sexta-feira, 17 de dezembro de 2010

MIGRAÇÕES: ÁGUAS QUE MOVEM MOINHOS

Pe. Alfredo J. Gonçalves, CS

[www.provinciasaopaulo.com]

Se a segunda metade do século XIX e as primeiras décadas do século XX, foi um período fortemente marcado por deslocamentos humanos de massa, a mobilidade humana hoje supera aquele período em número e em complexidade. Supera-o também quanto à diversidade de pessoas, povos e culturas que se põem em marcha. Enquanto a metáfora do trem levou Peter Gay a classificar o marco histórico que vai da rainha Vitória a Freud de “século do movimento”, o que dizer então de nossos dias! De fato, os movimentos atuais se aceleraram, se diversificaram e se complexificaram num ritmo sem precedentes e nas direções mais inusitadas. Uns falam de mudança ou transição de paradigma, de mudança de época e até de civilização; outros insistem no conceito de modernidade tardia ou pós-modernidade; alguns descobrem a sociedade líquida, o império do efêmero ou de falta de qualquer paradigma, onde prevaleceria o relativismo mais absoluto... Talvez o paradigma hodierno seja justamente a sede de novidade, aliada à velocidade das mudanças e ao fascínio pelo consumismo exacerbado.

Ainda citando o historiador Peter Gay, entre 1820 e 1920 nada menos do que 62 milhões de pessoas deixaram o velho continente europeu. Buscavam novas terras e novos horizontes nas Américas, na Austrália e na Nova Zelândia. A Revolução Industrial havia criado o trabalhado assalariado e desencadeado a grande mobilidade humana, primeiro do campo para a cidade e, num segundo momento, cruzando os oceanos. “Far l’America” do outro lado do atlântico, sina de milhões de italianos, era sinônimo de um futuro mais promissor no novo continente. Juventude e primavera se aliavam num misto de fuga e busca, de sonho e esperança, de luta e trabalho. O Eldorado americano atraía igualmente os ingleses, irlandeses, espanhóis, portugueses, alemães, entre outros.

A mobilidade atual, entretanto, além de mais grandiosa em termos quantitativos, também ganha um novo colorido. Estima-se em mais de 200 milhões as pessoas que residem fora do país em que nasceram. Número subestimado, se levarmos em conta as migrações subterrâneas, ocultas, feitas na clandestinidade. E mais subestimado ainda se computarmos os deslocamentos temporários, de caráter trabalhista, os movimentos intra-regionais ou no interior de cada país e, atualmente, os “migrantes ou refugiados climáticos”. Difícil o país que, de alguma forma, não esteja envolvido no vaivém de pessoas, seja como lugar de origem, de destino ou de trânsito, quando não tudo ao mesmo tempo. Novos rostos, antes confinados ao próprio território nacional, estão a caminho. A revolução tecnológica dos transportes, das comunicações e da informática faz do mundo a “aldeia global” que o era apenas potencialmente. Nas últimas décadas criaram-se condições históricas muito mais favoráveis ao deslocamento geográfico, incluindo a popularização do transporte aéreo.

Manuel Castells, Antonio Negri e Michael Hardt, entre outros estudiosos, podem nos guiar na compreensão de dois fenômenos indissociáveis: o avanço da economia globalizada, informatizada e em rede, por um lado, e o crescimento dos deslocamentos humanos e de sua variedade, por outro. De acordo com esses autores, a economia capitalista sofre um duplo movimento, aparentemente contraditório. De uma parte, verifica-se um movimento centrífugo na produção, em busca de matéria prima mais em conta e de mão-de-obra mais barata. Daí a preferência por unidades produtivas menores, mais leves e mais ágeis. Os gigantescos parques industriais, por exemplo, tornaram-se lerdos e obsoletos. Por outra parte, cresce um movimento centrípeto no poder de decisão. Expressam isso as fusões, incorporações e conglomerados na área financeira, industrial, comercial ou tecnológica. A partir de uma sede central e informatizada, localizada em qualquer lugar do planeta, é possível controlar a produção e a tomada de decisões. Paradoxalmente, o casamento desses dois movimentos somente é possível em virtude da revolução tecnológica, da nanotecnologia, da robotização e da informatização maciça dos dados em questão. Aboliu-se o tempo, o espaço e a noite: instalou-se a simultaneidade e a instantaneidade das informações, as quais voam de um canto a outro da terra com a velocidade de um toque na tecla do computador.

O mesmo binômio – movimento centrífugo e movimento centrípeto – pode ser aplicado ao fenômeno das migrações atuais. Há movimentos do centro para a periferia, de dentro para fora, particularmente de técnicos e especialistas, que acompanham a trajetória das inovações tecnológicas, das mercadorias e dos serviços em geral. E, inversamente, há movimentos da periferia para o centro, de fora para dentro, com destaque para os trabalhadores pobres do Terceiro Mundo, que buscam alternativas de vida ou de simples sobrevivência nos países que mais concentram as oportunidades em termos de postos de trabalho. Mais há, ainda, uma série de movimentos intermediários, voos de curto, médio e longo alcance, etapas ou trampolins para um futuro mais promissor. Na contramão desse jogo centrífugo e centrípeto ao mesmo tempo, ocorrem obliquamente os fluxos mais inesperados: migrações temporárias para safras agrícolas ou serviços domésticos, deslocamentos internos, êxodo rural, fugas provocadas pelas mudanças no meio ambiente, peregrinação religiosa, movimento de estudantes, entre tantos outros.

