terça-feira, 31 de maio de 2011

Cinquentenário da Mater et Magistra

José Lisboa Moreira de Oliveira
Filósofo, teólogo, escritor e professor universitário

No dia 15 de maio de 2011 celebramos o cinquentenário da publicação da Carta
Encíclica Mater et Magistra (MM) do Bem-aventurado João XXIII. Trata-se, sem
dúvida alguma, de uma das grandes preciosidades que nos deixou este magnífico
papa. A riqueza desta encíclica está sobretudo em ter reconhecido, depois de tantos
séculos de esquecimento, que não cabe à Igreja cuidar apenas da “santificação das
almas”. É também seu dever preocupar-se “com as necessidades cotidianas dos
homens, não só as que dizem respeito à subsistência e às condições de vida, como as
que se referem ao seu bem-estar e à sua prosperidade, sob todas as formas que
possam assumir com o progresso dos tempos” (MM, 3).

O contexto histórico no qual a encíclica foi publicada era preocupante. Havia a
guerra fria entre a extinta União Soviética e os Estados Unidos, com o sério perigo de uma guerra nuclear. Estava no auge a teoria desenvolvimentista, segundo a qual o
progresso iria sanar todos os problemas sociais. Por outro lado, tornava-se cada vez
mais visível a pobreza e a miséria no mundo, resultado da exploração dos países em
desenvolvimento por parte dos países ricos. Na América Latina imperava a chamada
“Aliança para o Progresso”, através da qual os Estados Unidos procuravam manter o
controle dos povos deste continente por meio de um assistencialismo desumano e
desrespeitoso. Por meio da “Aliança para o Progresso” eles faziam chegar até nós,
como ajuda, os “restos” daquilo que nem os porcos ianques queriam.

Ainda na América Latina havia uma grande efervescência democrática e um
crescimento da esquerda, particularmente motivados pela revolução cubana.
Efervescência essa que logo depois será truncada pelos diversos e violentíssimos
golpes militares que espalharam terror, tortura e mortes por todo o continente.

Líderes como Che Guevara e Camilo Torres animavam as lutas por reformas
profundas e os anseios de verdadeira libertação de nossos povos. Dentro da Igreja, a
Ação Católica motivava e preparava os leigos e as leigas para uma atuação decisiva
através do seu método pautado por três dimensões: ver, julgar e agir.

Neste contexto João XXIII brindava a humanidade com a sua encíclica Mater
et Magistra. O documento é dividido em quatro partes. Na primeira, o papa retoma
os principais elementos do ensinamento social da Igreja, de Leão XIII a Pio XII.

Conclui essa primeira parte afirmando a necessidade de precisar e dar mais clareza a
esse tipo de ensinamento social, tendo presente os graves problemas sociais que
atormentavam o mundo naquele momento (MM, 50). Na segunda parte, João XXIII
faz as precisações doutrinárias, esclarecendo temas como iniciativa privada, a
intervenção do Estado, a complexidade da estrutura social, as vantagens e
desvantagens do progresso, o salário do trabalhador, desigualdades e injustiças,
relação entre progresso econômico e progresso social, o papel da empresa, a
participação dos trabalhadores na empresa, a questão da propriedade. Já nesta
segunda parte encontramos uma verdadeira mineira que, apesar do tempo,
conservam toda a sua atualidade. Para confirmar isso basta a seguinte afirmação: os
Estados precisam promover “uma política econômica e social que facilite o mais
amplo acesso à posse privada de bens não facilmente perecíveis, de uma casa, de uma
terra para cultivação, das ferramentas necessárias ao artesanato ou à exploração
familiar da terra, de ações de empresas grandes e médias, como ocorre, com êxito, em
certos países econômica e socialmente mais desenvolvidos” (MM, 115).

