sábado, 19 de setembro de 2009

A CARTA DO APÓSTOLO PAULO AOS FILIPENSES: PISTAS

Pe. Antônio César Seganfredo, cs

“O apóstolo Paulo escreveu cartas verdadeiras para comunidades concretas. Não foi um erudito amarrado ao seu escritório, mas sim um homem prático” (DEN HEYER, C. J. Paulo, um homem de dois mundos. Paulus, VII, 2008). Talvez por isso sua paixão por anunciar Jesus Cristo tenha percorrido os séculos e a Igreja tenha decidido dedicar-lhe todo um ano, entre 28 de junho de 2008 e 29 de julho de 2009. O Ano Paulino não tinha como objetivo simplesmente exaltar Paulo, mas sim incentivar a abraçar com mais fidelidade o seguimento de Jesus Cristo, segundo o exemplo e as palavras do apóstolo de Tarso. Afirmou Bento XVI: “Esta é a finalidade do Ano Paulino: aprender de São Paulo, aprender a fé, aprender o Cristo” (Audiência geral – 02/07/09).
O Ano Paulino acabou recentemente, porém, seu convite e seu impulso precisam permanecer. Nesse sentido, a CNBB oferece uma preciosa sugestão ao escolher para a reflexão desse mês de setembro - Mês da Bíblia - a carta aos filipenses, assim como escolheu, para setembro de 2008, a 1° carta aos coríntios. Gostaria, portanto, de percorrer com simplicidade aspectos significativos da carta, e que sejam significativos para a evangelização em nossas comunidades, hoje.

Começo com alguns dados históricos. Durante sua segunda viagem missionária, por volta do ano 50-51 d. C., Paulo, juntamente com Silas e Timóteo, cruzou e mar e passou da Província da Ásia Menor (Turquia atual) para a Província da Macedônia (Grécia atual). O apóstolo chegava pela primeira vez no continente europeu. A colônia romana de Filipos será a primeira a receber o anúncio cristão e, assim, nela será fundada a primeira comunidade cristã paulina da Europa (cf. Atos 16,11-15). Paulo, conforme sua estratégia evangelizadora, privilegiava centros urbanos de onde a mensagem cristã pudesse difundir-se. Nesse sentido Filipos, junto à grande estrada romana na Macedônia, a Via Egnátia, logo chamou a atenção do apóstolo. Deixando essa cidade, na continuidade da viagem missionária, sublinhamos a fundação das comunidades de Tessalônica e Corinto, onde o apóstolo permanecerá um ano e meio.

Entrando na carta, sublinho logo dois aspectos muito relevantes e que podem encorajar a ação evangelizadora atual: Primeiramente Paulo não se amedrontou diante do mundo urbano. Pelo contrário, buscava exatamente os grandes centros, com seus portos, suas estradas e expressivo comércio, de onde a mensagem cristã poderia difundir-se com mais facilidade. Quanto ao segundo aspecto, ao chegar a Filipos, as primeiras evangelizadas serão as mulheres, tendo permanecido registrado o nome de Lídia, comerciante de Púrpura, que aceitou o batismo junto com os seus. A presença e atuação das mulheres, de fato, será significativa nas comunidades paulinas. Permanecendo somente na comunidade de Filipos, conhecemos o nome de outras duas mulheres, Evódia e Síntique (Fil 4,2), as quais Paulo exorta à comunhão.

A carta aos filipenses é marcado por um profundo laço de ternura e gratidão ligando Paulo à comunidade: “(...) vos tenho no meu coração (...) Deus me é testemunha de que vos amo a todos com a ternura de Cristo Jesus” (1,7-8 – cito conforme a Bíblia de Jerusalém. São Paulo, Paulus, 2002). A gratidão de Paulo manifesta-se pela ajuda recebida, tanto financeira quanto humana, na pessoa de Epafrodito. É significativo sublinhar que o apóstolo não aceitou ajuda financeira da parte de outros. Se a aceitou, ao invés, da comunidade de Filipos, terá sentido da parte desta um gesto inequívoco em prol da evangelização. De fato, Paulo não queria estar preso a nada que depois o impedisse de anunciar livremente o evangelho e, em nome desse, também denunciar os desvios. De Filipos, porém, conforme lemos em 4,15-18, mais vezes aceitou ajuda financeira, ao ponto de reservar a este gesto as seguintes palavras: “perfume de suave odor, sacrifício aceito e agradável a Deus” (4,18).

