terça-feira, 17 de maio de 2011

Pe. Alfredo J. Gonçalves, CS

O esboço que segue serviu de base para um Seminário de extensão no Instituto Teológico São Paulo (ITESP), sobre Teologia e Pastoral Urbana. Mais do que um texto ou estudo exaustivo, trata-se de algumas observações, provisórias e preliminares, sobre a forma de pensar a teologia e a ação pastoral, simultaneamente, no campo da mobilidade humana e no universo urbano. Ver-se-á em seguida como os conceitos de cidade e de mundo urbano constituem coisas distintas, embora inextricavelmente entrelaçadas. E como a Igreja Católica – aqui nos limitamos ao campo católico – encontra-se despreparada para responder aos desafios dessa nova cultura ou mentalidade urbana. Suas estruturas canônicas, jurídicas e burocráticas, bem como seu peso histórico e organização semi-feudal, representam, não raro, um entrave ao natural dinamismo da realidade urbana.

1. Um olhar histórico
Para abordar o tema Migração e fé nas cidades brasileiras, desafios pastorais, proposto por este Seminário sobre Teologia, Migração e Missão, convido a olhar o retrovisor da história, particularmente no processo de amadurecimento dos “tempos modernos”. Proponho concentrar as atenções no século XIX, especialmente a segunda metade, tendo em vista a consolidação da modernidade. Três renomados historiadores, cada um com sua obra monumental e com um enfoque distinto, trazem luz sobre os antecedentes e o contexto desse período conturbado da história: Fernand Brudel, Eric. J. Hobsbawm e Peter Gay[1]. Nessa perspectiva, a chamada “questão social” na Igreja Católica e a preocupação com a Pastoral dos Migrantes nascem no final do “século do movimento”, cuja melhor metáfora é o trem, para utilizar os termos de Peter Gay.
O próprio movimento assume o caráter de grande metáfora do século XIX. Em várias dimensões, a sociedade se movimenta em marcha acelerada e estonteante. Para começar, no decorrer de todo o século, constata-se um movimento inédito de pessoas. O êxodo rural esvazia os campos europeus e as cidades se incham de forma caótica. A cidade de Manchester, por exemplo, berço da Revolução Industrial, pula de 70 mil habitantes em 1820 para mais de 700 mil antes de 1900. Em maior ou menor grau, o mesmo ocorre do outro lado do canal da mancha – Munique, Paris, Milão, Berlim, Viena, etc. – e do outro lado do Atlântico – New York, Chicago, Detroit, etc.
No velho continente europeu, boa parte de contingente de migrantes internos era absorvido pelas fábricas que se multiplicavam de forma vertiginosa. Outros, porém, a partir das cidades ou diretamente do campo, viam-se forçados a cruzar os oceanos em busca de novas oportunidades de vida nos Estados Unidos, Brasil, Argentina, Austrália, Nova Zelândia, entre outras localidades. Ainda de acordo com Peter Gay, entre 1820 e 1920, cerca de 62 milhões de pessoas deixam a Europa em direção às terras novas. “Das várias regiões da Itália”, escrevia em 1899 Dom João Batista Scalabrini, bispo de Piacenza, “um número considerável de camponeses e operários emigra a cada ano. Espalha-se pelo mundo em busca de trabalho”.
Numa rápida retrospectiva da época, não é difícil estabelecer uma relação curiosa entre o Fundador Scalabrini, Leão XIII e o historiador citado. Enquanto este se refere ao trem como a metáfora do século em movimento, o pontífice, na abertura da Rerum Novarum, de 1891, documento inaugural da Doutrina Social da Igreja (DSI), escreve sobre a “sede de inovações” e a “agitação febril” que domina a sociedade. Se, por uma parte, o Papa estava preocupado com a “condição dos operários”, subtítulo da encíclica, por outro lado, Scalabrini tinha os olhos fixos naqueles que sequer conseguiam um posto de trabalho em seu país e se viam obrigados a deixar suas terras, seus parentes e emigra para o novo continente.
É conhecida, notória e comovente a sua descrição dos emigrantes amontoados na Estação de Milão, cujos “pórticos laterais e a praça adjacente” encontram-se “invadidos por trezentos ou quatrocentos indivíduos” E Scalabrini continua: “eram velhos curvados pela idade e pelas fadigas, homens na flor da virilidade, mulheres que levavam após si ou carregavam ao colo suas crianças, meninos e meninas todos irmanados por um único pensamento, todos orientados pra uma meta comum”. Às centenas, aguardavam o trem que os levariam ao porto de Gênova, de onde deveriam tomar o navio para uma aventura por mares e terras bravias. Eram migrantes que depositam suas esperança no sonho de “far l’America”. Não é à toa que a cena da Estação de Milão torna-se uma espécie de ícone para a trajetória de toda a Família Scalabriniana.
Além do deslocamento em massa de pessoas, o século XIX é testemunha de um movimento sem precedentes no campo da produção e comercialização de matérias primas e de novos bens de consumo. A era da máquina multiplica por dez, cem, mil vezes o ritmo e a capacidade de produzir mercadorias e conforto. Por outro lado, a revolução nos meios de transporte e nos meios de comunicação – trem, navios modernos, telégrafo, telefone, etc. – praticamente subvertem a noção de tempo e espaço. O ímpeto inebriante da Revolução Industrial põe em velocidade acelerada pessoas, coisas e capital.
O século XIX representa, ainda, um movimento de passagem do tradicional para o novo. Desde o início dos “tempos modernos”, passando pelo renascimento e pelo iluminismo, os valores tradicionais vão sendo postergados por uma crescente avalanche de inovações. A novidade passa a ganhar o status de valor primordial. De maneira progressiva, a pirâmide medieval estática, assentada sobre a origem do berço, da linhagem e do sangue, dá lugar a uma sociedade dinâmica, onde o dinheiro teoricamente democratiza o acesso livre ao conjunto da população. O teocentrismo é substituído pelo antropocentrismo racional, ao passo que a ciência e a tecnologia dissecam e desvendam os mistérios da natureza, da história e do corpo humano. Surge o mundo secular e “desencantado”, para usar as palavras de Max Weber.
