quinta-feira, 11 de novembro de 2010

O FORASTEIRO

Pe. Alfredo J. Gonçalves, CS



Três Metáforas

Na metáfora do futebol, o sucesso do juiz é sua invisibilidade durante o jogo. Quanto menos ele parece em campo, mais eficaz sua forma de arbitragem. Um juiz que chama a atenção sobre si mesmo, provocando entraves desnecessários, desvia o foco do espetáculo. A partida acaba se tornando truncada, na medida em que o árbitro faz tudo para “mostrar serviço”. A arte do futebol exige uma fluidez natural das jogadas, onde o juiz, sem permitir a violência e a parcialidade, deve agir da forma mais discreta possível. Ele não pode ocupar muito espaço na arena da disputa. O bom juiz é aquele que, ao final do confronto, praticamente atrai comentários.

O mesmo poder-se-ia dizer do jornalista. Ele não é a notícia, mas seu veículo. Sua tarefa é divulgar os fatos, ou até comentá-los, jamais produzi-los. Um repórter trapalhão ou excessivamente centralizado no cenário dos acontecimentos, acaba chamando a atenção sobre si mesmo. Numa entrevista, por exemplo, costuma fazer perguntas complicadas e às vezes maiores que as possíveis respostas. Pior ainda quando resolve interromper a pessoa entrevistada, sem que esta complemente o pensamento ou sequer a frase. O palco da história não pertence aos profissionais da comunicação. O papel destes é transmitir as novidades, não criá-las. Dois riscos são muito comuns no jornalismo e em não poucos periodistas: por um lado, o sensacionalismo que amplifica e distorce desnecessariamente os fatos, de outro a espetacularização dos mesmos deixando na sombra o cotidiano, às vezes tão ou mais pertinente que a notícia veiculada.

Outro profissional que podemos tomar como exemplo é o apresentador de programas televisivos. Muitos deles se colocam no centro da programação, chamando a si a atenção do público, esteja este na platéia ou em casa. O mau apresentador concentra a atenção dos microfones, dos holofotes e das câmeras sobre sua própria imagem. Ocupa a tela na maior parte do tempo. Os artistas, calouros ou celebridades, chamadas ao programa para enriquecê-lo, acabam permanecendo na penumbra. Mais grave ainda quando o profissional põe-se a debochar e a ridicularizar os iniciantes, assumindo a função de uma espécie de dono e juiz da situação. Poderíamos acrescentar um bom número de apresentadores que carregam estas características.

Nos três casos acima, o papel do juiz, do jornalista e do apresentador é facilitar da melhor forma possível o espetáculo. Mas quando o próprio profissional se faz espetáculo desloca o núcleo de sua função específica. Quem deve sobressair não é ele, e sim os protagonistas dos fatos ou dos programas em questão. O bom profissional sabe colocar-se em segundo plano, como que de escanteio. O primeiro lugar do palco pertence àqueles que, pelo dom da arte ou pela trajetória de vida, fazem avançar a história.



Forasteiro e vida religiosa

Agora, tendo como pano de fundo os três exemplos apresentados, passemos ao campo da vida religiosa. O centro da consagração é o seguimento de Jesus Cristo. Ele próprio, em sua vida e obra terrestre, jamais apresentou a si mesmo. Quando o assediavam as multidões, fugia para isolamento, esquivava-se de uma centralidade sensacional e eufórica. Se acompanharmos com atenção os passos do Jesus histórico, sua missão está fortemente nucleada no Pai, no Reino e no pobre. Somente a partir da experiência pascal, é que as primeiras comunidades cristãs passaram a cultuar o Cristo Crucificado e Ressuscitado. E embora o credo da Igreja nascente tenha colocado o Cristo como protagonista principal, este sempre havia insistindo no cumprimento da vontade do Pai.

Essa reflexão ganha sua importância diante da vida consagrada atual. Com frequência encontramos não poucos religiosos ou religiosas, com profunda inserção no meio popular, angustiados com o fracasso, a insegurança e a impotência. Sem a menor dúvida, são pessoas sérias e seriamente engajadas no compromisso pela transformação social. Mas facilmente se impacientam com o ritmo dos acontecimentos, ou melhor, com o ritmo do povo. Parece que este “não quer nada com nada”!

É aqui que entra em cena o profissional discreto e silencioso de que falávamos nos parágrafos precedentes. De alguma forma, o religioso ou religiosa, através de sua consagração e testemunho, torna-se o “profissional da evangelização”. Entretanto, dizer profissional, como vimos anteriormente, não é o mesmo que dizer protagonista. Os protagonistas das mudanças sociais, econômicas, políticas e culturais seguem sendo os setores, movimentos e organizações da sociedade civil. A tarefa da vida consagrada é ser “fermento na massa”, fazê-la crescer a partir de dentro, ou seja, a partir de suas próprias forças. Numa palavra, despertar no povo suas potencialidades ocultas, tratar de canalizar tais energias, fortalecê-las, com vistas a uma incidência sociopolítica eficaz e transformadora.

