segunda-feira, 4 de abril de 2011

Ascese antropológica

Maria Clara Lucchetti Bingemer
Teóloga, professora e decana do Centro de Teologia e Ciências Humanas da PUC-Rio

Adital
Com o lema "A criação geme como em dores de parto”, extraído da carta aos Romanos, capítulo 8, versículo 22, a CNBB celebra este ano mais uma Campanha da Fraternidade voltada para o meio ambiente. Com a urgência que traz a questão ecológica, realmente nunca é demais fazer um momento longo de mentalização e concentração em torno desta temática. A conscientização da humanidade é essencial para toda forma de vida, inclusive a humana.

Chama nossa atenção desde o início o uso de uma imagem fundamentalmente humana para chamar a atenção para o sofrimento da natureza hoje. As dores de parto não são privilégio humano, é certo. Os animais, sobretudo os mamíferos, também as sofrem. Mas apenas os seres humanos têm consciência da dor e podem explicitá-la. Por isso, o livro do Genesis, ao querer explicitar o que seria consequência do pecado original, ao lado do suor e do esforço do trabalho, coloca as dores de parto que a mulher sentirá para dar ao mundo seus filhos. E não sem razão essas dores, esse processo, é igualmente chamado de "trabalho”. Quando uma mulher vai dar à luz, diz-se que entrou em "trabalho de parto”.

Além de chamar a atenção para o fato de que uma visão excessivamente antropocêntrica deu origem a este processo de desprezo e destruição da natureza sob o pretexto de que apenas o ser humano mereceria a atenção do Criador, creio ser oportuno aproveitar esta Quaresma – quando a Igreja recomenda ascese e penitência para corrigir vícios e desvios de conduta – para recomendar certa "ascese antropológica”. Em lugar de privar-nos de chocolate, bebidas alcoólicas, refrigerantes, carnes e que tais, por que não buscarmos uma maior disciplina no que diz respeito à nossa relação com a natureza?

Assim, gestos pequenos e cotidianos tais como: apagar as luzes, não usar inutilmente ar refrigerado, não desperdiçar água, não poluir o ambiente, fazer triagem do lixo etc. podem ser uma boa ascese para nós, filhos da civilização do plástico e do descarte irresponsável que resultou em boa parte na situação terrível que hoje vivemos e que já nos ameaça bem de perto. O aumento de catástrofes naturais como enchentes e terremotos dão bem conta de até que ponto a natureza se encontra e se sente agredida, e dá disso sinais potentes.

Pequenos gestos não excluem os grandes. Devemos também organizar protestos, manifestos, participar de grupos ecológicos; informar-nos cada dia mais e melhor sobre o problema. A literatura hoje é abundante e ninguém pode dizer que não tem fontes de pesquisa sobre este assunto tão atual e candente. Quanto mais informados estivermos, mais poderemos contribuir para criar uma consciência ecológica universal, tão necessária no momento em que vivemos. Talvez uma boa ascese seria, em lugar de ver novelas ou ler coisas inconsistentes e superficiais, dedicarmos um momento ao dia para uma boa leitura sobre ecologia, a fim de ver que ação transformadora poderíamos empreender, inventar ou em qual das que já existem engajar-nos.

Por fim, a motivação maior para esta ascese nossa seria o fato de sermos imagens do próprio Deus que, na origem dos tempos, "retirou-se” e "contraiu-se” em sua eternidade, a fim de que o mundo – ou seja, aquilo que não era Deus, - pudesse eclodir. Muitos autores judeus, dos quais o mais notável é sem dúvida Isaac Lurian, elaboraram sobre esta mística chamada do tzim-tzum, do encolhimento de Deus por amor à sua criação.

Imitadores que somos convidados a ser do próprio Deus, por parte de seu Filho Jesus, (cf. Mt 5, 48) que a misericordiosa e clemente "ascese divina” que nos permitiu ser e viver nos inspire a fim de que, por meio de uma responsável e consciente "ascese antropológica”, demos e cultivemos a vida em todas as suas dimensões neste planeta.

[Autora de "Simone Weil - A força e a fraqueza do amor” (Ed. Rocco).
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