Também na Igreja Católica – e penso que as demais Igrejas cristãs passaram por processos semelhantes – verifica-se certo movimento, traduzido pela emergência de uma nova sensibilidade social. Uma série de “santos sociais” encontra-se na origem de novas congregações religiosas, marcadamente voltadas para o apostolado. Se por um lado a Revolução Industrial trouxe avanços significativos nos transportes, nas comunicações, na medicina e no conforto das casas, por outro gerou efeitos nocivos no tecido social. As transformações, para o bem ou para o mal, são sempre causa de ansiedades. O novo interpela, desinstala, joga uma pedra sobre o lago da inércia natural, assinala Peter Gay. A segunda metade do século XIX é pródiga em obras assistenciais que procuram ir ao encontro das necessidades fundamentais de determinados grupos e/ou situações sociais ameaçadas pela avalanche das mudanças.
S. João Bosco volta a atenção para os jovens, um pouco perdidos num mundo sem horizontes precisos e que foge debaixo dos pés; a inspiração de Antoine F. Ozanam, embora nascida décadas antes, desenvolve-se como obra vicentina predominantemente nesse período; os padres e irmãs Oblatos de Maria Virgem preocupam-se com a situação das mulheres prostituídas; os órfãos e viúvas interpelam a Congregação das Irmãzinhas da Imaculada Conceição; Dom Scalabrini e Madre Cabrini dirigem seu olhar para os emigrados; a Congregação dos padres Claretianos, voltada para evangelização a partir da educação; a obra Kolping procura desenvolver círculos operários cristãos… Tudo isso irá encontrar sua expressão mais universal no final do século, com a Carta Encíclica Rerurm Novarum, como já vimos. Não estariam aqui os precursores do Concílio Ecumênico Vaticano II? Por outro lado, a “onda ou maré vermelha” do socialismo ganhava terreno particularmente entre os operários de toda Europa. Convém não esquecer que o Manifesto Comunista tinha vindo à luz em 1848, quase meio século antes da encíclica de Leão XIII e, em 1844, F. Engels havia publicado sua obra sobre a condição dos operários nas cidades da Inglaterra, mesmo tema da do documento pontifício que dá início à DSI.
No âmibito da Igreja Católica, duas figuras se sobressaem na passagem do século XIX para o século XX: o Papa Leão XIII e J.B.Scalabrini. Enquanto o primeiro se volta para precária condição de vida e trabalho dos operários, no interior da Europa, o segundo estende o olhar para aqueles que sequer conseguiram trabalho no velho continente e se arriscam por “mares nunca dantes navegados”, como diria o poeta português[2]. Por tudo isso, não seria exagero afirmar que a Pastoral Social e a Pastoral dos Migrantes surgem na virada do século como duas irmãs gêmeas.
Com esse voo de pássaro ao século XIX, sacudido em seus alicerces pela Revolução Industrial e suas consequências, bem como às respostas encontradas pela Igreja naquele momento histórico, podemos agora entrar mais diretamente no tema que liga três conceitos hoje indissociáveis e preocupantes para a teologia e a pastoral: fenômeno migratório, a fé cristã e os desafios do mundo urbano.

2. Universo urbano e universo rural
O tema da Pastoral Urbana vem ganhando terreno. A pergunta clássica é: como traduzir a Boa Nova de Jesus Cristo nas cidades ou metrópoles? Aqui, de início, há um equivoco que é necessário desfazer. Universo urbano e cidade não são sinônimos. O termo universo não é gratuito. Ele configura um conjunto de idéias, valores e comportamentos que contrapõe ao universo rural. Mais do que conceitos geograficamente determinados, estamos falando de conceitos culturais. Neste sentido, os limites do mundo urbano não coincidem com os limites da cidade. Como veremos, o universo urbano se contrapõe ao universo rural enquanto duas visões de mundo distintas, mas, ao mesmo tempo, suas fronteiras não são nítidas e precisas como ocorre, geograficamente, entre cidade e campo.
Para Manuel Castells, “quando falamos de ‘sociedade urbana’ não se trata nunca da simples constatação de uma forma espacial. A ‘sociedade urbana’, no sentido antropológico do termo, quer dizer um certo sistema de valores, normas e relações sociais possuindo uma especificidade histórica e uma lógica própria de organização e de transformação”[3]. Já para Ulf Hannerz, “nós tendemos a definir a realidade urbana, em primeiro lugar, como um particular sistema de relações sociais e só secundariamente, e em modo derivado, como um conjunto de idéias e valores dos cidadãos. Portanto, só depois de haver desenvolvido suficientemente a descrição da estrutura social que se pode definir a cultura urbana”[4]. Embora ambos combinem no caso das “relações sociais”, diferem quanto aos valores.
O próprio Concílio Ecumênico Vaticano II, em sua Constituição Pastoral Gaudium et Spes, se manifestou sensível à realidade urbana, não apenas como geografia da cidade, mas como conceito mais amplo: “Difunde-se pouco a pouco uma sociedade de tipo industrial, conduzindo algumas nações à riqueza econômica e transformando profundamente as concepções e condições de vida social estabelecidas desde séculos. Cresce paralelamente a civilização urbana, não só pela multiplicação das cidades, mas pela expansão do modo de vida urbano às zonas rurais”[5].
Quando nos referimos ao mundo urbano, portanto, está em jogo não apenas um campo geográfico determinado e limitado, e sim uma nova mentalidade, um novo jeito de ser, uma nova cultura. Se quisermos, uma nova linguagem, a linguagem do século XXI. Confrontando urbano e rural, estamos pondo de um lado um mundo plural, livre, predominantemente democrático, em constante mudança, aberto a opções variadas; e, de outro, um mundo marcado por um tipo de tradicionalismo fechado, repetitivo, fortemente hierarquizado, se possível imutável. No primeiro caso, é como se as pessoas nascessem revestidas de valores que passam de avô para pai e para filho, como também de destinos pessoais mais ou menos traçados. Um mundo em que as novidades não estão previstas e as pessoas se regem pelo tempo da natureza: sol, lua, estações do ano, plantio e colheita, e assim por diante.
