quarta-feira, 22 de junho de 2011

Resenha MIGRAÇÕES NA ATUALIDADE – nº 82

EDITORIAL

Nos dias de hoje a humanidade alcançou uma profunda consciência quanto à inviolabilidade da dignidade humana. Todo ser humano, em princípio, é considerado sujeito de direitos. Práticas desumanas e hediondas, outrora toleradas, hoje despertam a indignação da maioria da população mundial. No entanto, apesar desses evidentes avanços, no começo deste terceiro milênio deparamo-nos com um contexto que beira a esquizofrenia: a consciência da dignidade inviolável de cada ser humano coexiste com um processo de reificação do mesmo.

Não raramente a pessoa é equiparada a um objeto a ser explorado e manipulado, vendido e comprado. Torna-se uma mercadoria, que adquire valor de acordo com as leis de mercado. Pobres e excluídos são freqüentemente considerados apenas seres descartáveis, inúteis, ―massa sobrante‖, pois não se inserem no mundo do mercado como produtores ou consumidores. No entanto, assumem valor na medida em que se transformam em bens de consumo e de troca. Um caso paradigmático desta situação é justamente o tráfico de seres humanos para fins de exploração sexual, trabalho forçado e tráfico de órgãos.

O Trabalho forçado é entendido como o trabalho degradante que envolve privação da liberdade, seja esta por dívida, impossibilidade de saída ou fuga ou por ameaças à vida. Tal temática faz interface com a das migrações, haja vista que a migração forçada ou induzida por falsas promessas é uma das possíveis motivações que levam os trabalhadores a migrar.

Há ainda o trabalho em condições análogas à escravidão em áreas urbanas, sendo que esta envolve também os estrangeiros, como no caso dos migrantes latino-americanos inseridos nas confecções de roupa em São Paulo. A migração internacional ao se inserir no contexto do trabalho forçado tem ainda um diferencial: é comum que envolva migrantes que não possuam documentos e que tenham pouco domínio do idioma, o que configura, assim, um quadro de maior vulnerabilidade e exposição para o trabalho forçado.

Nesse sentido, a temática do tráfico de seres humanos, não se insere somente no âmbito de uma ação criminosa perpetrada apenas por um restrito número de criminosos internacionais. Os rumos do tráfico de pessoas alcançam grande parte do tecido social das sociedades contemporâneas.

As organizações criminosas, sem dúvida, desenvolvem um papel central na gênese do tráfico de pessoas, atuando tanto no aliciamento, quanto na exploração. Elas são atraídas, sobretudo, pela alta rentabilidade dessa prática e, inclusive, pelas articulações que podem ser criadas entre tráfico de pessoas, de drogas e de armas. Como afirma Alessandro Calvani, num artigo desta resenha, ―o capital vai onde é mais remunerado, onde as ações valorizam mais depressa e com menos riscos‖. Sem dúvida, faz-se necessário adotar legislações que apliquem duras sanções contra os envolvidos com essas máfias.

Por outro lado, sem menosprezar a necessidade do rigoroso combate ao crime organizado, acreditamos que isso não seja suficiente para a solução do problema. Com efeito, as organizações criminosas exploram determinados fatores propícios existentes tanto nos países de origem das vítimas quanto naqueles de chegada. Por exemplo, só pode existir o tráfico de mulheres e crianças para fins de exploração sexual em presença de compradores. Em outras palavras, é a demanda de corpos de mulheres e crianças na indústria sexual que garante a lucratividade das redes mafiosas. Até quando houver demanda de corpos sempre haverá tráfico de seres humanos.
Como sustenta Irmã Eugenia Bonetti, na atualidade, com frequência ―a mulher é considerada apenas pela beleza e o aspecto exterior de seu corpo‖ que, por vezes, é tido apenas como um ―objeto ou instrumento de prazer, de consumo e de renda‖. Essa espraiada coisificação da mulher adquire um papel fundamental na difusão capilar do tráfico – e inclusive da indiferença de amplos setores da sociedade.

É importante ressaltar também como o tráfico de pessoas atua mediante uma rede hierárquica, repleta de intermediários, em que há numerosas pessoas envolvidas, direta ou indiretamente. Donos de boates, albergues e motéis, taxistas, motoristas, guias turísticos, garçons, funcionários de cartórios, entre outros, fazem parte dessa rede, ainda que, por vezes, de forma epidérmica, mas, nem por isso, menos determinante no êxito da prática criminosa. Dar uma simples informação a um turista torna o taxista uma peça decisiva.

Faz-se necessário, portanto, conscientizar e responsabilizar os setores da sociedade mais próximos à prática do tráfico para que com as próprias ações ou omissões não alimentem as redes criminosas. Pode-se pensar, inclusive, em organizar formas de boicote daqueles hotéis ou boates envolvidos no tráfico.

Finalmente, é mister realçar que as organizações de cunho mafioso, além de responder às demandas dos países de chegada, exploram também as dramáticas condições de vida que assolam as populações dos países ou, no caso de tráfico interno, das regiões mais pobres. As falsas promessas dos aliciadores encontram terreno fértil nos países e nas classes sociais que mais sofrem pela falta de oportunidades e perspectivas para o futuro. Fica evidente, portanto, que a questão do tráfico humano não pode ser abordada separadamente do aumento das desigualdades sociais, do gradativo empobrecimento de numerosos países, sobretudo no hemisfério Sul e, mais em geral, da questão migratória internacional.

CSEM - Centro Scalabriniano de Estudos Migratórios

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