MIGRAÇÃO, MUDANÇAS CLIMÁTICAS E O FANTASMA DO MALTHUSIANISMO
Terminado o tempo da quaresma e da Campanha da Fraternidade (CF) promovida pela Igreja Católica no Brasil, o tema de reflexão “Fraternidade e mudanças climáticas” tende a ficar em segundo plano. Porém, como acontece com outros temas da CF, a campanha passa, mas a relevância da sua temática não sai da ordem do dia. Ainda mais quando se trata de um tema que apela para impactos tão gigantescos quanto desconhecidos: um complexo de problemas que freqüentará com vigor crescente a agenda global, apontando para o que as Pastorais Sociais vem designando como uma “crise civilizacional”. Isso considerado, o alerta dado pela CF soou fraco, ou simplesmente como mais uma campanha em prol da ecologia. Prova disso é que, apesar de todo esforço em contrário, as figuras políticas que nos representam, no legislativo e no executivo federal, continuam aprovando e sustentando um novo Código Florestal leniente com o desmatamento, ou uma política energética que não se inibe em devassar os confins da Amazônia e do Pantanal.
Essa constatação só reforça a percepção de que, mesmo entre aqueles mais conscientes dos possíveis impactos sociais e ambientais das mudanças climáticas, seja no meio governamental, seja em vários segmentos organizados da sociedade civil, apenas estamos tocando na superfície do problema. Isso é particularmente verdadeiro quando se trata dos impactos das mudanças climáticas no que diz respeito à mobilidade humana. Entre os movimentos sociais atuantes no combate aos efeitos das mudanças climáticas ainda não se tem uma noção clara do significado dos deslocamentos ambientais. Em geral, quando se toca no assunto, o que predomina é uma sensação de alarmismo, muito inflada pelos números que vem sendo especulados: de 200 milhões e a um bilhão de pessoas, no mundo todo, nas próximas décadas seriam mobilizadas forçadamente devido aos efeitos do aquecimento global. Quando a questão surgiu no II Simpósio Mudanças Climáticas e Justiça Social, realizado em Luiziânia, de 14 a 16 de março deste ano, reunindo vários representantes do movimento social de todo Brasil, alguns casos genéricos foram levantados nesse tom de denúncia, como exemplos de suas conseqüências catastróficas. Sem negar a gravidade das projeções, nem contestar sua possível fundamentação científica, o que predominou foi uma visão extremamente negativa das migrações, e uma imagem do migrante como vítima passiva dos eventos provocados pelas mudanças climáticas. Ou ainda, quando se trata da relação entre os grandes projetos e as migrações, como ficou evidente no Seminário sobre “Grandes Obras e Migração”, realizado em São Paulo, dia 13 de maio, os estudiosos percebem melhor o deslocamento forçado das populações tradicionais, organizados em torno do Movimento de Atingidos por Barragens. No entanto, eles mesmos reconhecem a dificuldade em conhecer a população atraída pelos projetos de desenvolvimento: proporcionalmente muito maior, já desenraizada, culturalmente totalmente desvinculada com o meio ambiente atingido... Portanto, potencialmente conivente com a devastação realizada pela grande obra. Em todo caso, o conhecimento sobre a relação entre migração e meio ambiente permanece insuficiente.
E, no entanto, os mútuos impactos entre intervenção do homem na natureza, deslocamentos humanos, mudanças climáticas estão se tornando cada vez mais evidentes. Mais: os últimos anos têm demonstrado como os eventos climáticos extremos vêm antecipando as piores expectativas prenunciadas pelo relatório IPCC (Intergovernmental Panel on Climate Change). Os três tipos de ocorrências provocadas pelo aquecimento global – tornados, chuvas torrenciais, inundações; seca e desertificação; elevação do nível do mar – vêm ocorrendo com mais freqüência e mais intensidade, pesando fortemente entre os fatores que proporcionam a migração. Desses, aqueles que mais impressionam, são os provocados pelos chamados eventos climáticos extremos: inundações, enchentes, tornados, secas prolongadas. Se a desertificação ou o derretimento das geleiras são fatores que pesam crescentemente na decisão de migrar, como acontece no norte do México ou no Altiplano Andino (Bolívia e Peru), são as conseqüências das chuvas torrenciais que vem chocando mais diretamente a opinião pública, revelando com mais clareza que o clima está mudando. No Brasil, o ponto mais crítico da onda de eventos climáticos extremos dos últimos anos, predominantemente na zona litorânea, aconteceu em janeiro, atingindo a Região Serrana do Rio de Janeiro (Nova Friburgo, Petrópolis, Teresópolis). Contados mais de 900 mortos, milhares de famílias desabrigadas, bairros inteiros devastados, fica a pergunta para quem sobreviveu: para onde ir? A falta de respostas indica a gravidade do problema implícito: a questão da moradia. Revela, por um lado, uma história de ocupação desordenada do solo urbano, avançando sobre uma região da natureza extremamente frágil à ação humana. E por outro, a pergunta “para onde ir?”, que aflige antigos moradores e pressiona a autoridade pública, interroga sobre o futuro da população atingida. Em todo caso, a problemática de fundo relaciona eventos climáticos extremos à mobilidade humana.