No segundo caso, ao contrário, é como se as pessoas nascessem nuas, tendo que escolher passo a passo seus valores e abrir sua trajetória de vida. Enquanto num caso, o caminho de cada um já vem mais ou menos determinado deste o nascimento, no outro o sujeito, em meio a uma imensa gama de atividades, tem que “abrir sua picada” numa selva de pedra repleta de surpresas. No caso do Brasil, com seu patriarcalismo histórico, mas também de muitos outros países, podemos afirmar com o filósofo Hegel que, efetivamente “o ar da cidade torna livre”.

3. Fenômeno Migratório Hoje
a) Números e rostos
O Brasil é um país urbano. Nas últimas décadas sofreu uma acentuada transição de um universo para outro. Evidente que o êxodo rural ajuda a intensificar essa transição do universo rural para o universo urbano. Ao redor de 40 milhões de pessoas trocaram o campo pela cidade entre os anos 60 e 70. Daí para cá o êxodo rural desacelerou-se, mas permaneceu intenso. Atualmente, menos de 20% da população continua residindo no campo, mas grande parte com os olhos voltados para a cidade. As dez maiores cidades brasileiras concentram perto de 50 milhões de habitantes. A mancha urbana da maior metrópole do país e da América do Sul abriga cerca de 25 milhões de pessoas. Enquanto os pólos urbanos do interior dos estados crescem, muitas pequenas cidades vão se transformando em fantasmas, como é caso do norte do Paraná. Segundo dados do último censo do IBGE, na própria região norte do país, tradicionalmente chamada de fronteira agrícola, a urbanização segue acelerada.
Esse fenômeno combinado de urbanização, metropolização e periferização é igualmente marcante em muitos países de todo o Terceiro Mundo – América Latina, Ásia e África. Em grande parte deles, a população da capital contém um terço ou até metade de toda a população nacional. Basta citar os exemplos de México, Peru, Argentina, Argélia, Colômbia, Venezuela, Guatemala, Nigéria, Indonésia, Filipinas, Coréia do Sul, entre tantos outros. China e Índia constituem casos à parte pelo gigantismo e precariedade de suas numerosas metrópoles.
Convém alertar aqui para duas observações citadas na obra de Brigitte Saviano. “Recente reportagem da Folha de São Paulo, de 28 de junho de 2007, sob o título ‘População das cidades supera a rural no planeta’, salienta que ‘o mundo vivencia em 2007 um marco histórico: pela primeira vez a população urbana se iguala à rural e, a partir de 2008, será cada vez mais predominante’”[6]. Por outro lado, “segundo os cálculos mais novos da ONU, em 2030, pela primeira vez na história, dois terços da população mundial estarão morando em regiões urbanas, enquanto atualmente já dois terços de todas as crianças no mundo inteiro crescem em cidades”[7]
De acordo com a obra de Olivier Mongin, “existem hoje no mundo 175 cidades com mais de um milhão de habitantes. As 13 mais povoadas dentre elas situam-se na Ásia, África e América Latina. Existem 33 megalópoles anunciadas para o ano de 2015, e somente uma, entre as dez maiores, – Tókio – será uma cidade rica”[8].
Infelizmente, as grandes cidades costumam apresentar um flagrante contraste entre centro e periferia, ou então entre ilhas de bem estar e um mar de miséria. Basta colocar lado a lado os condomínios fechados, de alto luxo, e as imensas manchas de casebres ou favelas que lhes circundam. Sem contar que muitas vezes, como dizia Dom Paulo Evaristo Arns referindo-se aos cortiços do centro degradado, “a maior periferia está no centro”[9]. Mas a história é antiga. Tem origem na “agitação febril”[10] que acompanhou a Revolução Industrial e o nascimento e consolidação do sistema capitalista de produção. “Para os planejadores de cidade, os pobres eram uma ameaça pública, suas concentrações potencialmente capazes de se desenvolver em distúrbios devem ser impedidas e cortadas por avenidas e bulevares, que levariam os pobres dos bairros populosos a procurarem habitações em lugares menos perigosos” – registra o historiador Hobsbawm, concluindo que “as cidades ainda devoravam suas populações”[11].

b) Uma realidade de muitas faces
Atualmente, passado mais de um século da obra e morte de Scalabrini, o fenômeno migratório só fez aumentar. As migrações parecem figurar na história como ondas aparentes e superficiais de correntes ocultas e subterrâneas. Constituem uma espécie de termômetro de mudanças profundas, as quais são sempre precedidas ou seguidas de movimentos populacionais significativos. Os abalos sísmicos no campo socioeconômico, político ou cultural em geral vêem acompanhados de consideráveis deslocamentos geográficos. As migrações são “sinais dos tempos”, como insiste o papa Bento XVI. Atestam a existência de terremotos reais, mas às vezes imperceptíveis.
Hoje em dia, os deslocamentos humanos de massa tornaram-se simultaneamente mais intensos, mais diversificados e mais complexos. Mais intensos, na medida em que envolvem maior quantidade de pessoas. Estima-se em mais de 200 milhões o número de imigrantes que residem fora do país em que nasceram. Se a isso acrescentarmos as migrações internas e temporárias, a cifra alcança cifras bem mais expressivas. Segundo alguns analistas, porém, o “exército de reserva” (K. Marx), ou seja, o potencial de trabalhadores dispostos a levantar a tenda e correr atrás de qualquer sinal de trabalho, pode ultrapassar os 500 milhões. Nesse montante, predominam os jovens e cresce a percentagem de mulheres.
Nem precisa dizer que grande parte desse contingente vive em situações extremamente precárias. Como migrantes em potencial ou como migrantes de fato, experimentam no corpo e na alma a condição pobreza ou de clandestinidade; são submetidos os serviços mais degradantes, sujos, pesados e mal remunerados; muitos acabam sendo vítimas do tráfico internacional de seres humanos para fins de exploração trabalhista ou sexual; sem documentação e com dificuldade de um emprego estável, dificulta-se igualmente o acesso à escola, saúde, enfim, aos direitos de uma cidadania digna.
