estimativas, os números ultrapassam sempre as centenas de milhões. Neste caso, o círculo se completa: o sistema capitalista avança sobre a face da terra, queima combustível para gerar energia, explora desmedidamente recursos humanos e naturais; a natureza reage com estiagens ou tormentas totalmente imprevisíveis e irregulares, varrendo e devastando regiões inteiras; atingidos por tamanha fúria, os povos se põem em fuga.
Dito de outra forma: a busca de novas matérias primas e de novos mercados, isso é, o ritmo frenético e alucinado da produção/consumo, força a economia a uma globalização progressiva; esta, por sua vez, força os elementos da natureza a um ritmo antinatural, que ocasiona desequilíbrios cada vez mais acentuados nos ecossistemas e na rede entre eles; tais desequilíbrios se revelam em catástrofes anunciadas – e agora sem aspas; semelhantes catástrofes, por fim, semeiam o medo e a insegurança, levando pessoas, famílias e povos inteiros à migração forçada. As populações ameaçadas crescem em proporção direta da ação violenta do ser humano sobre a natureza, a qual se reverte sobre a própria humanidade, vitimando evidentemente os mais frágeis e vulneráveis.
Daí o vínculo cada vez mais estreito entre mudanças climáticas e migrações forçadas. Aliás, de forma geral, os deslocamentos humanos de massa, representam como que termômetro de grandes mudanças: ondas superficiais de correntes subterrâneas. Fenômeno visível de transformações sociais invisíveis. As revoluções históricas costumam ser precedidas, acompanhadas ou seguidas de grandes marchas populacionais. O mesmo critério aplica-se hoje às turbulências de ordem climática. Da mesma forma que a queda ou ascensão dos impérios, ou da mesma forma que a violência em todas as suas manifestações, costuma produzir grande quantidade de “desplazados”, os abalos sísmicos no planeta (e não somente os terremotos) também põem populações inteiras em marcha.
Tudo leva a crer que semelhante ligação entre as crescentes catástrofes (nada naturais!) e os deslocamentos humanos só tende a estreitar-se cada vez mais. Por uma parte, há milhões de seres humanos em fuga por motivos de violência, por razões socioeconômicas ou por perseguição política e até religiosa; por outra parte, o número dos que hão de migrar por causa de inundações, terremotos, furacões, tsunames, tornados, estiagens, e assim por diante, tende a engrossar o rio mundial e caudaloso da migração compulsória. Exemplos disso podem ser a Indonésia, as Filipinas, o Haiti e outras ilhas do Caribe, o Bangladesh, entre tantos outros países. Com ração, multiplicam-se os encontros nacionais, regionais e internacionais sobre o meio ambiente, ao lado da preocupação com as populações mais atingidas. Pena que alguns países, especialmente os mais responsáveis pelo quadro sombrio apresentado, como, por exemplo, os Estados Unidos, se revelem tão obstinados em prosseguir com o ritmo antiecológico de sua economia.
Um olhar bíblico
Três textos bíblicos podem jogar alguma luz sobre o tema do meio ambiente e migração. No primeiro caso, tomemos o Livro de Gênesis. Nele, o arco-íris constitui o sinal da aliança de Deus com seu povo. O surpreendente é que a aliança leva em conta não apenas os homens e mulheres, mas “todos os seres vivos” e “todas as gerações futuras”. Duas expressões que atestam, de um lado, uma espiritualidade plural, a qual respeita todas as formas de vida e, de outro, que se propõe preservar a vida para aqueles que ainda irão nascer. A biodiversidade e a preocupação com a vida sem fim encontram-se no coração dessa mística que tem como fundamento a experiência do êxodo. E o texto insiste: a aliança é estabelecida entre Deus e o povo, mas em nome de “todo ser vivo que se move na face da terra” (Gn 9, 12-17).
Está claro que a exploração desenfreada e comandada pelo lucro a qualquer preço encontra-se na contramão desses princípios bíblicos. O projeto de devastar, violar e extrair capital sobre capital da face do planeta contrasta frontal e radicalmente com a aliança que Deus estabelece com o Povo de Israel. A experiência de Deus, vivenciada por esse povo de caminhantes, leva em conta o cuidado e a preservação da vida em todas as suas formas.
Passemos ao segundo texto, da Carta de São Paulo aos Romanos. Nele, o apóstolo diz que “a criação foi submetida à vaidade”, mas insiste sobre “a esperança de que ela também será libertada da escravidão da corrupção para entrar na liberdade da glória dos filhos de Deus”. Que significa a criação submetida à vaidade e à corrupção? Que significa sua libertação? A civilização humana sobre o planeta Terra, especialmente nos países ocidentais (mas não só), fundamentada no egoísmo, na ganância, na prepotência e no acúmulo ilimitado de poder e riqueza gerou impérios sobre impérios. Vaidade e corrupção eram seus alicerces. Uns caem e, sobre suas ruínas, outros se levantam. Nesse afã, são explorados até o limite tanto os recursos naturais, quanto a força de trabalho humana e o patrimônio cultural. Como libertar-se desse círculo de ferro?