Provavelmente a passagem mais famosa da carta aos filipenses seja o hino cristológico que encontramos em 2,6-11: “Cristo Jesus, estando na forma de Deus, não usou de seu direito de ser tratado como um Deus, mas se despojou (...) Por isso Deus soberanamente o elevou”. Gostaria, pois, de convidar a uma reflexão mais ampla. No início do cap. 2, nos primeiros quatro versículos, Paulo usa uma profusão de palavras para exortar os filipenses à comunhão. Em seguida e no decorrer da carta dará dois exemplos concretos de como viver, na prática, essa comunhão.

Vejamos o primeiro e grande exemplo: “Tende em vós o mesmo sentimento de Cristo Jesus” (2,5). Podemos resumir o sentimento dele na palavra “despojamento” (kenosis). Se o Filho de Deus não tivesse se despojado de sua divindade, sem por isso perdê-la, não teria aceito encarnar-se para amar até as últimas conseqüências. Ele, ao invés, “abaixou-se, tornando-se obediente até a morte, e morte de cruz” (2,8). Do despojamento de Cristo Jesus todos nós fomos plenificados.

O segundo grande exemplo vem de Paulo. Ele, de fato, com liberdade, exorta a imitá-lo: “Sede meus imitadores, irmãos” (3,17, cf. 4,9). Como Cristo Jesus, também “despojou-se” daquilo que antes considerava seu maior orgulho. Nos versículos 5 e 6 do terceiro capítulo ele apresenta uma lista com esses motivos: “circuncidado ao oitavo dia, da raça de Israel...”. O Frei Raniero Cantalamessa, OFM cap, na primeira meditação de advento diante do papa e da cúria romana, no dia 05/12/2008, afirmou que esses eram os “máximos títulos de santidade do tempo. Com esses ter-se-ia podido imediatamente abrir o processo de canonização de Paulo, se fosse existido no tempo” (www.cantalamessa.org, consultado em 01/05/09. Tradução minha, do italiano).

Todos esses títulos de orgulho, no entanto, Paulo os considerou como “perda”, como “esterco” (2,7-8), diante da “excelência do conhecimento de Cristo Jesus, meu Senhor” (2,8). Comentou Frei Raniero: “O encontro com Jesus dividiu a sua vida em duas, criou um antes e um depois. Um encontro personalíssimo (é o único lugar onde o apóstolo usa o singular ‘meu’, não ‘nosso’ Senhor) e um encontro existencial. Ninguém poderá jamais conhecer em profundidade o que aconteceu naquele breve diálogo: ‘Saulo, Saulo!’ ‘Quem és tu, Senhor? Eu sou Jesus!’ Uma ‘revelação’, a define ele (Gl 1,15-16). Foi uma espécie de fusão pelo fogo, uma fulguração de luz que ainda hoje, depois de dois mil anos, ilumina o mundo” (idem).

Com esses dois exemplos Paulo quer persuadir os cristãos filipenses – e hoje cada um de nós – a “nada fazer por competição ou vanglória, mas com humildade, julgar os outros superiores a si mesmo” (2,3). Essas palavras, para ouvidos modernos, soam estranhas. Na sociedade democrática considerar os outros superiores pode conduzir a uma atitude de tirania-servilismo. Todavia, essa afirmação assume toda a sua clareza e profundidade diante do “despojamento” de Cristo Jesus e do apóstolo Paulo. Não se trata de assumir uma atitude de servilismo, trata-se de esvaziar-se das próprias certezas e títulos para que o outro tenha condições de crescer em dignidade. Diante do “mistério do despojamento” na quero mais acrescentar palavras. Tenho medo que elas soem medíocres diante da grandeza dos dois exemplos apresentados, com a conseqüente exortação para a prática cristã.

