Sob críticas de organizações sociais e ex-presos políticos, o Plano Nacional dos Direitos Humanos (PNDH-3) teve sua redação final publicada depois de cinco meses de intensas disputas políticas. Ao final, os militares foram os maiores beneficiados. O governo eliminou a expressão “repressão ditatorial” do texto e renunciou à proposta de se alterar o nome das praças e logradouros públicos que homenageiam torturadores.
Em sintonia com o Poder Executivo, semanas antes o Supremo Tribunal Federal (STF) julgou improcedente a ação da Ordem dos Advogados do Brasil, que pedia a apuração dos crimes de lesa humanidade, praticados pelos agentes da repressão, durante a ditadura militar. A Corte entendeu que os crimes foram perdoados pela Lei de Anistia, de 1979.
A vice-presidente do Grupo Tortura Nunca Mais, professora Victória Grabois, teve o pai, esposo e irmão mortos na Guerrilha do Araguaia (entre 1972 e 1975). Ambos eram filiados ao Partido Comunista do Brasil (PC do B). Em entrevista à Radioagência NP, ela afirma que a Lei de Anistia foi feita para os opositores do regime que cometeram crimes políticos e não para os agentes do Estado.
Radioagência NP: Victória, chamar os crimes da ditadura de violações dos direitos humanos altera a essência dos atos de violência praticados?
Victória Grabois: O Estado pode praticar violações de direitos humanos, mas as pessoas físicas também podem. Na questão da época da tortura, precisamos conceituar bem. Era uma política do Estado brasileiro, uma política do Estado ditatorial. Claro que eles cometeram violações dos direitos humanos, mas foram violações do regime de exceção.
RNP: Qual a sua interpretação para a decisão do STF, que considerou perdoados, pela Lei da Anistia, os crimes cometidos por agentes da repressão militar?
VG: Crime conexo foi feito para quem cometeu crime político. Vou dar um exemplo. Eu, particularmente, cometi um crime político. Eu tinha uma outra identidade. Trabalhei e estudei com outra identidade. Enfim, cometi um crime de falsidade ideológica. Então, eu fui anistiada nos crimes conexos da lei de Anistia. Anistia não foi feita para agentes do Estado. Porque não podia se auto-anistiar. Eu não podia chegar lá e me auto-anistiar. Anistia não foi feita para os agentes do Estado. Isso não está escrito. Eles fizeram essa interpretação. Eu não considero uma interpretação, isso não é interpretação. A Lei da Anistia foi feita para os opositores do Regime Militar, de 1964 até 1985. Não foi feita para os torturadores e agentes do Estado.
RNP: Essa resistência em investigar os crimes ditatoriais é comum em outros países?
VG: “O Brasil é o país mais atrasado da América Latina em relação aos mortos e desaparecidos políticos durante regimes ditatoriais. Na Argentina, no Chile, no Uruguai, entre outros países, conseguiram vários avanços neste sentido e aqui estamos retrocedendo.”
RNP: Podemos considerar que as violações de direitos humanos cometidas atualmente por policiais são uma herança da ditadura?
VG: As polícias Militar e Civil reproduzem o modelo da época da ditadura militar porque sempre houve impunidade. No Brasil ninguém nunca é punido, um agente do Estado nunca é punido por ter cometido uma atrocidade, um crime de lesa-humanidade.
RNP: Os torturadores alegam que eles cumpriam ordens e, por isso, não devem ser responsabilizados. Isso procede?
VG: As pessoas que sujavam suas mãos ganhavam mais por isso. Ganhavam gratificação por torturar. Todos precisam ser punidos, mas os oficiais são os maiores responsáveis. O que precisa ficar claro, é que era uma política de Estado, não era coisa da cabeça dos generais. Era uma política do Estado. ‘Vamos torturar porque a tortura é o limite do ser humano. A gente tortura que ele fala’. Por que o exército não deixa abrir os arquivos da ditadura? Porque vai mostrar o que eles faziam. O Exército nos venceu aqui, mas não foi uma vitória militar. Foi uma vitória da tortura, da “deduragem”, do que havia de pior.
De São Paulo, da Radioagência NP, Jorge Américo.
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