Pe. Alfredo J. Gonçalves, CS
No universo literário do filósofo polonês Zygmunt Bauman, o adjetivo líquido serve de complemento para uma série de títulos de suas obras: modernidade, amor, medo, vida, entre outras. As relações sólidas, duráveis e tradicionais se liquefazem em conexões virtuais: efêmeras e superficiais, provisórias e descartáveis. Em outros termos, rompe-se o contrato social que cimentou os fundamentos do mundo moderno e do regime democrático. “Tudo que é sólido se desmancha no ar”, escreviam Marx e Engels, já em 1848, no Manifesto Comunista.
Poderíamos falar desse derretimento do pacto social utilizando a metáfora do divórcio. De fato, além dos crescentes rompimentos matrimoniais, constata-se hoje uma série de divórcios em todas as áreas da “modernidade tardia” ou da “pós-modernidade” (deixamos de lado essa divergência de caráter mais acadêmico). Não custa examinar mais de perto algumas dessas dicotomias que batem às nossas portas. Divórcios ou dicotomias que dilaceram e fragmentam pessoas, comunidades, instituições e a própria sociedade como um todo.
1. Divórcio entre trabalho e emprego
O fim da centralidade do trabalho é o título de um artigo publicado na revista Pesquisa & Debate, SP, volume 9, número 2(14), páginas 87-104, 1998. Nele, o professor da UFF e doutorando do Instituto de Economia da UFRJ, André Guimarães Augusto, se contrapõe às posições e argumentos de Claus Offe, especialmente seus estudos sobre Estado e trabalho na sociologia crítica. Atualmente, numerosas publicações colocam no centro dos debates a tese do “fim do trabalho”.
Talvez um dos enfoques dessa temática seja o divórcio entre trabalho e emprego. No entender de Bauman, a pós-modernidade se caracteriza, entre outros fatores, pela passagem da sociedade de produção à sociedade de consumo. Com isso, o emprego nos moldes tradicionais, estável, com carteira assinada e perspectiva de aposentadoria, dá lugar à predominância do trabalho temporário, chamado freelancer, instável, domiciliar, etc. Os “bicos” ou serviços eventuais ganham terreno sobre o contrato de trabalho duradouro, às vezes passado de pai para filho através da confiança. Ao invés de um posto de fôlego largo numa grande indústria, montadora ou renomada rede comercial, as empresas passam a utilizar uma mão-de-obra pendular. O que se combina perfeitamente com as pequenas unidades de produção, facilmente desmontáveis e móveis de acordo com a facilidade de matéria prima de braços mais baratos. Combina também com a intensa, complexa e diversificada mobilidade geográfica de milhões de trabalhadores, os quais, hoje em dia, para usar os termos de Marx, constituem um enorme “exército de reserva que não mora, acampa”.
Na sociedade de produção, se quisermos seguir com Bauman, a relação entre o operário e o patrão, embora sempre a uma distância recomendável, não raro vinha acompanhada de certa proximidade quanto aos trabalhadores confiáveis. Para arrumar emprego, “o mais importante é ter conhecimento”, dizia-se. Tal conhecimento, acrescido de laços de amizade compadrio e de influência, abria muitas portas. Oportunidade que, em não poucos casos, passavam de geração para geração. Na sociedade de consumo, pelo contrário, o que importa é a perfomance do candidato, não sua origem ou a indicação de algum padrinho. O trabalhador terá de passar por uma maratona de testes antes de ser admitido. No primeiro caso, o nome, a tradição e as relações de conhecimento tinham peso; agora prevalece o desempenho para tarefas bem específicas. Desempenho que nem sempre vem acompanhado de um emprego estável, mas de serviços prestados e remunerados eventualmente.
Não falta trabalho, ou trabalhos no plural. O que falta são empregos mais estáveis, com relativa duração. O que, por sua vez, impossibilita ao trabalhador e sua família fazer um planejamento ou um projeto de vida. Ele fica à mercê do que o mercado possa ou não oferecer. Torna-se mais frágil a estabilidade no emprego, enquanto ganha força a procura e a oferta de determinadas tarefas. Grande parte das empresas passa a operar, de um lado, com um reduzido grupo de especialistas qualificados e, de outro, com uma maioria de trabalhadores temporários. Para estes, um ano de carteira assinada é algo a ser comemorado. Os contratos tendem a ser curtos e descartáveis, não apenas na agroindústria ou agronegócio, onde o ciclo sazonal da produção tem fluxos e refluxos de mãos-de-obra, mas também em outros campos da economia, seja no setor primário ou secundário, seja no setor terciário. Daí a expressão hoje tão popularizada: “procurei emprego e encontrei trabalho”. Um divorcia-se cada vez mais do outro.
