Pe. Alfredo J. Gonçalves, CS
A Congregação dos Missionários de São Carlos (Scalabrinianos) teve aprovação por parte do papa Leão XIII no dia 28 de novembro de 1887. Sua fundação, portanto, encontra-se estritamente vinculada às mudanças rápidas e profundas que sacodem o século XIX. Três renomados historiadores, cada um com sua obra monumental e com um enfoque distnto, trazem luz sobre os antecedentes e o contexto desse período conturbado da história: Fernand Brudel, Eric. J. Hosbsbawm e Peter Gay. Utilizando uma expressão desde último, a Congregação nasce no final do “século do movimento”, cuja melhor metáfora é o trem.
Ontem
O próprio movimento assume o caráter de grande metáfora do século XIX. Em várias dimensões, a sociedade se movimenta em marcha acelerada e estonteante. Para começar, no decorrer de todo o século, constata-se um movimento inédito de pessoas. O êxodo rural esvazia os campos europeus e as cidades se incham de forma caótica. A cidade de Manchester, por exemplo, berço da Revolução Industrial, pula de 70 mil habitantes em 1820 para mais de 700 mil antes de 1900. Em maior ou menor grau, o mesmo ocorre do outro lado do canal da mancha – Munique, Paris, Milão, Berlim, Viena, etc. – e do outro lado do Atlântico – New York, Chicago, Detroit, etc.
No velho continente europeu, boa parte de contingente de migrantes internos era absorvido pelas fábricas que se multiplicavam de forma vertiginosa. Outros, porém, a partir das cidades ou diretamente do campo, viam-se forçados a cruzar os oceanos em busca de novas oportunidades de vida nos Estados Unidos, Brasil, Argentina, Austrália, Nova Zelândia, entre outras localidades. Ainda de acordo com Peter Gay, entre 1820 e 1920, cerca de 62 milhões de pessoas deixam a Europa em direção às terras novas. “Das várias regiões da Itália”, escrevia em 1899 Dom João Batista Scalabrini, bispo de Piacenza , “um número considerável de camponeses e operários emigra a cada ano. Espalha-se pelo mundo em busca de trabalho”.
Numa rápida retrospectiva da época, não é difícil estabelecer uma relação curiosa entre o Fundador Scalabrini, Leão XIII e o historiador citado. Enquanto este se refere ao trem como a metáfora do século em movimento, o pontífice, na abertura da Rerum Novarum, de 1891, documento inaugural da Doutrina Social da Igreja (DSI), escreve sobre a “sede de inovações” e a “agitação febril” que domina a sociedade. Se, por uma parte, o Papa estava preocupado com a “condição dos operários”, subtítulo da encíclica, por outro lado, Scalabrini tinha os olhos fixos naqueles que sequer conseguiam um posto de trabalho em seu país e se viam obrigados a deixar suas terras, seus parentes e emigra para o novo continente.
É conhecida, notória e comovente a sua descrição dos emigrantes amontoados na Estação de Milão, cujos “pórticos laterais e a praça adjacente” encontram-se “invadidos por trezentos ou quatrocentos indivíduos” E Scalabrini continua: “eram velhos curvados pela idade e pelas fadigas, homens na flor da virilidade, mulheres que levavam após si ou carregavam ao colo suas crianças, meninos e meninas todos irmanados por um único pensamento, todos orientados pra uma meta comum”. Às centenas, aguardavam o trem que os levariam ao porto de Gênova, de onde deveriam tomar o navio para uma aventura por mares e terras bravias. Eram migrantes que depositam suas esperança no sonho de “far l’America”. Não é à toa que a cena da Estação de Milão torna-se uma espécie de ícone para a trajetória de toda a Família Scalabriniana.
Além do deslocamento em massa de pessoas, o século XIX é testemunha de um movimento sem precedentes no campo da produção e comercialização de matérias primas e de novos bens de consumo. A era da máquina multiplica por dez, cem, mil vezes o ritmo e a capacidade de produzir mercadorias e conforto. Por outro lado, a revolução nos meios de transporte e nos meios de comunicação – trem, navios modernos, telégrafo, telefone, etc. – praticamente subvertem a noção de tempo e espaço. O ímpeto inebriante da Revolução Industrial põe em velocidade acelerada pessoas, coisas e capital.