E aí reside a angústia de Paulo. Mas também sua fé em mudanças substanciais. Por isso afirma com otimismo: “sabemos que a criação inteira geme e sofre as dores do parto até o presente; e não somente ela; mas também nós que temos as primícias do Espírito, gememos interiormente, suspirando pela redenção do nosso corpo” (Rm 8,18-25). Corpo e criação se ligam de forma indissolúvel. A criação é uma extensão do corpo: enquanto neste o sangue corre e mantém a vida, naquela o ar, o oxigênio e a água constituem a garantia da sobrevivência para todas as espécies, humana, vegetal e animal. A criação, se e quando bem preservada, é a casa do corpo, ou melhor, de todos os corpos e da vida.
Por último, passemos ao Livro do Apocalipse. No texto, o autor diz textualmente: “vi então um novo céu e uma nova terra, pois o primeiro céu e a primeira terra se foram. Nisto ouvi uma voz forte que dizia: ‘eis a tenda de Deus com os homens. Ele habitará com eles; eles serão o seu povo, e ele, Deus-com-eles, será o seu Deus. Ele enxugará toda lágrima de seus olhos, pois nunca mais haverá morte, nem luto, nem clamor, e nem dor haverá mais. Sim, as coisas antigas se foram’” (Ap 21,1-4). Evidente que o texto não se refere ao meio ambiente ou à relação do ser humano com a preservação da ecologia e tampouco ao fenômeno das migrações.
Mas quando o autor afirma que “o primeiro céu e a primeira terra se foram”, ou que “as antigas coisas se foram”, tem como referência a lágrima, o luto, o clamor, a dor e a morte. Dominada e explorada pelos seres humanos, ao invés de ser por eles cuidada, a terra se tornou palco de sofrimento e destruição. A convivência pacífica entre as diversas espécies de vida deu lugar ao uso indiscriminado da biodiversidade. Fauna e flora servem à cobiça das nações e dos poderosos. Na base de tudo está o centralismo do ser humano – ou antropocentrismo – que privilegia o prazer do momento, sem se preocupar com o futuro. Desenvolveu um padrão de vida que não condiz com o ritmo lento e sábio da natureza. Para garantir o luxo e o desperdício, destrói e devasta cada vez mais. Daí a necessidade de “um novo céu e uma nova terra”.
Conclusão
Como as águas de um rio correm naturalmente para o mar e a fumaça se eleva naturalmente para o alto, os parágrafos anteriores reclamam naturalmente por um novo marco civilizatório. A exploração pura e simples dos recursos naturais deve ser substituída pelo uso parcimonioso, frugal e responsável; o crescimento cego e devastador, panacéia para todos os males, deve dar lugar a um desenvolvimento sustentável; a tecnologia de ponta deve estar a serviço de uma melhor distribuição dos benefícios do progresso e dos bens que a terra contém; relações justas e fraternas podem substituir o acúmulo crescente e indiscriminado; enfim, uma economia solidária se apresenta como única alternativa às leis férreas do mercado total.
Isso traz duas implicações de curto, médio e longo prazo. A primeira delas é que uma nova civilização ou uma nova cultura humana exige relações diferentes com o planeta e com a natureza. No mundo ocidental tem predominado uma relação fortemente masculinizada: penetrar, explorar, investigar, enriquecer, acumular, devastar especular... Talvez precisemos resgatar e cultivar o elemento feminino, tanto de homens quanto de mulheres. Trata-se do elemento que prima menos pela exploração dos objetos e mais pela coexistência e a preservação das coisas e da vida. Por estar mais próxima da geração e do cuidado com a vida, a mulher tem um papel fundamental nessa nova maneira de conviver com o planeta terra e seus recursos. Cultivar e cuidar da vida em todas as suas formas (biodiversidade) é o grande desafio de uma civilização geocêntrica.
A segunda implicação nos remete novamente à questão das migrações. Uma civilização centrada no cuidado com a natureza e com as diversas formas de vida diminui consideravelmente suas reações violentas. Diz com razão o ditado popular que “Deus perdoa, mas a natureza não”. Tal como a agressão a ela, sua vingança é devastadora. Varre da face da terra e desaloja milhões de pessoas. É verdade que a destruição do meio ambiente já está em um estado bem avançado, de acordo com os estudiosos. Não é do dia para a noite que vamos reverter o quadro das catástrofes em curso.
Mas algo tem que ser feito é com a máxima urgência. Aqui cabem ações de todo tipo: desde acordos internacionais, multi ou bilaterais, até políticas públicas para a preservação do meio ambiente, passando por atitudes individuais de maior frugalidade e uso correto dos bens à disposição de todos. Convém não esquecer, a esse respeito, as várias iniciativas de reciclagem que já se desenvolvem. Por si só, elas nos mostram que as temáticas relacionadas ao meio ambiente, envolvem simultânea e necessariamente o campo e a cidade. O que se busca, no fundo, são relações justas e solidárias, sem em nível pessoal, familiar e comunitário, seja em termos nacionais, regionais e internacionais.
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