quarta-feira, 21 de setembro de 2011

Solidariedade com o Haiti: regar sementes para um renascimento

Miriela Fernández
ALBA-movimientos
Adital

Tradução: ADITAL

Entrevista com Sidevaldo Miranda, integrantes da Brigada Dessalines, do MST no Haiti e um dos coordenadores da estadia de 76 jovens haitianos por organizações do campo brasileiro.

Na Escola Nacional Florestan Fernandes, do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) culminou o intercâmbio que, durante um ano, realizaram jovens haitianos com organizações do campo brasileiro. Essa iniciativa, aprovada pela Via Campesina, ampliou o trabalho da Brigada Dessalines, criada pelo MST desde 2008 para regar em terra haitiana sementes de solidariedade.

Sidevaldo Miranda, participante na coordenação de ambas as experiências, contou a história e desafios desse processo, que se distancia dos recorrentes olhares assistenciais ao Haiti e alenta uma integração mais sólida entre os povos.

Como surge essa experiência de solidariedade do MST com o povo haitiano?

- Desde o início, o MST se propôs como estratégia a solidariedade internacional para reforçar a luta de classes e, dessa forma, ajudar a outros povos. Seguindo o exemplo de Cuba, hoje contamos com brigadas na Bolívia, no Paraguai, em Moçambique e, há cinco anos, também na Venezuela. Em 2008, enviamos a primeira brigada ao Haiti. A ideia surgiu no contexto da ocupação militar das Nações Unidas, em 2004, coordenada pelo Brasil.

O MST tem como princípio o rechaço a qualquer tipo de ocupação militar. Nesse sentido, defendemos a iniciativa de levar ao Haiti uma Brigada de solidariedade com os movimentos camponeses para apoiar em sua formação, o que concretizamos em 2008, com um grupo de quatro pessoas, encarregadas de conhecer a realidade haitiana ao longo de um ano. A partir do diagnóstico, veríamos como integrar nossas experiências no Brasil com a dos movimentos camponeses haitianos. Foi também uma maneira de dizer não à ocupação; de mostrar que o que o povo haitiano necessitava era a ajuda para construir mais autonomia no campo e melhorar a qualidade de vida nas zonas rurais e da sociedade em geral.

Que mudanças houve na concepção dessa estratégia após o terremoto de 10 de janeiro de 2010?

- Essa brigada que em 2008 teve o propósito de entender a realidade do país e dos movimentos camponeses, com o objetivo de contribuir na criação de um ponto de unidade entre essas organizações, de uma mais local até as de caráter nacional –um desafio do MST e da Via Campesina- se amplia após o terremoto. No dia 10 de abril de 2010, 30 pessoas a mais do MST chegaram ao Haiti para apoiar em áreas técnicas, na instalação de cisternas, na produção e no armazenamento de sementes, na reflorestação do país, no desenvolvimento da agroecologia.

Aprofundamos o processo formativo. Trabalhamos sobre o valor simbólico de instalar uma cisterna, que gera autossustentação e mais tempo para a luta, para a organização do movimento. Fazendo uma síntese, podemos dizer que algumas organizações haitianas foram perdendo autonomia devido às ONGs. Os militantes não recebem nada para manter-se em suas organizações e uma ONG paga um salário e os coloca em um escritório. Por isso, a brigada também trabalha no sentido de criar condições para a produção, levando em consideração que 60% da população do país é camponesa e carece de apoio econômico, inclusive de parte do Estado, para essa atividade. A maioria dos projetos destinados ao Haiti é assistencialista e tem um efeito midiático, pois se concentram em Porto Príncipe, na cidade, e não há muitas perspectivas de avanço para as áreas rurais.

A partir da Alba (Aliança Bolivariana para os Povos de Nossa América), a Venezuela, Cuba, a Via Campesina e o MST partilhamos a ideia de priorizar o campo, responsável por 40% da produção de alimentos para a população. Pretendemos reforçar a produção de arroz, também no Valle de Artibonite, pois foi destruída por importações dos Estados Unidos. Faremos vários esforços para conseguir recursos técnicos e ampliar e melhorar a produção própria do país.

O terremoto atraiu também uma remilitarização da nação. Como isso tem influído nesse contexto de trabalho da brigada, inclusive agora, quando o governo brasileiro maneja a possibilidade de retirar as tropas da chamada Missão das Nações Unidas para a Estabilização do Haiti (Minustah)?

- Em primeiro lugar, essas notícias são consideradas por nós como uma conquista. No Haiti, há tropas somente para o controle da população, o que urge à nação é infraestrutura (escolas, vias de acesso a determinados lugares, construção de casas...) e uma ocupação militar não resolve essas demandas.

Supostamente, os militares estão lá para a segurança; porém, que segurança pode existir quando o povo não tem o mínimo de infraestrutura?