O século XIX representa, ainda, um movimento de passagem do tradicional para o novo. Desde o início dos “tempos modernos”, passando pelo renascimento e pelo iluminismo, os valores tradicionais são sendo postergados por uma crescente avalanche de inovações. A novidade passa a ganhar o status de valor primordial. De maneira progressiba, a pirâmide medieval estática, assentada sobre a origem do berço, da linhagem e do sangue, dá lugar a uma sociedade dinâmica, onde o dinheiro teoricamente democratiza o acesso livre ao conjunto da população. O teocentrismo é substituído pelo antropocentrismo racional, ao passo que a ciência e a tecnologia dissecam e desvendam os mistérios da natureza, da história e do corpo humano. Surge o mundo secular e “desencantado”, para usar as palavras de Max Weber.
Também na Igreja verifica-se certo movimento, traduzido pela emergência de uma nova sensibilidade social. Uma série de “santos sociais” encontra-se na origem de novas congregações religiosas, marcadamente voltadas para o apostolado. Se por um lado a Revolução Industrial trouxe avanços significativos nos transportes, nas comunicações, na medicina e no conforto das casas, por outro gerou efeitos nocivos no tecido social. As transformações, para o bem ou para o mal, são sempre causa de ansiedades. O novo interpela, desinstala, joga uma pedra sobre o lago da inércia natural, assinala Peter Gay. A segunda metade do século XIX é pródiga em obras assistenciais que procuram ir ao encontro das necessidades fundamentais de determinados grupos e/ou situações sociais ameaçadas pela avalanche das mudanças.
S. João Bosco volta a atenção para os jovens, um pouco perdidos num mundo sem horizontes precisos e que foge debaixo dos pés; a inspiração de Antoine F. Ozanam, embora nascida décadas antes, desenvolve-se como obra vicentina predominantemente nesse período; os padres e irmãs Oblatos de Maria Virgem preocupam-se com a situação das mulheres prostituídas; os órfãos e viúvas interpelam a Congregação das Irmãzinhas da Imaculada Conceição; Dom Scalabrini e Madre Cabrini dirigem seu olhar para os emigrados; a obra Kolping procura desenvolver círculos operários cristãos... Tudo isso irá encontrar sua expressão mais universal no final do século, com a Carta Encíclica Rerurm Novarum, como já vimos. Não estariam aqui os precursores do Concílio Ecumênico Vaticano II? Por outro lado, a “onda ou maré vermelha” do socialismo ganhava terreno particularmente entre os operários de toda Europa. Convém não esquecer que o Manifesto Comunista tinha vindo à luz em 1848, quase meio século antes da encíclica de Leão XIII e, em 1844, F. Engels havia publicado sua obra sobre a condição dos operários nas cidades da Inglaterra, mesmo tema da do documento pontifício que dá início à DSI.
Hoje
Passado mais de um século da obra e morte de Scalabrini, o fenômeno migratório só fez aumentar. As migrações parecem figurar na história como ondas aparentes e superficiais de correntes ocultas e subterrâneas. Constituem uma espécie de termômetro de mudanças profundas, as quais são sempre precedidas ou seguidas de movimentos populacionais significativos. Os abalos sísmicos no campo socioeconômico, político ou cultural em geral vêem acompanhados de consideráveis deslocamentos geográficos. As migrações são “sinais dos tempos”, como insiste o papa Bento XVI. Atestam a existência de terremotos reais, mas às vezes imperceptíveis.
Hoje em dia, os deslocamentos humanos de massa tornaram-se simultaneamente mais intensos, mais diversificados e mais complexos. Mais intensos, na medida em que envolvem maior quantidade de pessoas. Estima-se em mais de 200 milhões o número de imigrantes que residem fora do país em que nasceram. Se a isso acrescentarmos as migrações internas e temporárias, a cifra alcança cifras bem mais expressivas. Segundo alguns analistas, porém, o “exército de reserva” (K. Marx), ou seja, o potencial de trabalhadores dispostos a levantar a tenda e correr atrás de qualquer sinal de trabalho, pode ultrapassar os 500 milhões. Nesse montante, predominam os jovens e cresce a percentagem de mulheres.
Nem precisa dizer que grande parte desse contingente vive em situações extremamente precárias. Como migrantes em potencial ou como migrantes de fato, experimentam no corpo e na alma a condição pobreza ou de clandestinidade; são submetidos os serviços mais degradantes, sujos, pesados e mal remunerados; muitos acabam sendo vítimas do tráfico internacional de seres humanos para fins de exploração trabalhista ou sexual; sem documentação e com dificuldade de um emprego estável, dificulta-se igualmente o acesso à escola, saúde, enfim, aos direitos de uma cidadania digna.