As migrações são também mais diversificadas. Atualmente, poucos países do planeta estão fora de seu circuito. Como lugares de origem, trânsito ou destino, todos se vêem envolvidos nesse imenso vaivém planetário. Novos povos, raças e grupos entram a fazer parte desse cenário nacional, regional e internacional do fenômeno migratório. Países historicamente marcados pela imigração passam a apresentar fortes contingentes de emigrantes, como Brasil, Argentina, México, entre outros. Destinam-se predominantemente aos Estados Unidos, seguidos da Europa e Japão. Por outro lado, os países europeus, que no século XIX e início do século XX foram palco de saída, hoje recém imigrantes hispano-americanos, africanos e asiáticos.
Diversificam-se também os fluxos e as rotas. A direção sul-norte é de longe a mais movimentada, mas, após o declínio da União Soviética, cresce o fluxo leste-oeste. Nos países do Terceiro Mundo, aumentam igualmente os deslocamentos regionais no interior da África, da América Latina e da Ásia, bem como o êxodo rural desenfreado e as migrações internas. Voos curtos e voos médios, dentro de um mesmo país ou entre países vizinhos, normalmente são etapas preparatórias para voos mais longos, de continente para continente. As assimetrias e desigualdades sociais, a violência de todo tipo, as guerras e guerrilhas, o tráfico de pessoas, o intercâmbio de técnicos e estudantes, o vaivém para as safras agrícolas, o trabalho doméstico e os serviços em geral, o turismo – são alguns dos fatores predominantes da mobilidade humana. Sem falar dos que se deslocam por profissão ou cultura, tais como motoristas, marítimos, aeroviários, ciganos, itinerantes, etc.
Nos grandes centros urbanos é comum o encontro diário com “os mil rostos do outro”. Jamais o mundo e o outro/diferente estiveram tão próximos, como uma gigantesca aldeia global. Novas revoluções na área dos transportes, especialmente a democratização do avião, na tecnologia das comunicações, com destaque para a televisão, e no campo da informática, com a Internet em primeiro lugar, aproximam como nunca povos, culturas e raças. A notícia torna-se cada vez mais simultânea, instantânea. Tudo isso acaba sendo, ao mesmo tempo, causa e efeito de novos fluxos migratórios.
Por fim, as migrações no momento presente apresentam um quadro cada vez mais complexo. Se, em tempos passados, os fluxos migratórios tinham uma origem e um destino mais ou menos determinados, atualmente o panorama da mobilidade humana apresenta as mais variadas direções. O mapa das idas e vindas se complexificou. À pergunta sobre a origem do imigrante deve acrescentar-se a pergunta sobre sua proveniência imediata. Isto porque grande parte das pessoas que se deslocam o faz por uma, duas, três e mais vezes. Arrancada a primeira raiz, facilmente o migrante se torna um peregrino de muitos e repetidos caminhos. Não mora, acampa!
No passado predominavam as migrações de colonização. Os trabalhadores migravam com suas famílias para fixarem-se num novo lugar. Aí tratavam de recomeçar a vida. É verdade que havia grande quantidade de terra “vazia e ociosa” para a instalação de grupos de colonos. Os casos dos Estados Unidos, Argentina, Austrália e Rio Grande do Sul, Brasil, ilustram isso. Nos dias atuais, ao contrário, é comum os migrantes fazerem experimentos migratórios. De etapa em etapa, vão tentando progredir em seu projeto de vida. Fixam-se por algum tempo, preparando uma espécie de trampolim para outro pulo mais arrojado. Uma vez mais, vivem montando e desmontando a tenda. Exagerando numa caricatura, muitos roçam de endereço quase como se troca de roupa.
Mas não dá para generalizar. Já nos séculos passados existiam aventureiros que se lançavam a uma migração constante e repetida, da mesma forma que também hoje existem jovens e famílias que procuram um galho firme para construir seu ninho. Ou uma terra sólida onde mergulhar as raízes de um sonho duradouro, o alicerce de uma nova vida. A realidade é sempre mais rica e dinâmica que nossos pobres esquemas mentais.

4. Uma transição difícil
Mas a transição do mundo rural para o mundo urbano não é somente um fenômeno demográfico. Trata-se, antes, de uma passagem marcadamente cultural. Muitas pessoas sofrem essa transição sem jamais terem ultrapassado as fronteiras de seu município na zona rural, sem jamais terem saído do campo. Outras, mesmo tendo se transferido para a cidade, seguem convivendo em uma espécie de “guetos” rurais, onde se vive, se fala e se comporta como se estivesse “lá no norte”. Na grande cidade, não é difícil encontrar um quarteirão inteiro, uma favela ou um cortiço onde quase todos os moradores são originários de uma única cidade, reproduzindo aí o estilo de vida nordestino.
Na Pastoral da Moradia, atuei pastoralmente num cortiço em no centro de São Paulo onde umas 30 famílias do município de Ipirá, sertão da Bahia, o conheciam como a porta de entrada na cidade e como trampolim para galgar outros degraus. Ali viviam pintores, pedreiros, empregadas domésticas, ajudantes gerais, etc.[12] Já anteriormente, na zona leste de São Paulo, havia atuado numa favela onde creio que mais de 90% das famílias eram originárias da região de Serra Talhada, sertão de Pernambuco.[13] Tanto na favela como no cortiço, os costumes, os namoros, a linguagem e até os apelidos dos lugares de origem se reproduziam no destino. Era comum o leva-traz de encomendas e de cartas nas freqüentes viagens “ao norte”. Eu mesmo, com a permissão de algumas famílias, consegui acumular mais de 200, que posteriormente foram utilizadas num trabalho dede final de curso no Instituto teológico.[14]
Na mudança do mundo rural para o mundo urbano, no fundo o que ocorre é a passagem de uma visão de mundo para outra. Esta transição não se dá necessariamente nem somente com a migração. Esta pode acelerar o processo que em geral é lento, mas esse processo pode começar bem antes das pessoas deixarem o campo. Que o digam, por exemplo, os jovens dos grotões rurais brasileiros, como o Vale do Jequitinhonha, em Minas Gerais, ou o sertão e agreste dos estados do Nordeste. Neles verifica-se um modo de ser, de vestir-se e de comporta-se que se poderia classificar de uma mescla rural-urbana ou urbano-rural, de acordo com o grau de assimilação da linguagem urbana.
