Pe. Alfredo J. Gonçalves, CS
Terminado o pleito eleitoral, baixado o tom das disputas e silenciadas as farpas ruidosas, não custa deter-se um momento nos rastos e impressões deixados pelo caminho. De início, poucas vezes se viu uma polarização tão acentuada e, ao mesmo tempo, tão superficial se confrontada com os grandes problemas que assolam uma economia emergente. Determinadas expressões usadas no calor dos embates, bem como o comportamento dos candidatos e respectivas coligações, não deixam dúvida quanto ao extremismo do duelo.
Temos, de um lado, a ligação de José Serra com o retorno da barbárie e da onda de privatizações, como se a economia estivesse prestes a sofrer abalos sísmicos diante de sua possível vitória. Chegou-se até a ressuscitar o tom do famigerado eu tenho medo da Regina Duarte, nas eleições de 2002, quando se tornava clara a ascendência de Luiz Inácio Lula da Silva à Presidência da República. Como se ganhar o direito a sentar na cadeira presidencial fosse controlar as forças do Estado, manifestas ou ocultas.
De outro lado, o mesmo eu tenho medo, mais sutil e com nova roupagem, reveste a expressão turma da Dilma, numa tentativa de satanizar a campanha da coligação liderada pelo Partido dos Trabalhadores. E nessa turma elencavam-se nomes de figuras políticas historicamente vinculadas aos momentos mais turbulentos da gestão Lula, tais como Sarney, José Dirceu, entre outros. A ansiedade de ambos os lados revela e esconde, simultaneamente, interesses nem sempre confessados.
Mas a demonização da política foi mais longe. Usou-se a abusou-se do confronto entre as gestões de FHC e Lula. O que para uns era anjo, para outros vinha revestido de demônio, e vice-versa. Num regresso a práticas execradas pela história, procurou-se traçar as fronteiras entre o céu e o inferno, entre o bem e o mal, entre o erro e a verdade. Os vilões de um lado eram necessariamente heróis do outro, os mocinhos de uma coligação apareciam como bandidos da outra. De repente vimo-nos conduzidos aos filmes da infância, onde a cavalaria medieval e o farwest norte-americano demarcavam desde o começo os limites entre anjos e demônios!
As próprias forças religiosas se prestaram a isso. No final do primeiro turno e começo do segundo turno, criou-se um barulho infernal com questões de ordem moral, como, por exemplo, o aborto e o casamento gay. Como se fossem esses os temas centrais e inegociáveis da campanha. Notas, desmentidos, reafirmações, mensagens e opiniões de todo tipo invadiram a praça pública da Internet. Difícil orientar-se diante de um rumor tão inescrupulosamente espetacularizado. Nesse clima, cada posição, cada palavra ou cada defesa, de um ou outro lado, só faziam jogar mais lama no ventilador. A praça virtual se contaminou de tal forma que os internautas corriam o risco de quedar-se surdos e cegos para outros tipos de morte no cenário da violência cotidiana, ou outros tipos de assuntos relevantes para as populações pobres e excluídas de uma verdadeira cidadania.
Mas os enfrentamentos de caráter mais pesado (ou mais baixo!) se deram entre as próprias coligações em jogo. De parte dos tucanos, e com a cumplicidade de grande parte da mídia, montou-se todo um espetáculo grandiloquente por causa de uma agressão que, afinal de contas, não passou de um embate corriqueiro de qualquer campanha. De parte dos petistas, o próprio Presidente da República, trovejando de palanque em palanque, pousou de cabo eleitoral assumido.
Nada disso, porém, abalou os subterrâneos da economia. Os ruídos e bravatas da campanha eleitoral permaneceram na superfície. É costume afirmar que, em certos momentos, o mercado está de mau humor ou está nervoso. Neste pleito, podemos igualmente afirmar que o mercado tinha consciência de que estava garantida a continuidade do modelo político e econômico brasileiro. Não se viu carrancas descabidas na bolsa de valores, tentativas de fuga dos especuladores nacionais e internacionais, ou uma gangorra desenfreada da cotação do dólar. Apesar das ondas bravias que polarizaram a eleição, as correntes ocultas da economia permaneceram serenas e tranqüilas. Não obstante tanto ruído, nada foi capaz de perturbar o sono do gigante chamado capitalismo neoliberal!