Se assumirmos o papel principal, os pobres tendem a ficar na sombra. Moradores da Senzala e acostumados a depender da Casa Grande ou do padrinho rico, quando se deparam com o meio urbano simplesmente trocam o antigo coronel pelo padre ou pela irmã. Alguém que decide por eles, o que, além de acentuar sua dependência, ainda os impede de assumir os riscos ou sucessos da própria iniciativa. Nada é mais tentador do que depositar a liberdade aos pés de alguém, de um “salvador da pátria”. O Medo à liberdade, livro de Erich Fromm, tem muito a dizer sobre essa atitude passiva e infantil. A liberdade é um fardo que somente as pessoas maduras conseguem carregar.

A chegada discreta do forasteiro, no episódio dos discípulos de Emaús (Lc 24,13-35), ilustra o papel do juiz, do jornalista, do apresentador e do religioso ou religiosa. Somente como forasteiro, ele pode perguntar pelo que aconteceu ou interessar-se pela tristeza dos discípulos em fuga. Se Jesus se apresenta logo como o Cristo Ressuscitado, o diálogo se interrompe imediatamente. Diante da autoridade, a timidez é inevitável. O diálogo é substituído pelo monólogo de “quem sabe de tudo”. A conversa continua porque o desconhecido permanece oculto. E com isso tem acesso ao drama que os dois estão vivenciando. Pode entender seu rosto, ouvir suas palavras, acompanhar seus passos.



O Mistério da Encarnação

De resto, é esse o mistério da encarnação. “O verbo se faz carne”, se faz homem, para ter acesso à história da humanidade em suas veredas mais ocultas, em suas lutas e sonhos, interrogações e incongruências. Pode-se afirmar que desde os quatro verbos do Livro do Êxodo ou do Deuteronômio, colocados na boca de Deus – eu vi a aflição, eu ouvi o clamor, eu conheço o sofrimento e eu desci para libertar – começa a encarnação (Ex 3,7-10; Dt 26,5-10). A descida de Deus que permite a subida do ser humano. Deus se humaniza para abrir a possibilidade de o homem se divinizar.

Os quatro verbos refletem a experiência de um Deus extremamente sensível, atento e solidário com as vítimas da história. É a experiência fundante do Povo de Israel, seu alicerce histórico de fé e esperança. Mas para por em marcha o povo oprimido, e conduzi-lo ao caminho da libertação, Ele desce, como que entrando pela porta dos fundos, invisível e ao mesmo tempo presente na trajetória do povo. Tal descida adquire sua plenitude na encarnação. Também dessa vez, Jesus chega pela porta dos fundos: “não havia lugar para eles”, diz o evangelista de sua infância (Lc 2,7). Assim se expressa a delicadeza do forasteiro. Mesmo sendo de “condição divina”, Ele não se apega ciosamente a essa condição, mas se humilha e se faz “obediente até a morte e morte de cruz” para conhecer a fundo os embates , dores, sofrimentos e esperanças da história e do coração humano (Fl 2,6-11).

O religioso ou religiosa inseridos têm aí um espelho. Uma entrada triunfal e solene no meio do povo, ou na casa de alguém, é a melhor forma de romper um encontro possível. A atitude ostensiva de poder, ainda que simbólico, ou justamente por sê-lo, inibe e mutila a fala do outro. Por isso é que inserção rima com inculturação, um diálogo de corações e almas. Não se trata da imitação superficial de vestir, comer ou dançar e cantar como o povo. Esta até pode estar presente, sem dúvida, mas não substitui o esforço profundo para compreender os valores e contravalores de outra cultura. Muitas vezes a simples imitação, inculturação falsa, pode mesmo impedir o processo lento e laborioso do verdadeiro encontro de pessoas, povos e raças. Em síntese, inculturação não é um ato da vida, mas um processo que dura uma existência inteira.

Tornar-se forasteiro como Jesus no mistério da encarnação é abdicar de títulos, prestígio, pompa, solenidade e poder – tudo para colocar-se ao nível do outro. É também saber revelar a própria sede, como faz Jesus por duas vezes. Somos todos uma mescla de água e sede, temos algo e ensinar e algo a aprender. Por isso, a evangelização é sempre um processo de mão dupla. Parafraseando Paulo Freire, ninguém evangeliza ninguém e ninguém se evangeliza sozinho. A evangelização se dá no encontro. No poço, água e sede se encontram, se entrelaçam e se reforçam no diálogo mútuo. Se todos somos uma mistura evangelizador e evangelizado, se em cada coração humano e no coração de cada cultura existem sementes do verbo, então conclui-se que Evangelho não se leva nem se traz – se vive!

Na Pastoral dos Migrantes, em particular, a atitude de “tornar-se forasteiro” é conditio sine qua non da evangelização. Ser forasteiro com os forasteiros é a única maneira de penetrar em seu mundo. É natural que o migrante, como estrangeiro, feche as portas e o coração a outro estrangeiro. Atitude de defesa frente a possíveis hostilidades, preconceito e perseguição. Como “quebrar o gelo”? A delicadeza do forasteiro é a chave que abre a porta tanto ao outro quanto ao totalmente Outro.

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