Também os migrantes na cidade não raro apresentam essa duplicidade de comportamento. Passar de um universo a outro não é apenas uma questão de mudar de lugar, mas muito mais uma forma de ir adquirindo uma nova maneira de entender a vida e os valores e de se posicionar perante ambos. Convém não esquecer que as “luzes e tentações” do mundo urbano, por vezes, fascinam e seduzem com maior força aqueles que se encontram no campo, com pouca ou nenhuma possibilidade de mudar, do que os que já se transferiram para a cidade.
Tudo isso nos ajuda a concluir que Pastoral Urbana não se confunde com Pastoral de Cidade. Trata-se, antes, de responder pastoralmente, e socialmente, a essa difícil transição de um universo a outro. A passagem costuma ser dolorosa e abrir profundas feridas. Há os golpes provocados pela migração do campo para a cidade, por um lado, mas há também os golpes causados por mudanças nos usos e costumes que essa transferência significa. De resto, muitas vezes são tais usos e costumes que com freqüência migram em sentido inverso, isto é, da cidade para o campo, via o vaivém dos migrantes, via os programas de televisão e até via Internet. A mentalidade, cultura ou linguagem urbana se expande pela zona rural juntamente com as inovações tecnológicas das comunicações, dos transportes e da informática.
Na mudança há valores e contravalores. Para as mulheres, por exemplo, muitas vezes essa transição as liberta do controle masculino tão característico do mundo rural, seja por parte do pai, do irmão mais velho quando morre aquele, ou do marido quando se casa. Mas há também o risco, na zona urbana, de submeter-se a outros tipos de escravidão, seja de ordem trabalhista, seja de exploração sexual. Há casos em que os rapazes do interior se recusam a casar com moças que já passaram algum tempo na cidade, em geram como empregas domésticas ou dos serviços em geral. Alegam que elas não são mais virgens. No fundo, o que eles temem é a visão de maior liberdade e autonomia feminina, numa união matrimonial mais igualitária.[15]
No caso dos homens, muitos que já tiveram experiência de trabalho na cidade, normalmente são rejeitados como empregados nos projetos do agronegócio ou simplesmente por outros pequenos e médios agricultores. São considerados perigosos por sua liderança. A experiência sindical e/ou dos movimentos sociais na zona urbana os ajudou a “abrir os olhos para seus direitos”. Como se pode ver, a transição rural-urbana comporta ambigüidade que devem ser estudadas caso a caso. “No fundo, a grande cidade se revela como a arena típica onde se exprimem as contradições e as possibilidades da liberdade que o indivíduo obteve no mundo moderno”![16].

5. Novo mundo, novas práticas
a) Ambiguidade do universo urbano
Se entrarmos no mundo religioso, as ambigüidades são ainda mais marcantes. Enquanto no universo rural, especialmente brasileiro, a Igreja Católica constitui uma espécie de “supermercado” onde a pessoa encontra tudo o que necessita em termos do sagrado, no universo urbano, multiplicam-se os “botecos” de todos os gêneros e gostos. A marca do pluralismo religioso e cultural é uma das características mais significativas desse universo. Tanto a mosaico das expressões culturais quanto o mosaico da fé se torna infinitivamente mais variado. Com isso, a fé tende a deixar de ser uma tradição familiar para converter-se em uma escolha pessoal. Religião deixa de ser herança e passa a ser um assunto eminentemente individual. Não é sem razão que em um número crescente de famílias podemos encontrar mais de uma opção religiosa. As tensões e hostilidades nesse campo, como também o maior ou menor grau de proselitismo, são bem conhecidas.
Por outro lado, se no universo rural podemos classificar o cristão-católico de fiel, por uma participação, tradicional, inquestionável e prolongada, no mundo urbano, o que temos é muito mais um consumidor, que facilmente transita de uma “religião” a outra, sem qualquer tipo de escrúpulo. Isso leva não poucos a criar sua própria religião, uma espécie de colcha de retalhos, costurada bem ou mal com valores de uma e outra. É o que alguns estudiosos chamam de “religião de bricolagem” ou “religião do self-service”, onde com um ingrediente das várias opções religiosas, cada um faz o seu próprio cardápio religioso. Também há os que passam a interiorizar os valores religiosos, mesclando-os com outras atrações do mundo urbano, e criando uma espécie de fé sem religião. “Acredito em Deus, mas não quero saber de religião”, numa atitude que simplesmente dispensa a intermediação institucional. Amplia-se, com isso, o fenômeno da religião privatizada: um conjunto de princípios que vale como uma espécie de referencial interior, mas sem conseqüências para o posicionamento sócio-político ou eclesial.[17]
Há também forte ambigüidade na autenticidade das expressões religiosas. No universo rural, as pessoas tendem a seguir as tradições dos antepassados, mantêm laços primários e duradouros, respeitando uma espécie de conveniência social. Transgredir a tradição é expor-se à crítica social e a um severo controle da vizinhança. Visitar o padrinho por ocasião do Natal e receber dele um presente, por exemplo, é uma instituição intocável, entre tantas outras. Já no universo urbano, as relações tendem a costurar laços mais livres, autênticos e verdadeiros. As pessoas costumam visitar-se e desenvolver novas formas de amizade. Se é verdade que a solidariedade parece mais coesa no campo e frágil na cidade, também é verdade que por trás dessa avaliação podem esconder-se conveniências tradicionais de dependência pessoal, às vezes inquestionáveis, ou hipocrisias tácitas e inconfessadas.