Mudança de cenário. Incalculavelmente mais grave, as chuvas torrenciais ocorridas em meados de 2010 no Paquistão atingiram cerca de um quinto do território do país, envolvendo em torno de 20 milhões de pessoas, causando cerca de duas mil mortes, destruindo vilarejos inteiros e fragilizando ainda mais a situação econômica e política do país. Tanto mais grave que, além de exigir uma intervenção governamental para proteger as populações atingidas, pressionadas pelos especuladores de terra, vem somar-se à situação de extrema carência, e politicamente explosiva, dos refugiados afegãos do noroeste do país, que junto aos deslocados internos do próprio Afeganistão, formam uma população deslocada de mais de dois milhões de pessoas. O que as chuvas torrenciais no Paquistão e no Brasil têm em comum, além de ser um evento climático extremo ao lado de outros se sucedendo em todos os continentes, é colocar uma massa de população evacuada frente à mesma questão: “para onde ir?”. São situações que se podem caracterizar como uma “crise humanitária”. Elas nos mostram ademais no que se assemelham os que buscam refúgio devido à perseguição política ou medo de massacres, e aqueles que se deslocam repentinamente devido a tais eventos climáticos extremos. De fato, a questão dos refugiados nas últimas décadas tem tomado cada vez mais a configuração de crise humanitária. E, se existe uma motivação forte na resistência ao emprego do termo de “refugiado climático” (além do esvaziamento da já esvaziada conotação política da acepção corrente de “refugiado”), é que as organizações internacionais possuem um orçamento já escasso para atender as populações que fogem de guerras e perseguições, impossibilitando o atendimento dos flagelados das catástrofes climáticas.
Porém, o problema continua na pauta das grandes organizações internacionais, devido à sua expansão e gravidade cada vez maior. O caso do conflito recente na Libia e a fuga em massa de refugiados para a ilha de Lampedusa, na busca de entrar no continente europeu, é um dos exemplos mais patentes. Tão inesperado quanto devastador, o conflito deflagrado na Líbia a partir de março levou milhares de pessoas a se refugiarem na fronteira da Tunísia e do Egito. Rapidamente se formaram campos para refugiados extremamente precários. Essa massa de população, ao lado de outros imigrantes que já esperavam atravessar o Mediterrâneo, foi fortemente pressionada a embarcar em direção a Lampedusa, levando a crise humanitária que atingia as fronteiras do Maghreb até as portas da Europa. Conflito repentino e extremo, de maneira similar a um evento climático extremo, a crise dos refugiados de Lampedusa escancara uma ocorrência que tende a se tornar mais corriqueira: uma massa de população deslocada clamando pelas imagens da televisão, “para onde ir?”
A crise recente dos refugiados de Lampedusa serve de ilustração sobre as repercussões de um aumento da freqüência das crises humanitárias. Ajuda a pensar no significado de um previsível crescimento dos deslocados induzidos pelas mudanças climáticas. Sobre o pano de fundo do debate em que se desenrolam as questões ligadas à mudança climática e a mobilidade humana por ela desencadeada, surge então uma questão mais difícil, intrinsecamente política, a do controle populacional e da ocupação do território. No mundo regido pela globalização, cada crise humanitária, envolvendo pessoas refugiadas, aponta para uma crise no equilíbrio global entre população e ocupação de território. Assim, a rapidez com que as piores previsões sobre o aquecimento global vêm se confirmando têm levado, em primeiro lugar, a avançar a proposta de medidas não apenas preventivas, mas que buscam estabelecer estratégias de adaptação à nova realidade. Em segundo lugar, existe uma reproposição das questões que não dizem apenas respeito à preservação de meio ambiente, ou à busca de novas formas de eficiência energética ou de produção industrial, mas que questionam as dinâmicas de população, as migrações forçadas, a segurança alimentar, a garantia de moradia e meios de sobrevivência, a saúde pública, a educação, enfim, o respeito aos direitos fundamentais. Como pode ser pensado a mobilidade humana e os direitos dos migrantes nesse contexto?