2. Divórcio entre amor e sexo
Na metáfora líquida de Bauman, os laços primários tendem a derreter-se. Surgem as conexões efêmeras e descartáveis. De acordo com o autor, com um toque na tecla do computador você pode arrumar 500 amigos em um segundo. Porém, a facilidade de conectar-se é irmã siamesa da rapidez de desconectar-se. Se isso vale para a amizade, vale igualmente para o amor ou o namoro. O “ficar” prevalece sobre o “namorar”. Neste, a relação exige intercâmbio, mudanças e relações de responsabilidade. Já no primeiro, o importante é o prazer pelo prazer, é “tirar uma casquinha”. Depois cada um segue seu caminho independente. Nem sequer há necessidade de saber o nome, endereço, família, etc. A fluidez e a superficialidade tendem a um grau bem maior quando a relação é virtual.
O amor implica renúncia, diálogo, compreensão, que tem como pano de fundo o bem querer. Requer capacidade de pedir e oferecer o perdão, de voltar atrás e de “engolir sapo”. Harmonizar duas cabeças, dois corações e dois corpos, olho no olho, é uma tarefa que exige passos lentos e uma vida inteira. O caminho é longo, permeado de incongruências e contradições. Extremamente laborioso e doloroso. Renascer e crescer são coisas que só ocorrem mediante dor. Daí a opção pela via curta do sexo fácil, light, sem conseqüências. Os meios de comunicação social e o ambiente urbano, com seus apelos atrativos e permissivos, facilitam essa escolha. O mercado profusamente iluminado de luzes, sons e cores, ou a “tirania do prazer” (J. C. Guillebaud), com suas casas noturnas e suas baladas, oferecem alternativas sem conta. Os acidentes... Bem, os acidentes sobram para as mulheres.
O mesmo divórcio pode ser encontrado entre amor e casamento. Com uma frequência inusitada, muitos casais resolvem se unir em matrimônio quando o amor já esfriou. O calor da paixão e da atração afetivo-sexual parece ir se apagando durante o namoro. A fronteira para o casamento, em alguns casos, significa entrar numa rotina que acabará por sacrificar o amor às conveniências. Evidente que a separação e o divórcio ( aqui em sentido literal) não podem estar longe de um estado de coisas semelhante.
3. Divórcio entre poder e política
Neste caso, basta uma olhada rápida à prática política brasileira das últimas décadas. As urnas elegem os prefeitos, governadores e presidente. Estes tomam o governo, mas seu domínio sobre os diversos órgãos do Estado é tênue e reduzido. O poder de decisão e de influência permanece atrelado às velhas oligarquias, extremamente retrógradas e avessas a qualquer tipo de mudança. A economia centralizada em imensos latifúndios (da terra e do agronegócio, das comunicações e da telefonia, das redes de supermercados e shopping centers), os privilégios da Casa Grande, o patrimonialismo (apropriação privada da rex publica), a corrupção e o tráfico de influência seguem imunes impunes. Entra governo e sai governo, mas o núcleo duro do modelo capitalista neoliberal permanece intocável. Em nome de uma governabilidade do “real politik”, costuram-se as alianças mais espúrias, abdicando facilmente da utopia de um “outro mundo possível”. Girando na órbita da economia globalizada, fornecendo matérias primas para os países centrais, deixam-se de lado as grandes lacunas sociais da população brasileira, tais como educação, saúde, habitação, segurança, transportes públicos, infra-estrutura, etc.
É bem verdade que um ou outro governo empreendeu esforços sérios de mudanças. Estas, porém, se restringem à periferia dos grandes entraves nacionais. Desatam alguns nós de superfície, sem ousar mergulhar nas correntes profundas e obscuras dos mandos e desmandos de quem detém o poder de decisão. Mais do que uma reforma agrária e agrícola, por exemplo, ou uma verdadeira distribuição de renda, o que vemos é uma série de programas que jogam migalhas para a população de baixa renda, recheadas de discursos retóricos e bombásticos. Em lugar de políticas públicas estáveis e duradouras, prevalecem as políticas compensatórias, com o verniz de um populismo historicamente ultrapassado.