No campo das práticas sócio-pastorais, convém alertar para o risco do saudosismo, segundo o qual o mundo rural seria uma espécie de “paraíso perdido”, ao passo que o mundo urbano representaria o lugar do pecado, da perdição e da violência. Não é difícil justificar na Bíblia, especialmente no Antigo Testamento, como veremos adiante, como a cidade muitas vezes aparece como a morada do pecado. Na verdade, ambos os universos desenvolvem práticas solidárias. A diferença é que, enquanto no mundo rural elas passam em geral pelas instituições religiosas e tradicionais, no mundo urbano elas tendem a ser mais livres, autônomas, plurais e também mais autênticas.
Uma das características mais evidentes da passagem do mundo rural ao mundo urbano se traduz por uma dessacralização da vida material. De fato, no universo rural a materialidade da vida encontra-se como que encoberta por um véu: Deus providencia a água, as frutas, as plantas, o leite, os legumes, uma galinha, um porquinho… Embora a família seja em geral numerosa, os filhos se criam de forma aparentemente mágica, como os bichinhos. Sempre há manga, caju, coalhada, mandioca, queijo, etc. Um véu sagrado cobre a premência das necessidades básicas.
No mundo urbano, esse véu se rasga. Tudo tem custa dinheiro. As coisas não mais se encontram na natureza ou no campo. Chegam da feira, da padaria, do açougue, do mercado… e têm preço. Deus não mais provê as necessidades materiais da vida. E preciso ter emprego fixo e um salário para dar conta da sobrevivência. Isso mexe com o poder dentro da família. O pai/avô, que no mundo rural é o patriarca inquestionável do clã familiar, pode perder o posto para o filho (ou a filha) mais velho. Ou para aquele que ganha mais. Os valores da hierarquia tradicional são substituídos pela maior ou menor capacidade de trazer dinheiro para casa. O dinheiro é a fonte do poder, o que não raro desloca os anciãos para o escanteio e causa traumas profundos em suas vidas.
Mas não é só. Na medida em que a materialidade da vida se escancara, fica exposta a natureza dos ganhos e perdas. Se, por um lado, tudo isso estava encoberto por um véu sagrado no universo rural, por outro, uma concepção equivocada do Deus providência mantinha a fé tradicional do catolicismo popular brasileiro. Semelhante caricatura do Deus providência desmorona com a nudez da vida material. Deus não dá nada, nada provê, abandona o homem à própria sorte. Temos de garantir tudo através do dinheiro.
O pseudo Deus providência – que nada tem a ver com a espiritualidade e a teologia da providência divina – morre e deixa um tremendo vazio. Em seu lugar surge o Deus desconhecido e silencioso de uma fé madura. O problema é que a imensa maioria dos migrantes, ou das pessoas que fazem a transição do mundo rural para o mundo urbano, não tem condições de superar essa caricatura do Deus providência pelo Deus verdadeiro, que é sempre oculto e desconhecido. Daí o desespero! Daí a procura ansiosa de um novo “Deus providência” que possa garantir respostas imediatas para os problemas imediatos. Onde está Ele? Muitas vezes no pentecostalismo, católico ou não, nos movimentos espiritualizantes, numa fé intimista e interiorizada, e assim por diante.
Aqui está um passo difícil. Em desespero, as pessoas se agarram à primeira tábua de salvação que aparece. É difícil verificar que Deus é fiel não porque nos tira do “fundo do poço”, mas porque nos deixa aí para que possamos reunir forças e relações amigáveis para a libertação; Deus é fiel não porque coloca tapete à nossa frente para que não nos machuquemos, mas porque nos deixa caminhar livremente; Deus é fiel porque respeita até as últimas consequências o dom da liberdade humana. Daí o silêncio de Deus. Como diz o teólogo Bruno Forte, o silêncio de Deus é a condição da liberdade humana. Mas isso exige uma fé adulta e robusta, para a qual nem todos estão preparados, e muito menos os migrantes recém-chegados do mundo rural[18].

b) Novos laços, novas redes
O mais importante é dar-se conta que a metrópole, por mais fragmentária que seja, também cria, rompe e recria laços de amizade, de vizinhança e de solidariedade. Multidão, solidão e aproximação convivem lado a lado. Se, no mundo rural, determinadas práticas solidárias fazem parte de um imaginário já bastante consolidado, no mundo urbano elas devem ser costuradas – feitas, desfeitas e refeitas – a partir do zero, ou no máximo a partir de relações de parentesco que ainda sobrevivem ao golpe da transição. Pouco a pouco, a fé cresce não no sentido de uma visibilidade de um deus milagreiro, disposto a resolver problemas individuais, mas na manifestação do Deus verdadeiro através das ações humanas na história. Deus se revela na ação humana de Jesus de Nazaré e se revela nos gestos e práticas solidárias de cada pessoa.
O mundo urbano, em sua ambiguidade, pode levar à perda total das referências religiosas, mas pode também superar uma fé ingênua e às vezes infantilizada no mundo rural. No processo dessa superação, sempre lento, difícil e laborioso, damo-nos conta de que a oração não modifica nossos problemas, e sim nossa maneira de encará-los. Ou então, Deus não desata magicamente os nós e contradições de nossa vida, mas a nova fé confere igualmente uma nova visão sobre as dúvidas e interrogações humanas. Longe de ser o lugar do pecado e da perdição, a cidade abre perspectivas novas para o amadurecimento da fé.
Um olhar ao Novo Testamento – Atos dos Apóstolos, Apocalipse e cartas de Paulo, por exemplo – bastará para darmo-nos conta de como a cidade é reabilitada. O próprio Jesus chora sobre Jerusalém, vendo dispersos os seus filhos e prevendo sua destruição. No capítulo 21 do Apocalipse, Deus faz da cidade a sua tenda, ou seja, Deus assume e reveste de divindade a obra humana por excelência. O conjunto das cartas de Paulo, por sua vez, revela um apóstolo eminentemente urbano. Suas viagens seguem as rotas do comércio e das cidades portuárias da época: Tarso, Antioquia, Coríntio, Tessalônica, Galácia, Éfeso, Atenas, Filipos, Roma, etc.