Os itens acima nos levam a uma observação pertinente de Beltrand Russel. Segundo este autor, a democracia ocidental, em sua trajetória acidentada, conseguiu eliminar as dinastias políticas. O poder monárquico ou imperial, dos séculos passados, transmitido de paia para filho, muitas vezes coroado e abençoado pelos poderes eclesiásticos, foi totalmente banido dos países ocidentais. O governo passa a ser um Contrato Social (Rousseau, Hobbes) entre as forças sociais: teoricamente, emana do povo, pelo povo e para o povo.
Por outro lado, ainda de acordo com Russel, a democracia ficou a meio caminho. Não conseguiu chegar aos subterrâneos mais intricados da economia. Neste campo do patrimônio acumulado, as fortunas passam de pai para filho, e as dinastias continuam intactas. Ninguém questiona o direito natural dos descendentes herdarem os bens de determinado milionário ou bilionário, pouco importando a forma como tal riqueza foi adquirida. Terras, contas bancárias, edifícios, ações, patentes, marcas, etc. são bens de família a serem distribuídos entre os filhos e netos.
Ocorre que os detentores das dinastias econômicas acabam recriando as dinastias políticas. São eles que podem pagar o alto preço de campanhas eleitorais, que podem bancar os marqueteiros e que podem expor o rosto e o pensamento na grande mídia. O poder econômico compra o poder político e este, a seu turno, garante acesso a outras formas de riqueza. Fecha-se o círculo vicioso do ter e do poder: um bom patrimônio tem condições de fazer uma boa campanha e ganhar as eleições, o que abre portas para o acúmulo de novos bens. Não é à toa que alguns donos do poder (Raymundo Faoro) vão se perpetuando numa espécie de cadeira cativa no Senado, na Câmara e em outras funções de grande prestígio.
Mais grave ainda quando tudo isso vem reforçado pela força da máquina administrativa. Quando prefeitos, governadores e presidente, além de vereadores, deputados e senadores, se atiram de corpo e alma ao processo eleitoral, fica difícil para o eleitor estabelecer um linha demarcatória entre o que é governar e o que é fazer campanha. Aliás, fica difícil para o próprio político. Também aqui as fronteiras se borram com frequência inusitada. Tanto no moralismo entre o bem e o mal, quanto na opção ética entre exercer o mandato ou atuar como cabo eleitoral, os limites se mesclam e se confundem.
Nos dois casos, falta ao país o que se poderia chamar de uma cultura democrática ampla e plural. Uma espécie de campo de disputa independente dos personalismos, autoritarismos, centralismos e moralismos religiosos, por um lado, e independente, por outro lado, das grandes fortunas, das oligarquias sobreviventes, do tráfico de influência, do prestígio e privilégio das classes dominantes e do poder exacerbado da mídia. Para isso se impõe a necessidade de criar e/ou fortalecer novos canais de participação popular, novos mecanismos e instrumentos de controle do poder e do orçamento públicos. Falar de democracia direta é um sonho, mas é possível avançar para um debate político e político-partidário onde os diversos setores da população tenham maior incidência e poder de decisão.
Nesta perspectiva, não basta eleger políticos democráticos, que não raro acabam sendo manipulados pelas forças de um Estado historicamente viciado em manter os privilégios da Casa Grande em detrimento dos direitos da Senzala (Gilberto Freire). É preciso estabelecer estruturas democráticas de gestão da rex publica, as quais independam dos mandatários de plantão, por uma parte, e, por outra, possam ser controladas por representações da sociedade civil organizada. Somente com raízes bem fincadas no solo das reivindicações populares solo úmido de suor, lágrimas e sangue de tantos cidadãos é que a árvore da gestão política pode esquivar-se à manipulação das raposas que há séculos controlam a ferro e fogo o mando da nação.
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