O presente texto é um extrato do discurso lido por José María Castillo na solenidade em que recebeu o Doutorado Honoris Causa da Universidade de Granada, da Espanha.
José María Castillo, teólogo espanhol, é autor de uma importante obra teológica. Vários dos seus livros foram traduzidos para o português.
O texto está publicado no sítio Rebelión Digital, 13-05-2011. A tradução é do Cepat.
Eis o discurso.
Exmo. Sr. Reitor Magnífico da Universidade de Granada; Exmos. Vice-reitores/as; Ilmos. Srs. Decanos/as; Claustro de Doutores e Professores/as; Autoridades; Amigos/as,
Quero, antes de mais nada, expressar meu sincero agradecimento à Universidade de Granada pelo doutorado honoris causa que me concedeu, por proposta do Exmo. Sr. Reitor Magnífico desta Universidade, Doutor Francisco González Lodeiro. Também desejo manifestar meu reconhecimento ao Centro Mediterrâneo, de nossa Universidade, pela oportunidade que me ofereceu de poder colaborar, durante anos, nos cursos de reflexão e difusão cultural que o citado Centro vem oferecendo à Universidade e à cidadania em geral. Neste contexto, agradeço concretamente ao professor Juan Francisco García Casanova a Laudatio que fez para justificar devidamente a iniciativa do Reitor de nossa Universidade.
Falar de Deus na Universidade
Como é do conhecimento de todos, em virtude do conhecido genericamente “Decreto de Liberdade de Ensino”, de 21 de outubro de 1868, as Faculdades de Teologia foram abolidas e, em consequência, excluídas do ensino universitário na Espanha. A partir de então, obviamente, não tem sido um fato normal, na Universidade de nosso país, a concessão de um doutorado honoris causa em Teologia. Isto não quer dizer que o fato religioso, e os saberes associados a ele, tenham estado ausentes de nossas universidades. O fenômeno religioso, como todos sabem, sempre esteve (e segue estando) presente no tecido social da Espanha e foi objeto de estudo no ensino universitário desde não poucos pontos de vista: da cultura, da história, da política, da filosofia, da sociologia, da arte, da psicologia e tantos outros saberes que ficam inevitavelmente incompletos se deles arrancamos a dimensão religiosa que sempre, de uma forma ou de outra, esteve presente na experiência humana e na convivência social.
Mas acontece que, neste caso, o doutorado é concedido a um teólogo. Com o que – prescindindo de outras considerações – estamos diante de um fato novo em nossa Universidade. Não se trata da honra que se dispensa a um professor que dedicou sua vida ao estudo de determinados saberes associados ao fato religioso. Mas estamos diante da distinção que esta Universidade faz a um teólogo, quer dizer, a um homem que procurou dedicar sua vida ao estudo, não de certos conhecimentos relacionados com a religião, mas ao estudo e à explicação daquilo que é o centro mesmo da religião e da experiência religiosa: Deus, a fé em Deus, a experiência de Deus, a crença religiosa como tal. Porque isso, e não outra coisa, é a teologia em sentido próprio.
Pois bem, isto posto, eu me coloco, desde o primeiro momento e sem nenhum subterfúgio diante de Vocês, a pergunta que deve servir de umbral à resumida reflexão que pretendo apresentar: que sentido tem (ou pode ter) a presença da teologia, e a concessão de uma dignidade singular a um teólogo, em uma Universidade não confessional e, portanto, laica? Esta pergunta, como acabo de assinalar, vai me servir de ponto de partida para as considerações que irei expor na sequência.
Mas, antes de entrar no conteúdo da minha reflexão, me parece pertinente recordar que o estudo das religiões, como sabemos, ao contrário do que ocorre na Espanha, é aceito e difundido, como sabemos, na área universitária anglo-saxã e alemã. Inclusive na França, onde se recusou a presença da religião na escola pública, se manteve o estudo do fato e da experiência religiosa, com todas as suas implicações e consequências, na L’École des Hautes Études de Paris, assim como no CNRS (Centre National de la Recherche Scientiphique). Como todos sabem, a Ilustração criticou severamente a religião e destacou o estudo de saberes como a filosofia, a fenomenologia, a psicologia, a sociologia e a antropologia, que se ocuparam amplamente da religião desde o século XIX. Por isso, sem dúvida, a França destacou nestes saberes, durante os últimos séculos, ao passo que na Espanha o que se produziu foi a crescente clericalização da religião, de forma que em nosso país não existe um espaço secular ou laico, isto é, não temos na Espanha um espaço que não seja confessional, para o estudo do fato religioso com a amplitude que implica uma perspectiva de totalidade.