Os interesses da bancada ruralista ou das companhias de telefonia e comunicação, fatias do mercado altamente disputáveis pela sua rentabilidade, são exemplos desses entraves históricos e estruturais. Mexer aí é mexer com caixa de marimbondos. Imediatamente os representantes do Congresso Nacional – nas duas casas – passam ao jogo de influência, de chantagem, quando não de corrupção pura e simples. A recente “faxina” empreendida pela presidente Dilma Rousself, e agora de certa forma abortada, ilustra bem essa impotência do governo frente às múltiplas forças que compõem o Estado liberal/neoliberal. Aliás, hipocritamente liberal, umas vez que, em tempos de vacas gordas, concentra em suas mãos lucros e o capital; mas, em tempos de vacas magras, pede socorro aos cofres do governo. A regra é simples: privatização dos ganhos, socialização das perdas!
Em suma, o império do mercado total se divorcia e supera o poder dos políticos legitimamente eleitos. Estes, quando muito, passam a ser cúmplices ou capatazes dos grandes interesses nacionais e internacionais. Em última instância, as determinações da política são ditadas pelas leis férreas da economia globalizada, centralizadora e excludente.
4. Divórcio entre viver bem e bem viver
A expressão “viver bem” denota o acesso fácil às novidades do mercado de bens de toda sorte. A velocidade do ciclo produção-comercialização-consumo aumenta de forma vertiginosa, comprometendo os recursos não recicláveis da natureza. A chamada civilização ocidental, especialmente a partir da Revolução Industrial, explora, devasta e polui a mãe Terra, impedindo-a de função primordial como fonte da biodiversidade. Porém, para a classe média e alta em geral, pouco importa o custo social ou ecológico desse produtivismo e consumismo exacerbados. Importa pouco também as toneladas de alimentos e produtos desperdiçados de forma irresponsável. Menos ainda as assimetrias e desigualdades sócias que implica essa forma de vida. O importante é que o “cliente, consumidor ou usuário” esteja satisfeito. O culto ao corpo e da celebridade, a proliferação das academias, a fascinação pelas luzes dos shoppings centers vão nessa direção. “Estar numa boa” é a regra. O resto... Cada um que se vire como pode!
Nos últimos anos, vem emergindo com força a expressão “bem viver”. Num primeiro momento, ela se contrapõe ao “viver bem” do consumo e desperdício ilimitado. São duas formas de encarar os bens que estão à nossa disposição. Mas não está descartado que o viver bem caminhe em direção ao bem viver. O diferencial aqui é o uso correto da ciência e da tecnologia. De fato, o bem viver não é uma forma necessariamente artesanal de vida, não é um recuo ao saudosismo pelo passado paradisíaco. No espírito do bem viver cabe uma nova maneira de usar os recursos tecnológicos a serviço de uma vida mais sóbria, frugal, responsável, solidária. Uma vida social, econômica, cultural, política e ecologicamente sustentável.
A tentativa, neste caso, é a de resgatar o saber das comunidades indígenas, negras, quilombolas e camponesas, no sentido de uma nova forma de conviver no planeta e cuidar das diversas formas de vida que sobre ele se reproduzem. O protagonismo do mercado é substituído por novas formas de produção e consumo. As iniciativas da economia solidária, por exemplo, ganham grande relevo. O que não exclui, vale insistir, o uso da tecnologia de ponta de uma forma menos privatizada e mais socializada. A pergunta fundamental se coloca nos seguintes termos: quem, como e para quem se produz? A partir da resposta a essa tríplice pergunta, todos os meios podem estar a serviço de um modelo político e econômico diferenciado do atual, um modelo sob o primado da justiça e dos direitos fundamentais da pessoa humana e da biodiversidade.
