Dom Demétrio Valentini *
Adital -
Como sabemos, a páscoa remonta a tradições ancestrais. Seu primeiro contexto estava ligado à natureza. Celebrava o triunfo da vida, vencidas as ameaças do inverno ou da estiagem, quando parecia que a vida iria sucumbir. A exuberância da primavera, ou a estação das chuvas, revertiam o quadro, e a vida retomava sua forma exuberante e esplêndida.
Deste primeiro contexto, guardamos até hoje o ritmo anual da páscoa, estreitamente ligado às condições da vida em nosso planeta terra. Quer queiramos ou não, a vida está associada ao planeta em que nos encontramos.
A segunda expressão da páscoa é fruto da experiência do povo de Israel. Ele teve a intuição de associar sua saída do Egito, onde a vida estava sendo sufocada, exatamente num momento de celebração da páscoa natural.
Desta maneira, a páscoa passou a ter dimensão histórica. Introduziu a tremenda suposição de que, a partir de então, a vida depende da intervenção humana que sobre ela exercemos.
A terceira expressão da páscoa é a mais profunda, e a que melhor recolhe as duas anteriores. É a celebração da páscoa a partir da tradição cristã. Seria um assunto inesgotável analisar com a atenção que merece a providência de Cristo, de inserir o testemunho de sua vida no contexto da celebração pascal dos judeus.
Impressiona ver como ele tinha consciência de que, como profeta, "não podia morrer fora de Jerusalém", nem antes da hora, nem por motivos fúteis de episódios desconexos e circunstanciais. Ele queria colocar sua vida bem no cerne da dinâmica da história humana. Escolheu a páscoa para o confronto final, que lhe possibilitou dar seu testemunho definitivo em favor da vida plena e verdadeira.
Não há fato mais surpreendente, do que ver a Igreja surgindo com Cristo do sepulcro onde seu corpo tinha sido depositado. A Igreja é essencialmente pascal. Por isto, quanto mais batem nela, e tentam sufocá-la ou inviabilizá-la, mais ela revela a força da vida, a serviço da qual foi convocada por Cristo, e incumbida de religar continuamente a história humana ao nascedouro da vida nova. "Façam isto em memória de mim".
Esta providência de instituir uma "nova e eterna" páscoa, no momento da celebração da páscoa antiga, foi a ação mais estratégica e mais radical de Cristo. Ele que tinha dito "não ser deste mundo", sabia captar mais do que ninguém a dinâmica deste mundo, e nela inserir a esperança de uma vida para além deste mundo.
Sem perder a centralidade cristã da páscoa, nos dias de hoje nos damos conta da validade permanente da primeira dimensão pascal. A natureza continua seu processo vital, com sucessivos ciclos de mortes e ressurgimentos. Para entender o que se passa hoje com as preocupantes mudanças climáticas, precisamos de um recuo de milhões de anos. A contribuição dos geólogos é muito preciosa para perceber a trajetória da vida em nosso planeta. Sem recorrer a muitos dados, basta o mais evidente. O desaparecimento dos dinossauros, que dominaram o planeta por mais de cem milhões de anos, serve de alerta para a nossa espécie humana. Para permanecer viva, a terra é capaz de se desfazer de espécies inteiras, se passam a agir contra o senso da vida.
Mas como a páscoa nos ensina que a vida no planeta passou a depender também da ação histórica da humanidade, que pode se tornar a expressão consciente da própria natureza, ainda é tempo de sintonizar melhor nossa ação humana com a dinâmica da vida.
De tal modo que a páscoa pode comportar a mística cristã, renovar nossa consciência histórica, e despertar nossa sintonia com a natureza.
Assim todos podemos ter uma boa páscoa!
(www.diocesedejales.org.br)
* Bispo de Jales (SP) e Presidente da Cáritas Brasileira
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