Pensar o Transcendente desde a imanência
Dito isto – e dado que não é possível, no tempo que dispomos, ler o texto completo que Vocês já têm impresso –, limito-me a indicar a questão que me parece central na reflexão que lhes proponho. Meu pensamento se centra hoje em uma pergunta: como podemos pensar em Deus e falar de Deus em uma Universidade não confessional?
Para responder a esta questão, a primeira coisa (do meu ponto de vista) será ter muito claro que, por definição, Deus é o Transcendente. Ao dizer isto, estamos afirmando que Deus está para além dos limites de nosso conhecimento experimental e demonstrável. Ou seja, quando falamos de Deus, na realidade estamos nos referindo à sua realidade que não conhecemos. Por isso, quando as religiões nos falam de Deus, realmente não falam, nem podem falar, de Deus em si, mas nos falam das representações de Deus que os humanos se fazem. Porque, desde a nossa imanência, tudo quanto podemos pensar e dizer é sempre imanente. Nunca pode ser o transcendente.
Por essa razão, a representação de Deus, que nos fizemos, é inevitavelmente projetiva. Quer dizer, nossa representação de Deus é uma projeção de nossos desejos mais fortes: o poder, a bondade, a felicidade... E assim, apareceu um Deus infinitamente poderoso e infinitamente bom. Mas, ao fazer isso, não caímos na conta de que o resultado foi um Deus contraditório e um Deus perigoso. Um Deus contraditório, porque o poder sem limites e a bondade sem limites não são compatíveis com o mal que há no mundo (se é que Deus tem algo a ver com este mundo). E um Deus perigoso, porque todo Deus monoteísta é, por isso mesmo, um Deus excludente. Por esta razão, inevitavelmente, é também um Deus violento.
Quer isto dizer que o Deus, que os humanos representaram para si, é um Deus condenado inevitavelmente ao fracasso? Se nos ativermos ao que pode dar de si a única razão, por esse caminho desembocamos em uma contradição insolúvel. Mas sabemos que o ser humano não age, nem só nem principalmente a partir da contribuição do discurso racional. O mais determinante em nossas vidas não são as verdades, que brotam de conteúdos mentais. O mais determinante são as convicções, que se traduzem em formas de conduta e em hábitos de vida.
Isto posto, a afirmação capital da minha reflexão se centra em que, segundo a tradição cristã, o Transcendente se torna presente em nossa imanência. Isto é, definitivamente, o que representa e o que significa Jesus de Nazaré. Quando a teologia afirma que Jesus é a encarnação de Deus, o que na realidade está dizendo é que Jesus é a humanização de Deus. Por isso, o “Senhor da Glória”, assim como se humanizou em Jesus, pôde dizer e deixou como sentença a afirmação decisiva: “O que fizestes a um destes, foi a mim que fizestes” (Mt 25, 31-46). Nessa sentença definitiva, já não se levará em conta nem a fé, nem a religião. Só ficará em pé o humano, o que cada ser humano tiver feito com os outros seres humanos.
A consequência que, em sã lógica, se segue do que acabo de dizer é que o projeto cristão não pode ser um projeto religioso ou sagrado de divinização, mas um projeto profano e laico de humanização. Deus não se encarnou no sagrado e seus privilégios, nem no religioso e seus poderes. Deus se mesclou com o humano. Portanto, encontramos Deus, sobretudo, no profano, no laico, no secular, no que é comum a todos os humanos e no que nos une aos demais seres humanos, sejam quais forem suas crenças e suas tradições religiosas. Porque o determinante, para encontrar Deus, não é a fé, mas a ética, que se traduz em respeito, tolerância, estima e misericórdia.