Com o terremoto, morreram umas 300.00 pessoas. Um ano depois, em 10 de janeiro de 2011, somente haviam sido retirados 10% dos escombros das ruas de Porto Príncipe e, além disso, continua a política assistencial. Os militares não fazem nada no Haiti. A brigada chegou, como Cuba e Venezuela, que enviaram profissionais (médicos, engenheiros, professores) para contribuir com uma mudança estrutural porque as condições existentes oprimem, privilegiam a competição e a restrição dos direitos da população.

Nesse sentido, como foi planejada essa outra etapa do processo de apoio ao país caribenho que consistiu no intercâmbio de jovens haitianos com movimentos camponeses no Brasil?

- Quando nos reunimos com o propósito de redesenhar a estratégia de solidariedade ante as consequências do sismo, como Via Campesina-Brasil, pensamos também nos recursos humanos e em sua formação, e decidimos acolher aqui uma brigada haitiana. Em setembro de 2010, chegou esse grupo, integrado por 76 jovens de oito organizações e em representação de todos os Departamentos do Haiti.

Em primeiro lugar, passaram pela Escola Nacional Florestan Fernandes e daí se inseriram em nosso movimento e em outros da Via Campesina, em várias regiões do Brasil. A ideia foi que conhecessem a história dos movimentos camponeses, do MST, as lutas de base, os acampamentos, as áreas cooperativas, as escolas em zonas rurais. Depois dessa convivência, regressariam para a Florestan para intercambiar aprendizagens e as formas de continuar o trabalho no Haiti.

Quais têm sido os principais resultados?

- Para o MST, é a primeira experiência dessa dimensão. Houve muitas dificuldades; porém, foi muito proveitosa. O resultado foi algo bem concreto, uma complementação de nossa atuação no Haiti. Também aprendemos a interpretar melhor suas necessidades e, nesse sentido, buscar as formas mais eficazes de apoio aos movimentos camponeses haitianos, de maneira a que tenham mais poder.

Quanto aos jovens haitianos, para eles é uma experiência única. Estiveram durante um ano fora de seu país, convivendo com outros movimentos, vendo suas lutas, e em lugares diferentes. Além disso, aprenderam a falar outro idioma e isso também faz parte da integração que queremos. De fato, passaram pela Escola em duas ocasiões e em ambas acontecia o curso de Teoria Latino-americana, o que lhes permitiu partilhar com jovens de 22 países da região, que recebem essa formação.

Que novos desafios enfrenta a Brigada Dessalines com o regresso desses 76 jovens ao Haiti?

- As organizações haitianas ainda não têm uma linha de luta conjunta. São lutas locais, em cada região, algumas pelo salário mínimo, contra a empresa Monsanto; porém, não estão unidas para mudar a estrutura do país, para transformar um modelo político de especulação da pobreza, da miséria. Por exemplo, 60% do orçamento da nação provêm da ajuda internacional.

Para a Brigada Dessalines. Essa situação é um desafio. Devemos contribuir com a integração desses jovens às organizações, apesar de que sabemos que nem todos vão se incorporar. Porém, àqueles que conseguirem, ajudarão seus movimentos muito mais a partir das aprendizagens do intercâmbio.

Após esse longo processo de apoio ao povo haitiano, como o MST resignifica a solidariedade entre movimentos sociais?

- Para o MST, a solidariedade tem uma dimensão prática: partilhar com um movimento camponês o melhor que temos quanto à implementação de técnicas. Porém, isso é feito por muitos outros. A distinção está em mostrar o valor dessa infraestrutura, de ações como a reabertura de uma escola técnica para a formação de jovens, que, em seguida, p0oderão atuar em sua organização, em um país onde essas instalações foram fechadas pelo Estado e onde mais da metade da população não sabe nem ler e nem escrever.

Sabemos que não vamos conseguir mudar tudo; são mínimos os recursos; porém, levar do Brasil a experiência de produção de sementes naturais, oriundas de uma região; que não sejam importadas, é evitar mais dependência das grandes multinacionais e conseguir que os movimentos produzam de forma autônoma.

Em relação à reflorestação, pensávamos que era um processo simples e é bem mais complexo. 80% da energia haitiana se baseia no carvão vegetal; há pouco gás de cozinha. Por isso, incentivamos também as organizações para a transformação da estrutura energética. Tampouco conseguiremos uma melhoria se a estrutura agrária não mudar. Se a terra continua concentrada, em mãos de latifundiários, o camponês que trabalha em uma parcela e tem que sair não terá preocupação, não trabalhará de maneira cuidadosa a terra. Dessa forma, os bosques continuarão sendo desmatados.

Diante de todas essas questões, não é o suficiente ter um projeto técnico. Por isso, a Brigada Dessalines trabalha com outra dimensão da solidariedade, que é a mudança de sentidos, para transformar estruturalmente o país, para fortalecer a luta dos movimentos camponeses.

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