Mais do que um teólogo, o que também o é em profundidade, Paulo se revela um homem preocupado em costurar relações novas no universo das cidades antigas. Nelas cria também núcleos de convivência a partir da instituição casa/família (oikos), na verdade os embriões das futuras comunidades. Com elas mantém intensa correspondência, no sentido de renovar as práticas solidárias ditadas pela ética evangélica. Em suas cartas é impressionante o número de pessoas que são citadas pelo nome, a quem ele envia saudações; ou então o número de famílias a quem ele agradece a hospedagem, a acolhida. Vale a pena ler as cartas de Paulo surpreendendo-o não tanto como grande teólogo, mas como um amigo fraterno, com os olhos rasos de água, relembrando as pessoas a quem ama, falando de saudades, de encontros e reencontros. Suas viagens e suas mensagens fazem parte de uma nova prática solidária num mundo plural, aberto ao comércio, urbano e de variados interesses[19].
Vale o mesmo para a Primeira Carta de Pedro. Também neste caso o apóstolo, escrevendo aos “estrangeiros da dispersão do Ponto, da Galácia e da Capadócia”, insiste em que a união entre eles deverá ser a “Casa de Deus”. Hostilizados e perseguidos por serem ao mesmo tempo estrangeiros e cristãos, Pedro os exorta a se manterem firmes na comunidade, fazendo desta a sua casa/famíla (oikos)[20]. “Estudando as origens sociais do cristianismo primitivo, Ekkehard W. Stegemam e Wolfgang Stegemam chamam a atenção para a importância da instituição casa/família no nascimento e consolidação das comunidades cristãs. Seus comentários referem-se ao contexto social dos Atos dos Apóstolos e das cartas paulinas, mas, guardadas as diferenças, podem estender-se para o universo das cartas de Pedro”[21].
Dizem literalmente os autores citados: “às metáforas da casa e da família correspondem também as exortações éticas do amor ao próximo e do amor fraterno. Estas inspiram-se, a seu modo, em antigas normas de reciprocidade, em que o amor fraterno representa um comportamento solidário no seio da família nuclear ou da parentela, e o amor ao próximo a reciprocidade equilibrada entre vizinhos e amigos… Também a hospitalidade é uma forma de solidariedade no contexto da reciprocidade equilibrada”. E mais: “os que acreditavam em Cristo, comprometidos com a missão, encontravam nas casas dos companheiros de fé hospitalidade e, em caso necessário, também apoio econômico. As relações sociais entre os mesmos inspiravam-se na antiga solidariedade de vizinhança e de família. Assim, podemos afirmar com tranqüilidade que as comunidades cristãs, para a concepção que tinham de si mesmas e de suas relações sociais, inspiravam-se no modelo da casa antiga ou no núcleo familiar”[22].
Convém, ainda, retornar às palavras do Papa Paulo VI, no começo da década de 1970: “Construir a cidade, lugar de existência dos homens e das suas comunidades ampliadas, criar novos modos de vizinhança e de relações, descortinar uma aplicação original da justiça social, assumir, enfim, o encargo deste futuro coletivo que se prenuncia difícil é uma tarefa em que os cristãos devem participar. A esses homens amontoados numa promiscuidade urbana que se torna intolerável é necessário levar uma mensagem de esperança, mediante uma fraternidade vivida e uma justiça concreta”[23]. Ou lembrar a oração de Santo Domingo, citada por Libânio: “Ajuda-nos a trabalhar por uma evangelização inculturada que penetre os ambientes de nossas cidades”[24].

6. O vínculo com a instituição.
Outra característica que diferencia o universo rural e o universo urbano é o tipo de vínculo que se estabelece com a instituição religiosa católica. No primeiro caso, o fiel, como o conceito indica, mantém uma participação mais ou menos assídua, permanente. Preocupa-se com a caminhada da sua capela, comunidade, paróquia ou diocese. Tende a marcar presença regular nas festas da Igreja e acompanha o calendário religioso católico. No mundo urbano, tudo isso vai mudando de uma geração a outra. A primeira geração de migrantes ainda se preocupa em formar a comunidade, construir o templo, preparar a quermesse, constituir as CEB’s e os grupos tradicionais de oração e de trabalho, como participar do Apostolado da Oração, dos Vicentinos, e assim por diante. Basta retroceder aos anos 60 e 70 na periferia de São Paulo, por exemplo.
Já a segunda geração, embora ainda ligada à comunidade local, começa a criar vôos mais largos, pouco a pouco vai se desvinculando de compromissos regulares com a própria comunidade ou paróquia, passa a estabelecer laços mais amplos e menos vinculantes. Nascem, por exemplo, os grupos de música mistos, festivais inter-comunitários, os contatos entre grupos de jovens que extrapolam os limites geográficos da paróquia. Esta começa a revelar-se estreita para a visão aberta da mentalidade urbana. Além do mais, as “luzes da cidade” oferecem espetáculos muitos mais atraentes e fascinantes, mesmo de um ponto de vista religioso.
Quanto à terceira geração, entra de cheio nos chamados movimentos religiosos, quando não pula para as várias opções pentecostais, inclusive a de natureza católica. “O sopro do espírito” cria as mais diferentes formas de viver a própria fé. Com a facilidade dos meios de comunicação e de transporte, estabelecem-se grupos comunitários por afinidade ou por interesse, seja este interesse de ordem material, emocional, religioso, psíquico, de amizade ou de qualquer outra natureza. O dinamismo de uma fé viva e revigorada e os encontros e reencontros desvinculados do calendário litúrgico desconhecem completamente as circunscrições geográficas da paróquia ou diocese. É como se um vinho novo rompesse com o estreitismo jurídico e canônico de uma Igreja cujas estruturas se relevam obsoletas e anacrônica para a agilidade e a fluidez do mundo urbano. Citando novamente Olivier Mongin, aqui os fluxos rompem definitivamente com os lugares[25]. Criam-se espécie de comunidades eventuais, momentâneas, efêmeras, e virtuais, sem maiores compromissos reais de continuidade. O carro, o telefone e a Internet – como meios de rápida comunicação à distância – a facilitam essa nova forma de vivenciar a fé.