Duas apostas estão em jogo: de um lado, a construção de uma nova civilização, não no ritmo alucinado e devastador do capitalismo neoliberal, mas respeitando o ciclo natural e cadenciado da vida no planeta. Trata-se de uma nova relação com a Terra, devolvendo-lhe o direito de ser mãe de toda espécie de vida. De outro lado, os esforços para estabelecer novas relações nacionais e internacionais, uma espécie de “democracia global”, como o diz Bauman, uma vez que os Estados Nacionais esgotaram sua capacidade de gerenciar as decisões. Estas passam do âmbito nacional para o âmbito mundial. Daí a necessidade de novos instrumentos, novos mecanismos e novas formas de participação nas decisões globais.
5. Divórcio entre comunidade e rede
Na comunidade se desenvolvem relações “eu-tu”, mas, ao mesmo tempo, abertas ao “nós”. Diferentemente do gueto, onde as portas permanecem cerradas, a comunidade mantém-se fluída e permeável a novos integrantes. Não se fecha o trânsito entre os de dentro e dos de fora. Não se cria muros entre incluídos e excluídos. Tende a respeitar não somente a liberdade de expressão, mas também o direito de ir e vir. A comunidade é terreno fértil para a amizade, onde prevalecem laços sólidos, duradouros, familiares. A proximidade permite a linguagem da fala, do gesto e do toque – todas formas de comunicação de quem muita ama e muito sofre, de quem em sua trajetória acidentada passou por situações-limite.
A rede, ao contrário, tende a desenvolver laços tênues, provisórios, descartáveis. Amplia o raio das relações e troca mensagens a uma velocidade e distância espantosas. Mas tudo pode ser deletado em um segundo. Conectar-se e desconectar-se não tem maiores implicações de ordem ética ou moral. Comunicação entre máquinas, não entre seres humanos. Ganha-se e perde-se contatos às dezenas, centenas e até milhares, mas sem vínculos mais fundos. Sentimentos e emoções ficam de lado. Por isso é que romper com a comunidade implica cortar raízes profundas, traz dor e sofrimento, deixa um rasto de saudade; ao passo que romper com a rede não passa de um gesto mecânico, onde as conseqüências não afetam o íntimo da pessoa. Tudo se dá num nível de superficialidade que não mexe com as entranhas. Não há um rosto e uma família com quem devo me justificar. Basta deletar!
A proximidade das relações comunitárias contrasta com a distância das relações de ordem virtual. Também contrasta o grau de intimidade. No primeiro caso, a transparência é maior, há mais envolvimento pessoa a pessoa, cara a cara. Cresce certo desvelamento e nudez. No segundo caso, utilizam-se os modismos da informática, as últimas novidades da técnica, muitas vezes para fugir a um contato mais comprometedor. A própria linguagem das mensagens eletrônicas costuma ser mutilada, sugerida, poucas vezes aberta e explícita. Como se a pessoa se insinuasse, mas temesse revelar-se. A distância permite uma entrega apenas parcial, quando não um encerramento sobre si mesmo.
Mas não exageremos: as máquinas podem servir, também, para um intercâmbio interpessoal. Uma vez mais, a técnica em si não afasta a possibilidade de relacionamentos íntimos autênticos e profundos. O problema está no modo como se utiliza a Internet ou o celular, por exemplo. Como todas as ferramentas, a tecnologia é neutra. Tanto pode agregar como segregar as pessoas. Aos poucos, multiplicam-se casos de pessoas que se apaixonam e se unem através de tais meios, vivenciando experiências inovadoras, embora também se multipliquem as desilusões.
6. Divórcio entre o ser e a função
Numa “sociedade do espetáculo” (Guy Debord), com o placo profusamente iluminado de luzes e cores, já vimos como a perfomance adquire primazia sobre a história e a dignidade da pessoa humana. Esta se mede pelo que é capaz de produzir, fazer, consumir, aparentar. Além disso, no decorrer de um único dia, o indivíduo pode exercer funções múltiplas e diferenciadas. Troca de “máscara” como troca de roupa, de acordo com os compromissos assumidos. Ninguém se importa por seu nome, origem sentimentos, sonhos e projetos... Importa apenas que desempenhe bem o papel a que é chamado no teatro multifacetado da existência. Papel que, em não poucas vezes, pode entrar em conflito com as aspirações mais profundas do ser humano. Em lugar da transparência nas relações, a pessoa é facilmente levada a uma representação, o que incentiva a falsidade e a hipocrisia.