As migrações são também mais diversificadas. Atualmente, poucos países do planeta estão fora de seu circuito. Como lugares de origem, trânsito ou destino, todos se vêem envolvidos nesse imenso vaivém planetário. Novos povos, raças e grupos entram a fazer parte desse cenário nacional, regional e internacional do fenômeno migratório.
Países historicamente marcados pela imigração passam a apresentar fortes contingentes de emigrantes, como Brasil, Argentina, México, entre outros. Destinam-se predominantemente aos Estados Unidos, seguidos da Europa e Japão. Por outro lado, os países europeus, que no século XIX e início do século XX foram palco de saída, hoje recém imigrantes hispano-americanos, africanos e asiáticos.
Diversificam-se também os fluxos e as rotas. A direção sul-norte é de longe a mais movimentada, mas, após o declínio da União Soviética, cresce o fluxo leste-oeste. Nos países do Terceiro Mundo, aumentam igualmente os deslocamentos regionais no interior da África, da América Latina e da Ásia, bem como o êxodo rural desenfreado e as migrações internas. Voos curtos e voos médios, dentro de um mesmo país ou entre países vizinhos, normalmente são etapas preparatórias para voos mais longos, de continente para continente. As assimetrias e desigualdades sociais, a violência de todo tipo, as guerras e guerrilhas, o tráfico de pessoas, o intercâmbio de técnicos e estudantes, o vaivém para as safras agrícolas, o trabalho doméstico e os serviços em geral, o turismo – são alguns dos fatores predominantes da mobilidade humana. Sem falar dos que se deslocam por profissão ou cultura, tais como motoristas, marítimos, aeroviários, ciganos, itinerantes, etc.
Nos grandes centros urbanos é comum o encontro diário com “os mil rostos do outro”. Jamais o mundo e o outro/diferente estiveram tão próximos, como uma gigantesca aldeia global. Novas revoluções na área dos transportes, especialmente a democratização do avião, na tecnologia das comunicações, com destaque para a televisão, e no campo da informática, com a Internet em primeiro lugar, aproximam como nunca povos, culturas e raças. A notícia torna-se cada vez mais simultânea, instantânea. Tudo isso acaba sendo, ao mesmo tempo, causa e efeito de novos fluxos migratórios.
Por fim, as migrações no momento presente apresentam um quadro cada vez mais complexo. Se, em tempos passados, os fluxos migratórios tinham uma origem e um destino mais ou menos determinados, atualmente o panorama da mobilidade humana apresenta as mais variadas direções. O mapa das idas e vindas se complexificou. À pergunta sobre a origem do imigrante deve acrescentar-se a pergunta sobre sua proveniência imediata. Isto porque grande parte das pessoas que se deslocam o faz por uma, duas, três e mais vezes. Arrancada a primeira raiz, facilmente o migrante se torna um peregrino de muitos e repetidos caminhos. Não mora, acampa!
No passado predominavam as migrações de colonização. Os trabalhadores migravam com suas famílias para fixarem-se num novo lugar. Aí tratavam de recomeçar a vida. É verdade que havia grande quantidade de terra “vazia e ociosa” para a instalação de grupos de colonos. Os casos dos Estados Unidos, Argentina, Austrália e Rio Grande do Sul, Brasil, ilustram isso. Nos dias atuais, ao contrário, é comum os migrantes fazerem experimentos migratórios. De etapa em etapa, vão tentando progredir em seu projeto de vida. Fixam-se por algum tempo, preparando uma espécie de trampolim para outro pulo mais arrojado. Uma vez mais, vivem montando e desmontando a tenda. Exagerando numa caricatura, muitos roçam de endereço quase como se troca de roupa.
Mas não dá para generalizar. Já nos séculos passados existiam aventureiros que se lançavam a uma migração constante e repetida, da mesma forma que também hoje existem jovens e famílias que procuram um galho firme para construir seu ninho. Ou uma terra sólida onde mergulhar as raízes de um sonho duradouro, o alicerce de uma nova vida. A realidade é sempre mais rica e dinâmica que nossos pobres esquemas mentais.