A vinculação à Igreja passa muito menos por uma fidelidade de pertença à comunidade, paróquia ou diocese, do que pela procura de interesses e motivações particulares. Utilizando uma linguagem comercial, as pessoas buscam produtos bem precisos e para fins imediatos e instantâneos. Talvez esse seja um dos motivos, entre tantos outros, para a chamada “crise das CEB’s”, tão vivas nos anos 70, pois as mesmas continuam fortemente vinculadas a um território, uma paróquia. Já as Pastorais Sociais e Movimentos Religiosos, proliferaram nos anos 80, uma vez que se desenvolvem e operam à margem ou acima das circunscrições eclesiásticas.
Aliás, numa metrópole como São Paulo ( e nas demais capitais brasileiras) há pessoas que residem numa diocese, trabalham numa segunda diocese e, nos fins-de-semana, visitam os parentes e amigos numa terceira diocese. Essas pessoas, se católicas, terão dificuldades quanto ao acesso aos sacramentos, devido às exigências de ordem, burocrática, canônica e jurídica. Entre os tantos obstáculos do dia-a-dia, poderão encontrar na Igreja mais uma porta fechada. De resto, nesta imensa mancha urbana, quem conhece os limites de sua paróquia ou diocese? Daí a necessidade de uma adaptação das estruturas eclesiais à dinâmica e fluidez do universo urbano!
O ritmo da vida urbana e sua linguagem exigem outros tipos urgentes de adaptação. A metrópole é um organismo vivo e vibrante. Luzes e sons, cores e imagens jamais a deixam dormir. Determinadas Igrejas Pentecostais já descobriram isso e mantêm alguns tempos abertos dia e noite. Além disso, é sabido que, de um ponto de vista da acolhida, estão muito mais abertas ao grito que as pessoas trazem preso na garganta. Como acolher esse grito na Igreja Católica sem encher a pessoa de perguntas!
Quanto à linguagem, nossas atividades e mensagens insistem em privilegiar a mensagem verbalizada, quando o mundo urbano se comunica com imagens, códigos e símbolos. O teatro, a dança, a poesia têm pouca aceitação na liturgia e na pastoral. Neste campo da linguagem, não basta passar o microfone ao povo. Mesmo que o microfone não seja monopólio dos “agentes e lideranças”, isso chega a criar situações altamente constrangedoras. O importante aqui é abrir espaço para outros de tipos de comunicação popular, às vezes mais ricos coreograficamente que nossos sonolentos sermões ou avisos ao final da missa.

Conclusão
Ao final dessas considerações, absolutamente provisórias e carentes de melhor averiguação, cabem algumas perguntas de ordem teológica. A primeira pode ser o desafio, cada vez mais premente, de olhar para o meio urbano como um lugar eminentemente teológico. “Deus mora nesta cidade” (Sl 47,9), mas principalmente, o rosto e a voz de Deus se fazem presente neste universo cultural que se complexifica a cada dia. O poema de Isaías (Is 65, 17ss) e o capítulo 21 do Apocalipse poderiam orientar essa descoberta de que “esta é a tenda de Deus com os homens, Ele vai morar com eles” (Ap 21,3). Se é verdade que a cidade é a maior de entre as obras humanas, Deus assume e santifica a história universal vindo morar nela.
Outra pergunta: como sentir a voz de Deus num universo marcado por um espetáculo de luzes, sons e imagens, tão movimentado e ruidoso? A experiência de Jesus aqui pode ser nosso farol: foi descendo aos “infernos do sofrimento humano” e chorando sobre Jerusalém, quem sabe tocado pela miséria de seus sórdidos porões, que Jesus descobre a imensa misericórdia do Pai. O mundo urbano acumula luzes e sombras. Estas sombras, feitas de dores e violência, receberam do olhar de Jesus um brilho que pode transformá-las de forma definitiva.
Também não seria ocioso confrontar a concepção de cidade no Antigo Testamento e no Novo Testamento. Na antiga aliança, apesar dos poemas à Nova Jerusalém e Sião, nos deparamos no capítulo 11 ou 18 do Livro do Gênesis, respectivamente, com a divisão no caso de Babel e a devassidão no caso de Sodoma e Gomorra. Ou ainda a Nínive idolatra e pagã do Livro de Jonas. Tudo isso contrasta com a cidade amada e chorada por Jesus, glorificada no Livro do Apocalipse e laboriosamente visitada e evangelizada pelas viagens do apóstolo Paulo.[26]
Por fim, como vimos, o universo urbano é fortemente marcado pelo pluralismo cultural e religioso. Em meio a uma profusão de deuses, expressões religiosas e buscas sinceras, como descobrir o rosto do Deus Verdadeiro? Talvez nos possa ajudar, uma vez mais, a figura do apóstolo Paulo, no episódio do Areópago, na cidade de Atenas (At 17,1634). Ali Paulo, ao mesmo tempo que reconhece os deuses gregos, proclama sua fé no Deus Desconhecido. Vemos aí, simultaneamente, o respeito à cultura alheia, e a firmeza na própria crença. Abertura dialógica e confissão de fé em Jesus Cristo constituem duas faces da mesma moeda. Quanto mais o cristão aprofunda o conhecimento de suas origens, mais poderá abrir-se ao outro.
O Papa João Paulo II referia-se aos tempos modernos ou pós-modernos, marcadamente urbanos, como de um imenso areópago. Nele o Deus verdadeiro é sempre desconhecido, ao mesmo tempo revela e esconde sua face. Deuses demasiadamente conhecidos são deuses manipuláveis, feitos à nossa imagem e semelhança. Como identificar os traços de um Deus que acompanha seu povo na história, mas, ao mesmo tempo, preserva até as últimas conseqüências a liberdade de cada pessoa e de cada grupo humano?

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