Sexta-feira, 17 de junho de 2011 - 16h58min
por Marcelo Schneider/ALC
Ao chegar em Genebra, em 1978, a advogada brasileira Eny Moreira apresentou ao representante do Conselho Mundial de Igrejas (CMI), Chuck Harper, a ideia de organizar um arquivo com cópias feitas em segredo dos autos da ditadura militar no Brasil. O interesse estava despertado: "Isso é possível? Podemos mesmo fazê-lo? – perguntou Harper. Eny respondeu: “Sim, mas precisamos de apoio para o que o reverendo Jaime Wright e dom Paulo Evaristo Arns estão fazendo.”
Naquele dia começava o envolvimento do CMI em um dos esforços coletivos mais complexos de resgate da verdade e da dignidade de centenas de pessoas que sofreram abusos de um regime ditatorial. Parte desses esforços culminou na tarde de 14 de junho, em São Paulo (SP), no evento público de repatriação de documentos e microfilmes mantidos a salvo no exterior pelo CMI, na Suíça, e pelo Center of Research Libraries (CRL), nos EUA. Os documentos foram entregues às autoridades brasileiras para serem disponibilizados, no prazo de um ano, para consulta pública de qualquer cidadão através da Internet, sob o nome Brasil: Nunca Mais Digit@l.
Os documentos entregues foram a base do projeto Brasil: Nunca Mais, desenvolvido clandestinamente por Dom Paulo Evaristo Arns e pelo pastor presbiteriano Jaime Wright e uma equipe, durante o período final da Ditadura Militar (1979 e 1985). O relatório final traz informações de mais de 1.000.000 de páginas contidas em 707 processos do Superior Tribunal Militar (STM), cobrindo um período que vai de 1961 a 1979 e revelando a extensão da repressão política no Brasil.
Por mais de quatro horas, 200 participantes reuniram-se no auditório da Procuradoria Regional da República – 3ª Região para ouvir 19 oradores representando autoridades públicas, membros de órgãos governamentais, representantes de igrejas e de diversas esferas do processo de cooperação multilateral que marcou o projeto Brasil: Nunca Mais.
O ex-funcionário do CMI, Anivaldo Padilha, da Igreja Metodista do Brasil e hoje colaborador de Koinonia – Aliança ACT, compartilhou detalhes das agressões que sofreu ao ser preso em 27 de fevereiro de 1970. Após sua libertação, ele foi exilado e forçado a viver longe de sua esposa, que à época estava grávida. Padilha só veio a conhecer o filho depois da lei da Anistia, quando este já tinha oito anos de idade.
Eliana Rolemberg, presa no mesmo dia, era amiga de Padilha. Ela expressou seu sentimento de repulsa em relação aos abusos sofridos nas mãos de seus opressores, destacando a realidade duplamente desesperadora que enfrentava: de um lado, havia o constante medo das ameaças envolvendo sua filha, ainda bebê; de outro, a dor de ver e escutar seus amigos serem torturados. "De uma forma muito conflituosa, é mais fácil a gente ser torturada do que ver quem a gente ama sofrer esse tipo de abuso", disse. Eliana é diretora-executiva de outra organização da Aliança ACT no Brasil, a Coordenadoria Ecumênica de Serviço (CESE).
Brasil: Nunca Mais Digit@l está sendo lançado em um momento em que a sociedade brasileira discute a criação de uma Comissão da Verdade para revisar violações dos Direitos Humanos praticados, no passado, pelo Estado.
Um dos palestrantes do evento, o presidente da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) do Rio de Janeiro, Wadih Damous, disse que o se procura hoje com a formação de uma Comissão da Verdade é trazer à tona uma luta que não prevê vingança, mas justiça. "O direito que perseguimos é o de ver aqueles que cometeram esses crimes responderem no banco dos réus pelo que fizeram. A impunidade dos autores do passado é uma mensagem clara para aqueles que cometem a tortura hoje. As vítimas da tortura no Brasil, hoje, não são mais ativistas políticos, mas os afrodescendentes, os indígenas, as crianças e todos os excluídos", alertou.
O presidentes do Conselho Nacional de Igrejas Cristãs (CONIC), dom Manoel João Francisco, e o presidente do Conselho Latino-Americano de Igrejas (CLAI), bispo anglicano panamenho Julio Murray, também tiveram a oportunidade de saudar o público presente.
Murray integrou a Comissão da Verdade do Panamá, que lidou com casos de abusos cometidos entre 1964 e 1994. Ele sublinhou o aspecto da cura que uma comissão desta natureza pode trazer: "No meio da morte e da tragédia também vemos sementes de esperança através de nossa inconformidade e mobilização", afirmou.
Referindo-se ao papel do CMI no projeto "Brasil: Nunca Mais", o procurador-geral da República, Roberto Monteiro Gurgel Santos, expressou gratidão ao organismo ecumênico internacional por ter somado esforços cruciais para a defesa e conservação do patrimônio público e de um importante capítulo da história brasileira.
Em seu discurso, o secretário geral do CMI, pastor Olav Fykse Tveit, agradeceu a todos os envolvidos nesse processo, ao mencionar os nomes de Eny Moreira, dom Paulo Evaristo Arns e do presbiteriano Jaime Wright, que trabalharam intensamente para articular o processo de cópia dos documentos em segredo e mantê-lo seguros.
Também lembrou Charles R. Harper, que atuou no CMI, de 1973 a 1992, como diretor executivo para questões de Direitos Humanos na América Latina. Harper, que vive, atualmente no Sul da França, não pôde comparecer ao evento, mas foi representado por sua neta, Nina Harper.
Ao saudar o procurador regional da República, Marlon Weichert, que trabalhou estreitamente com o CMI e o CRL preparando a transferência da documentação para o Brasil, Tveit afirmou que o evento foi além das expectativas. "Isso realmente mostrou o valor do que nós mantivemos em nossos arquivos e como é importante compartilhar a história e a realidade do que aconteceu. Também é importante ver o que acontece quando trabalhamos juntos. Os momentos que experimentamos, hoje, mostraram claramente o papel que o movimento ecumênico desempenha neste tema, oferecendo apoio e também uma estrutura para que projetos se tornem realidade", disse.
A advogada Eny Moreira foi uma das homenageadas pela Procuradoria Geral da República por seu envolvimento no projeto. Ao agradecer a homenagem, Moreira lembrou dos companheiros de caminhada e destacou o sentimento de solidariedade silenciosa dos envolvidos no trabalho.
Após o evento, o moderador do Comitê Central do CMI, pastor luterano Walter Altmann, expressou seus sentimentos, como brasileiro e como membro da liderança do organismo ecumênico. "Fiquei pelos fortes e dolorosos testemunhos que ouvimos, assim como pelos compromissos que queremos continuar a honrar. É um marco importante para o povo e a nação brasileira. Estou realmente orgulhoso do papel que o CMI desempenhou e continua a desempenhar através de sua secretaria geral e pelo trabalho das igrejas-membro no Brasil”, afirmou.
A delegação do CMI segue em São Paulo pelo resto da semana acompanhando o econtro de famílias confessionais do CLAI e visitando iniciativas de igrejas-membro do CMI no Brasil. No último dia da visita ao Brasil, dia 19, Tveit irá pregar em culto ecumênico, a ser realizado às 10:45 na Primeira Igreja Presbiteriana Independente de São Paulo.
http://www.cebi.org.br/noticia.php?secaoId=1¬iciaId=2114
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