quarta-feira, 12 de agosto de 2009

Trabalho escravo: não há como ignorar, não há como deixar de reagir

Marcos Pedloskwi *
Adital

Determinadas notícias que aparecem na mídia já não me surpreendem, visto que reportam fatos que se repetem quase que cotidianamente. Mas algumas delas são impossíveis de ignorar, pois revelam facetas que são muitos úteis para entendermos a dinâmica da sociedade em que vivemos. De cara é preciso constatar que vivemos um período histórico em que se esperaria que determinadas questões tivessem sido superadas. Entre estas coisas podem se incluir a fome, a miséria, a inexistência de estruturas essenciais para tornar as cidades habitáveis como redes de coleta e tratamento de esgotos, escolas e hospitais de qualidade para todos.

Esta lista, contudo, não pode deixar de fora a questão da escravidão humana, especialmente naquela forma que foi arquitetada pelas potências coloniais do século XVI. Afinal, o custo associado à escravidão até hoje não foi devidamente resolvido, criando diferentes tipos de tensões dentro dos países em que sua prática foi mais disseminada e prolongada. Neste caso se incluem o Brasil e os EUA, onde a herança histórica da escravidão continua pesando como uma espada de Dâmocles sobre o cotidiano destas duas sociedades.

Mas é preciso reconhecer que no caso dos norte-americanos, a eleição de um presidente negro representa uma mudança paradigmática nas relações raciais, ainda que isto não signifique que por si só a eleição de um negro para o cargo político mais importante daquela Nação resolva os problemas existentes. Contudo, o caso brasileiro não é apenas pior pela presença insignificante de pessoas negras em cargos políticos importantes, ou mesmo em função do tratamento diferenciado (para pior) que os negros recebem na maioria dos aspectos que tocam sua vida cotidiana. O fato é que no Brasil ainda persiste a prática que deu origem a boa parte dos problemas que assombram a nossa sociedade, ou seja, a escravidão. O que estará fazendo com que este verdadeiro surto de escravagismo se abata sobre nós, envolvendo centenas de cidadãos brasileiros que abandonam seus lares a milhares de quilômetros para vir até aqui em busca de trabalho e renda para alimentar suas famílias?

O leitor dotado de melhor memória logo lembrará que já toquei neste assunto em uma edição anterior da Somos. Daquela feita o fiz de uma maneira mais genérica, pois este não é um problema que afeta apenas o Brasil e, por extensão, nossa própria região. Hoje acredito que talvez tenha pecado ao fazer isto, dada as evidências que estão emergindo no processo de corte da atual safra da cana-de-açúcar em Campos e em municípios localizados em seu entorno. Os números de trabalhadores escravos que estão sendo libertados pela Polícia Federal são de envergonhar a memória de José do Patrocínio, líder abolicionista que saiu das imediações da Lagoa de Cima para ocupar um lugar de honra na História do Brasil. Será que deu a louca em empresários que deveriam estar zelando pelo nome de suas empresas e famílias, ou estamos confrontados com mais um episódio de certeza de impunidade? Uma coisa é certa, os números de trabalhadores libertados e a elucidação das trapaças financeiras a que estavam sendo submetidos não deixa outra opção a não ser esperar que a Polícia Federal continue agindo com firmeza.

No entanto, é preciso fazer mais do que simplesmente esperar que a polícia faça o seu papel. Há que se cobrar do governo Lula que fortaleça o Grupo de Fiscalização Móvel do Ministério do Trabalho, que hoje conta com um número de servidores insuficiente para coibir a prática da escravidão e levar à justiça os que forem identificados praticantes deste crime. O fato é que a execução do "Plano Nacional de Erradicação do Trabalho Escravo", entregue pronto e definido ao presidente Lula por Fernando Henrique Cardoso emperrou no atual governo. Além disso, as medidas sugeridas em 2002 por uma comissão federal de alto nível estão sendo ignoradas pelo governo federal. Em função disto, enquanto for mais barato pagar a multa do que cumprir a lei, continuaremos assistindo impotentes a repetidos eventos de libertação de escravos. Neste sentido, é importante apontar a necessidade de que haja uma ampla mobilização política em prol do desengavetamento e imediata aprovação pelo Congresso Nacional do Projeto de Emenda de Constitucional (PEC) 438 que trata de uma série de punições para os envolvidos na consumação do trabalho escravo. A verdade é que a discussão da PEC 438 continua parada principalmente porque o governo Lula tem se omitido vergonhosamente, provavelmente por causa de acordos políticos com o latifúndio, hoje travestido de agronegócio. Aliás, cada vez que um trabalho escravo é libertado, a máscara que encobre o latifúndio é arrancada, revelando práticas espúrias e negócios escusos.

E aqui não há espaço para engano. Uma sociedade que tolera a escravidão não pode se almejar moderna, ainda que repleta de badulaques high tech. A verdadeira modernização só será possível quando se promover mais uma abolição da escravidão no Brasil. E que desta vez os senhores de escravos não recebam como consolo as chaves dos cofres públicos. Neste caso, uma vez foi mais do que suficiente!

* Revista SOMOS, da Universidade Estadual de Norte Fluminense, Campos/RJ

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