O fato é que, hoje mais do que nunca, os “mil rostos do outro” batem diariamente à nossa porta. Ou entram sorrateiramente em nossa sala pelos telejornais, revistas e periódicos. As grandes metrópoles, em especial, constituem palco desse desfile multicultural e pluriétnico. Traços, costumes e culturas diferentes se justapõem, se sobrepõem e se mesclam pelas ruas, praças e espaços públicos em geral. Essa presença cotidiana do “outro, estranho, diferente” é extremamente ambígua. Ela pode converter-se, simultaneamente, numa ameaça ou numa oportunidade, num problema ou num convite ao intercâmbio e ao enriquecimento mútuo. Contra o medo e a ameaça, nossas casas se transformam em fortalezas impenetráveis. Multiplicam-se muros, cercas e sofisticados sistemas de segurança. Condomínios fechados e apartamentos de luxo nos encerram e nos isolam em “gaiolas de ouro”. Engendra-se a cultura dos nossos, aqueles que estão do lado de cá dos muros, em contraposição aos outros, que se arrastam do lado de fora dos muros.

Mas o outro pode, igualmente, converter nossa casa numa tenda, aberta a quem bate e a quem passa. Tenda para o descanso e a recuperação das forças do peregrino. Se, no caso anterior, o fechamento cria guetos, aqui a abertura proporciona espaços comunitários. Numa palavra, o outro sempre interpela, ou como um perigo hostil de quem devo defender-me, ou como um convite à solidariedade e ao crescimento recíproco. Esse é, aliás, o terreno fértil e ambivalente onde se engendra a identidade. A chegada do outro obriga a rever minhas práticas e meus princípios, a incorporar e/ou rejeitar valores e contravalores. O dinamismo da cultura nasce e cresce nesse campo minado: preconceitos, discriminação, xenofobia e racismo se confundem e se misturam com aproximações, laços imprevistos e relações novas. Daí que a cultura não pode ser entendida como algo acabado, definitivo, e sim um processo onde cada ponto de chegada se converte em novo ponto de partida, cada pessoa e cada povo obrigam a novas interpretações. É neste sentido que a memória do passado, se não pode modificar os fatos sociais, modifica continuamente sua significação, dependendo do contexto atual em que é chamada a comparecer. Um rápido olhar às narrativas evangélicas mostra que um encontro profundo no presente pode resgatar uma vida inteira, por mais sinuosa e perturbadora que tenha sido sua trajetória, como é o caso da estrangeira samaritana, só para citar um exemplo (Jo 4,1-42).

A pergunta final que se pode levantar é a seguinte: que moinhos tendem a mover as águas dos fluxos migratórios atuais? Ou, em termos mais modernos, que turbinas põem em ação a força insuspeitada dessas correntes humanas em movimento? Explicitando, seus sonhos e esperanças, sua energia vital deverá ser cooptada, manipulada e servir como massa de manobra para a reprodução ampliada do capital? Ou, ao contrário, poderá cavar veredas novas no terreno contraditório da história, abrindo perspectivas históricas para a construção de uma sociedade justa, solidária e sustentável, do ponto de vista social e ecológico? A crise da modernidade não será um sulco no solo histórico, o qual, ao mesmo tempo que gera intensa mobilidade humana, faz dos migrantes sementes vivas e ativas, propensas a fecundar esse sulco com alternativas sociais, econômicas, políticas e culturais? Em tal perspectiva, os migrantes e as migrações aparecem como profetas de um amanhã renovado e recriado. Justamente por terem de atravessar o deserto escuro do não lugar – sem papéis nem raiz, sem pátria nem rumo – tendem a converter-se nos mensageiros privilegiados no novo lugar, ou se quisermos, do Reino de Deus.

Também neste caso, uma vez mais, a ambiguidade se faz presente. A experiência negativa de duras travessias tanto pode encerrar a pessoa num isolamento que lembra o berço ou o ventre materno (o retorno ao não ser), quanto projetá-la potencialmente para os desafios de novas fronteiras (o ser diferentemente). A crise ou a encruzilhada, num primeiro momento, costuma levar-nos ao colo materno. Num segundo momento, porém, ela deixa ali os fracos e lança os fortes para o futuro desconhecido, na busca incansável de novos horizontes. Diferentemente de outros animais, o ser humano se identifica como aquele que é capaz de superar-se a si mesmo. As correntes migratórias, fenômenos visíveis ou movimentos subterrâneos, podem ser canalizadas para movimentar as engrenagens e interesses da acumulação capitalista e neoliberal, sem dúvida, mas podem também mover os moinhos ou turbinas de uma transformação social mais profunda e radica. Essa é a esperança de quem crê, luta e caminha nas trajetórias dos migrantes ou nas pegadas do peregrino de Nazaré.

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