O futuro da Igreja e da teologia
Para terminar, quero destacar que, na minha maneira de ver as coisas, a Igreja terá futuro e a teologia poderá subsistir na medida em que ambas – Igreja e Teologia – forem capazes de tomar um rumo diferente ao que seguiram até agora. Durante séculos, a teologia se viu a si mesma como a “regina scientiarum”, o centro de todos os saberes e o poder normativo para todas as condutas. Hoje, esta posição preponderante da Igreja e de sua teologia se tornou insustentável. Porque perdeu sua falsa consistência. O progresso da ciência e o avanço irresistível das tecnologias vão colocando as religiões no seu devido lugar. Como sabemos, as religiões resistem às mudanças e, com frequência, ficam presas à fidelidade a tradições de um passado que nunca mais será determinante na vida dos indivíduos e dos povos. O que explica o desajuste crescente entre teologia e ciência, entre teologia e sociedade.
Com frequência, se pretende atribuir este desajuste à prepotência e ao afã de comando dos dirigentes das religiões. Sem dúvida, isso pode ter uma determinada influência na atual crise religiosa. Mas o fundo da questão – segundo creio – não é essa. É a teoria sobre Deus que está falhando. E, por isso, de uma equivocada teoria sobre Deus (e sobre onde e como encontrar Deus), se costumam deduzir consequências desastrosas, sobretudo, para as pessoas, para as instituições e para a sociedade. De modo geral, são muitas as pessoas que imaginam que encontram Deus em um “Tu” transcendente, que nos é imposto a partir de um poder inapelável. Mas, insisto no fato de que essa “representação de Deus” está na base e na explicação da atual crise da fé, a crise da religião e a crise da Igreja. Porque quem acredita em semelhante “Deus” e pretende representá-lo ou falar em seu nome, o que faz, na realidade, é ir na contracorrente.
Porque cada dia é mais escasso o número de pessoas que se atrevem a seguir crendo nesse Deus contraditório e perigoso. Por isso insisti em que só podemos encontrar Deus em nossa imanência, no laico, no secular, no civil, no humano. Não excluo a importância que tem, para o homo religiosus, a oração, o louvor, a celebração sacramental e simbólica das próprias convicções religiosas. Nesta ordem de “mediações”, cada religião deve ser fiel à sua própria história, aos seus costumes e às suas práticas, contanto que tudo isso não fomente a exclusão dos outros, a separação dos povos e culturas, a intolerância e o fanatismo. Porque o importante não é a religião, mas Deus, ao qual só podemos encontrar em nossa imanência e em nossa humanidade.
Pois bem, se este é o conceito e a experiência de Deus, a teologia, enquanto saber que se ocupa do tema desse Deus que encontramos no verdadeiramente humano – se é que a teologia deve seguir existindo no futuro –, terá que ser, antes que um saber superior que ensina os outros saberes, deverá ser um sujeito humilde e modesto que sempre terá que se apresentar, desde essa humildade e modéstia, como um saber que aprende dos outros saberes o que necessita assimilar deles para conhecer melhor o humano, para interpretar a partir das ciências humanas o significado e as consequências que pode ter (e terá) a presença do Deus humanizado entre os seres humanos. Porque é no humano, e somente no imanente e humano, onde os humanos podem encontrar Deus.
Não faltará razão a Karl Rahner quando disse que: “se a teologia ainda deve continuar a existir no futuro, esta não será certamente uma teologia que se instala simplesmente e a priori “junto a” ou “por cima de” o mundo secular ou do mundo laico... É preciso, evidentemente, dizer que a ansiosa pergunta dos teólogos sobre o futuro da teologia não pode receber senão a resposta afirmativa que exige uma única condição: a aptidão da teologia para falar de Deus em um mundo secular”. E hoje, 60 anos depois que Rahner disse estas coisas, as aceleradas mudanças das últimas décadas nos empurram a ter que afirmar, com liberdade e audácia, que, daqui em diante, somente terá sentido e futuro a teologia que for capaz de trazer algum sentido à vida. E assim, potenciar a melhor resposta que podemos dar aos nossos desejos de humanidade. Quero dizer, os desejos que buscam uma forma de vida que, por ser mais plenamente humana, seja também mais plenamente feliz.
Obrigado!
Fonte: instituto Humanitas Unisinos
Assinar:
Postar comentários (Atom)
Nenhum comentário:
Postar um comentário