Mas essas não são as únicas pistas que a carta aos filipenses nos oferece para a espiritualidade e a evangelização. Há muitas outras. Vou terminando, todavia, para deixar cada um(a) desejoso de aprofundar este escrito, durante o Mês da Bíblia e depois. A esta carta, por exemplo, pertencem algumas frases de Paulo que repetimos muitas vezes, talvez sem saber exatamente a origem: “para mim o viver é Cristo e o morrer é lucro” (1,21); “esquecendo-me do que fica para trás e avançando para o que está adiante, prossigo para o alvo” (3,13-14); “Tudo posso naquele que me fortalece” (4,13).

Concluo com o trecho de 4,6-7, o qual pode trazer a paz a muitos corações agitados por tantos problemas e cruzes, pois a paz interior é condição necessária para que o cristão evangelize: “Não vos inquieteis com nada; mas apresentai a Deus todas as vossas necessidades pela oração e pela súplica, em ação de graças. Então a paz de Deus, que excede toda a compreensão, guardará os vossos pensamentos, em Cristo Jesus”.

A alegria
Recentemente o transporte público de Londres e algumas capitais européias exibiu o seguinte outdoor: “Deus provavelmente não existe. Portanto deixe de se preocupar e aproveite a vida”. Na pregação da sexta-feira santa, na Basílica de São Pedro no Vaticano, o Frei Raniero Cantalamessa, OFMcap, comentava que a mensagem subliminar diz que a fé em Deus impede de desfrutar a vida, é inimiga da alegria (www.cantalamessa.org, consultado em 01/05/09).
Paulo de Tarso, pioneiro da evangelização nessa mesma Europa, escrevendo aos filipenses, sublinha incessantemente o tema da alegria. Naturalmente, a alegria da qual fala o outdoor é aquela do aproveitar dos prazeres da vida. Paulo exorta “Alegrai-vos sempre no Senhor! Repito: alegrai-vos!” (4,4) num contexto de prisão, correndo perigo de vida.

Ao longo dos quatro capítulos da carta, Paulo usa 4x a palavra alegria e 11x o verbo alegrar-se (o mesmo verbo que Lucas usa para o anúncio do anjo à Virgem Maria: “Alegra-te, cheia de graça” [Lc 1,28]). É impressionante! O apóstolo reza com alegria pelos filipenses; alegra-se por ver Cristo proclamado, até mesmo por quem o faz por inveja e rivalidade; pede que completem a sua alegria vivendo em comunhão; alegra-se e pede que se alegrem mesmo diante da possibilidade do seu martírio; envia de volta Epafrodito sabendo que isto alegrará a comunidade; conclama a alegrar-se no Senhor; os cristãos filipenses são ditos sua alegria e, por fim, ele alegra-se pelo interesse que demonstraram pela sua pessoa.

Segundo a carta aos filipenses, a vida cristã precisa ser vivida na alegria, mesmo em meio aos desafios, às tristezas, à cruz, aos adversários, até mesmo diante da morte... Naturalmente esta é uma mensagem surpreendente para quem tivesse uma visão do cristianismo como a religião que impede de desfrutar a vida e inimiga da alegria!
Faz pensar... convida à mudança de mentalidade...

Informações básicas:
* Data de composição: cerca de 56 d.C, de Éfeso (hipótese provável);
* Destinatários: cristãos de Filipos, uma colônia romana (cf. Atos 16,12), evangelizada por Paulo e companheiros de missão por volta do ano 50;
* Unidade: os estudiosos estão divididos: alguns pensam que não se trate de uma só carta, mas de duas ou três unidas posteriormente em uma só.
* Divisão conforme o conteúdo:
1,1-11: Endereço/saudação e ação de graças;
1,12-26: Situação de Paulo na prisão e atitude perante a morte;
1,27-2,16: Exortação baseada no exemplo de Cristo (hino cristológico);
2,17-3,1a: Interesse de Paulo pelos filipenses e missões planejadas para eles;
3,1b-4,1: Advertência contra falsos doutores; o próprio comportamento de Paulo (uma carta diferente?);
4,2-9: Exortação a Evódia e Síntique: unidade, alegria, coisa mais altas;
4,10-20: Situação de Paulo e os generosos presentes do filipenses;
4,21-23: Saudação e benção conclusivas.

Fonte: BROWN, Raymond E.. Introdução ao Novo Testamento. São Paulo, Paulinas, 2004, p. 643.

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