Associada às questões levantadas acima sobre o mundo do trabalho, o ser se fragmenta em mil facetas para dar conta das tarefas. Muitas vezes o jovem cultiva e se capacita para determinada inclinação, mas, das às exigências do mercado, é forçado a priorizar outro tipo de tarefa para a qual nem sempre está preparado. Vocação e profissão entram em conflito. Não é difícil encontrar profissionais liberais, com o curso e o diploma universitário completo, exercendo algum serviço que nunca lhe passou pela cabeça. No cenário caleidoscópico das oportunidades de trabalho, a função e o desempenho são as moedas que adquirem valor de troca. As necessidades do mercado impõem as “escolhas profissionais”. A quantidade se sobrepõe à qualidade.
Mais do que a traçar um projeto de vida e preparar-se para uma contribuição específica e qualificada na sociedade, o jovem que inicia no mercado de trabalho é chamado a buscar respostas imediatas para problemas imediatos. A capacidade de reflexão, que amadurece e faz crescer, tende a ser substituída por uma operacionalidade pontual e funcional. O protagonismo histórico dá lugar à figura do ator que, à luz de holofotes e ao som dos aplausos, trata de representar da melhor forma possível. As funções (no plural) vão tomando o lugar do ser (no singular). A singularidade, única e irrepetível, se dispersa na capacidade de desempenhar tarefas. Em síntese, a pessoa fragmentada em funções diversas e até contraditórias passa a funcionar como peça de reposição.
Resulta que o ser humano entra num processo crescente de cansaço e estresse. Não tanto pelo volume de atividades, mas por sua dispersividade. Como os raios de uma roda que giram sem eixo. Muitas tarefas, sem um núcleo centralizador que dê sentido ao corre-corre diário, aumentam os fatores de fadiga. Fragmentado em suas funções o ser pode descentrar-se e perder, ao mesmo tempo, o foco da própria existência, a serenidade e a paz. Retomar o centro significativo da vida costuma ser um processo lento e laborioso, uma reprogramação da ação humana.
7. Divórcio entre fé e religião
Um fenômeno já conhecido no universo católico foi recentemente descoberto também no universo do pentecostalismo das Igrejas autônomas. Segundo pesquisas realizadas recentemente, 14% dos que se denominam “crentes”, dizem acreditar em Deus, mas não querem saber da Igreja ou dos pastores. A fé sem as suas tradicionais mediações de ordem institucional vem crescendo em escala progressiva. Espiritualidade privatizada, individualizada, intimista, com pouco ou nenhum desdobramento sociopolítico. É um fenômeno que aumenta paralelamente à fé self-service: ou seja, no trânsito entre as várias denominações religiosas, a pessoa escolhe algo de cada uma, complementando com isso o seu cardápio espiritual. O pluralismo cultural e religioso que hoje se verifica em todo o mundo permite esse prato diversificado.
As pessoas têm fé, lutam desesperadamente para não perdê-la, buscam o transcendente pelos caminhos mais diversos. Mas dispensam a mediação dos representantes religiosos. Uma das características do universo pós-moderno é justamente o retorno do sagrado. Por toda parte se ouve “um rumor de anjos” (Peter Berger). Os deuses voltam ao palco da história com a mesma violência com que foram banidos no cenário do iluminismo moderno. Mas voltam como uma busca exotérica – espécie de hobby – e não associados a um compromisso coletivo. Instalam-se dentro dos indivíduos, mais do que no interior de comunidades socialmente ativas. Trata-se, não raro, de deuses alados e esvoaçantes, com receio de sujar os pés na lama das turbulências históricas. Deus que vivem num novo Olimpio grego, sem descer aos infernos do sofrimento humano.
“Eu me entendo com Deus e basta”, ouve-se dizer nas conversas do dia-a-dia. Há aqui, como pano de fundo, uma leitura fatalista da história, segundo a qual está não pode ser mudada pelas mãos humanas. “Só Deus pode dar um jeito!” Por outro lado, os programas da mídia, os enfeites dos shoppings centers, os títulos dos livros, a moda de certos movimentos de origem oriental – tudo isso demonstra a presença do sagrado. Mas é mínima a porcentagem dos que, mesmo atraídos por tais divindades, freqüentam regularmente uma Igreja. A fé se apresenta como uma espécie de visão de mundo que dá sentido à existência, um sentimento vago de organização frente ao caos e ao absurdo dos fatos. Conduz mais a uma fuga do mundo do que à sua transformação.
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