Amanhã
Após a análise dos itens anteriores, duas constatações são inevitáveis. A primeira é de que com a aproximação e o estreitamento dos povos e nações, aprofunda-se o pluralismo cultural e religioso. Valores e contravalores se chocam, se entrelaçam e se enriquecem simultânea e reciprocamente. Os desafios de ordem pastoral e política se tornam mais exigentes. O seguimento de Jesus e de Scalabrini requer uma “fidelidade criativa” cada vez mais atenta. Vale sublinhar que fidelidade não é imitação. Imitar pode ser a pior forma de seguir. Na medida em que muda o contexto histórico, mudam igualmente as perguntas e respostas levantadas pela realidade das migrações.
Isso nos leva à segunda constatação: nunca o carisma scalabriniano esteve tão vivo e atual com nos dias de hoje. Aqui o maior grande desafio é como atualizar a herança de Scalabrini no contexto da mobilidade humana do século XXI. “A fenômenos novos, organismos novos”, dizia o Fundador. Não se trata de voltar ao saudosismo do passado, mas de avançar para as novas fronteiras. Simbolicamente, não se trata de construir museus, e sim de abrir trincheiras. Ou melhor, estudar os museus com os olhos e os passos voltados para novos horizontes. No espírito da fidelidade criativa, se imitar pode significar traição aos novos desafios ou cristalização histórica, o verdadeiro seguimento exige uma criatividade permanente diante da dinâmica das migrações.
Como traduzir a expressão “organismos novos” para responder eficazmente aos “fenômenos novos” de que nos fala Scalabrini? O Congresso Scalabriniano sobre Migrações e Modelos de Pastoral, realizado em Triuggio, Itália, nos meses de maio/junho de 2005, traz muitas luzes e aponta caminhos concretos. Entre eles poderíamos destacar: análise atualizada e permanente do fenômeno migratório, através dos Centros de estudos Migratórios; introdução das temáticas migratórias no currículo da formação scalabriniana, tanto de religiosos quanto de leigos/as; atuação incisiva nos pontos nevrálgicos onde a migração e mais viva e efervescente; casas de migrantes e/ou Centro Pastorais de Acolhida, com assistência imediata e serviços de documentação, especialmente nas regiões fronteiriças e nas capitais; paróquias multiétnicas e pluriculturais, como espaço de encontro e de intercâmbio para os diversos povos e nações; parcerias e colaboração com outras forças vivas que atuam no campo da mobilidade humana, seja em termos de Igreja, organizações governamentais ou órgãos do poder público; presença articulada nos pólos de origem, trânsito e destino; sensibilidade das Igrejas Locais e da sociedade como um todo; defesa dos direitos do migrante, tanto trabalhistas quanto sociais; presença em organismos eclesiais e sociais que tenham incidência em seus respectivos campos de atuação; atividades específicas junto aos marítimos, itinerantes e outras categorias de trabalhadores ou de povos em mobilidade; maior divulgação das ações em prol dos migrantes, com vistas, por exemplo, a mudanças na Lei de Estrangeiros...
Em tais modelos de pastoral, para seguir com a terminologia de Triuggio, impõem-se quatro linhas de ação: a) a acolhida ao outro/estranho/diferente como coluna vertebral de toda a ação scalabriniana; b) a presença e defesa da causa do migrante frente a outros desafios da sociedade moderna ou pós-moderna; c) o Evangelho, a Eucaristia, o rosto dos migrantes e a espiritualidade do caminho como fontes que nutrem e sustentam a missão; d) o passo do multiculturalismo ao interculturalismo, onde não basta a tolerância e a coexistência pacífica entre as distintas expressões culturais, mas é preciso avançar para o confronto sadio e o intercâmbio mutuamente enriquecedor.
Conclusão
Ontem, hoje, amanhã e sempre – do ponto de vista scalabriniano – as pegadas de Jesus Cristo, do Bem-aventurado Scalabrini, de Maria mãe dos peregrinos e dos migrantes operam um tríplice apelo à conversão: na fonte, nos levam a beber a água cristalina das origens, que revigora e reaviva as raízes de nossa espiritualidade, nosso carisma e nossa missão; no caminho, transformam nossas casas em tendas, não somente abertas à acolhida dos caminhantes, mas aberta também dispostas a levantar acampamento e seguir adiante, dada a provisoriedade de nossa passagem pela face da terra; no horizonte, buscam a pátria definitiva, a Jerusalém celeste, sem olvidar que ela tem seus alicerces fundados na justiça e na solidariedade da cidade terrestre.
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