Na busca de sair do alarmismo no que se refere à relação das mudanças climáticas e a mobilidade humana, percebemos como em tudo ainda somos assombrados pelo fantasma do malthusianismo. Malthus era um economista que ficou conhecido por fazer previsões alarmistas no século XIX sobre o crescimento demográfico, que ocorreria numa escala geométrica, frente a uma produção de alimentos, cujo aumento seria num ritmo apenas aritmético. Malthus pregava a necessidade do controle populacional para evitar a fome e se garantir o bem estar social. Desde então, as previsões malthusianas não cansaram de ser contestadas, seja pelo avanço científico e tecnológico no aumento extraordinário da produção de alimentos e toda sorte de bens de consumo, seja pela eficácia de políticas de controle populacional, além de progressos na mesma ciência e nas mudanças comportamentais, difundindo o controle da natalidade. No entanto, idéias malthusianas vêm sempre acompanhando a alardeada necessidade de se controlar a população dos países do Terceiro Mundo, para erradicar a fome, as doenças e controlar a pobreza. E eis que agora a sombra do malthusianismo ressurge sob nova forma. Reaparece na preocupação com o controle da circulação dos pobres, espalhando o alarmismo quanto ao descontrole de deslocamentos humanos devido ao aquecimento global. Isso porque, talvez, Malthus tenha colocado um problema estrutural do desenvolvimento do capitalismo (e da globalização, sua nova face): o do equilíbrio entre um crescimento (ou movimento) demográfico incessante e uma disponibilidade limitada de recursos naturais.
Esse equilíbrio parece ser colocado em cheque de maneira nova pelas previsões correntes dos efeitos do aquecimento global. De um lado, em tempos de globalização, com uma produção extraordinária de mercadorias, os progressos das políticas de controle populacional vêm revelando suas contradições: a perspectiva de envelhecimento da população, agora não apenas nos países do Primeiro Mundo, as dificuldades de financiamento da Previdência Social e de outros serviços públicos numa sociedade de massa. Essa perspectiva se soma ao fato que, com as previsões do aquecimento global se confirmando (elevação do nível do mar, desertificação) a ocupação do território sofrerá novos condicionamentos, criando pressões sobre a demanda por moradia e a disponibilidade de recursos. Em outros termos, a interação entre aquecimento global e deterioração do meio ambiente deverá elevar a pressão demográfica sobre a ocupação do território e a expansão ou manutenção da disponibilidade de recursos ou meios de sobrevivência. Por outro lado, os progressos da técnica e da ciência que permitiram contestar as previsões do malthusianismo, paradoxalmente parecem estar na raiz das causas que estão provocando o aquecimento global e o conseqüente comprometimento da exploração de recursos naturais, em particular para a produção energética em escala industrial. O problema não estaria na ciência em si, o na técnica que operacionaliza esse conhecimento em função do mercado: é a própria sociedade capitalista de massa, na sua espiral de consumo, que se sustenta num modelo de vida que parece estar levando os recursos do globo terrestre ao seu esgotamento.
O alarmismo apela evidentemente para medidas de segurança. As previsões dos deslocamentos humanos provocados pelo aquecimento global, insufladas pelo fantasma do malthusianismo, na sua ânsia por controle populacional e domínio do território e seus recursos naturais, não podem ver a migração e os migrantes se não de maneira negativa. Entretanto, a migração para os migrantes, na verdade, nunca foi problema, mas sempre busca de solução, estratégia de sobrevivência. É desta maneira que as próprias entidades internacionais começam a cogitar, como forma de adaptação aos efeitos das mudanças climáticas que já estão ocorrendo, o apelo a esse recurso tradicional usado por diferentes povos como estratégia de sobrevivência frente a situações de escassez de recursos: as migrações sazonais e temporárias. Ver a migração como recurso e não como problema seria um primeiro passo, a condição de que sejam reconhecidos aos migrantes os seus direitos fundamentais. Nesse sentido, o pensamento político corrente teria que ir muito além de sua fixação no domínio do território ou nas políticas de controle populacional. O que sempre permaneceu em jogo, mesmo no âmbito das previsões catastróficas das mudanças climáticas, é a questão da cidadania dos migrantes, sejam eles solicitantes de refugio político, migrantes em busca de trabalho ou deslocados ambientais.
Assim, observando bem, as mudanças climáticas e a questão dos deslocados ambientais apenas trazem à baila a perspectiva do acirramento de problemas já conhecidos, e que os migrantes e suas entidades de representação continuam obrigados a enfrentar. O “para onde ir?” é a questão recorrente que remete à ocupação do território, ao direito de se deslocar, de ter acesso à moradia, aos meios de sobrevivência, à saúde e educação, à possibilidade mínima do exercício da cidadania. O que a globalização, e as condições novas criadas pelo aquecimento global colocam na ordem do dia, é a possibilidade de que o território se torne mais exíguo, os recursos mais escassos, os grupos humanos mais próximos, a justiça mais exigente e a convivência intercultural uma pauta obrigatória. Talvez se consiga propor à consciência de cada um a obrigatoriedade de se repensar o modo de viver, de maneira mais austera e mais respeitosa com o meio ambiente, em vista de um mundo comum para todos. E que aquele que vem de fora não seja visto como um estranho, ou um usurpador, mas simplesmente alguém que, como nós, está submetido às mesmas condições de vida.
Pe. Sidnei Marco Dornelas CS
Assessor do Setor Pastoral da Mobilidade Humana – CNBB – Fonte NIEM
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