Na terceira parte da encíclica o papa enfrenta aqueles que então ele
considerava novos aspectos da questão social. O problema das relações entre
agricultura e outros setores, com destaque para o êxodo rural. A política rural,
especialmente no que diz respeito ao crédito, ao seguro social e a previdência para os trabalhadores rurais, a proteção dos preços agrícolas, cooperativismo, justa
repartição dos bens. Para João XXIII os bens da terra devem estar a serviço do ser
humano. Por essa razão, acreditava ele, é indispensável a cooperação internacional,
uma vez que muitos problemas mundiais ultrapassam as fronteiras de cada país e
ganham dimensões globais (MM, 200-202).

Na quarta e última parte da encíclica, João XXIII oferece algumas diretrizes
pastorais para a ação evangelizadora da Igreja. Partindo do princípio de que Deus é o
fundamento necessário de uma ordem de justiça, o papa propõe em primeiro lugar
que se cuide da formação e da educação dos católicos acerca dos princípios sociais
cristãos. Em seguida apresenta a base da ação social dos cristãos, enfatizando o papel dos leigos e das leigas. Insiste para que os leigos e as leigas não sejam afastados dos compromissos diretos com as questões sociais, mas, pelo contrário, sua atuação direta na sociedade e nas tarefas “temporais” deve “ser intensificada e levada a termo com sempre maior empenho” (MM, 254). A isso dá um a justificativa bíblicoteológica dizendo que Jesus não pediu ao Pai que os seus seguidores fossem tirados do mundo, mas que fossem livres do mundo (cf. Jo 17,15). Assim sendo, conclui o papa, “seria falso imaginar uma oposição, desde que a conciliação é possível, entre a perfeição pessoal e os negócios da vida presente, como se a tendência à perfeição cristã excluísse, necessariamente, o exercício das atividades temporais, ou como se a aplicação a esses negócios não pudesse ser feita sem dano para a dignidade do homem e do cristão” (MM, 255).

Relendo a Mater et Magistra cinquenta anos depois, constatei a sua extrema
atualidade. Valeria a pena, mesmo depois de tanto tempo, retomar o próprio
conselho do papa, segundo o qual este documento não deveria ser apenas meditado,
mas colocado em prática (MM, 261). Pena que estejamos vivendo um tenebroso
inverno na Igreja Católica e que a força do gelo e do frio esteja ocultando
preciosidades como essas. De fato, quase não se vê nenhum evento celebrativo do
cinquentenário da encíclica, exceto algumas iniciativas isoladas. Por parte do
Vaticano e das conferências episcopais não se nota nenhuma grande iniciativa e
nenhum incentivo a comemorar esta data e muito menos uma indicação para que se
volte à meditação e à prática do documento.

É lamentável que isso esteja acontecendo, pois a Igreja, além de perder uma
oportunidade para evangelizar, deixa de contribuir significativamente para o
crescimento da justiça social no mundo. Certamente a meditação e a celebração dos
cinquenta anos da Mater et Magistra trariam mais benefícios para a evangelização
dos que certos pronunciamentos da hierarquia sobre determinados temas.

Pronunciamentos estes que, como já estamos cansados de saber, o povo não escuta
mais e não leva mais a sério. Talvez escutasse se a Igreja não se omitisse diante de
tantas outras questões como aquele da justiça social. De fato, diz o bem-aventurado
João XXIII, citando o apóstolo Paulo, quem é “filho da luz” (Ef 5,8) “percebe, sem
dúvida, com maior nitidez, as exigências da justiça nos vários setores da atividade
humana, mesmo onde são maiores as dificuldades geradas por um apego imoderado
de tantos homens aos próprios interesses, à própria pátria ou à própria raça” (MM,
257).

Porém, lembra ainda o papa, para que haja essa sensibilidade cristã é
indispensável que a Igreja cuide seriamente da formação dos cristãos e das cristãs
acerca da justiça social. Mas para que haja formação séria é fundamental a escolha de
um método. Não valem quaisquer métodos, especialmente aqueles arcaicos e
escolásticos. Por isso, segundo João XXIII, o melhor método para a formação nos
princípios da justiça social é aquele que depois foi consagrado pela Igreja latinoamericana:

conhecer a situação concreta, examinar essa realidade à luz da Palavra e
da doutrina da Igreja e, por fim, agir “de acordo com as circunstâncias de tempo e de
lugar. Essas três etapas são comumente expressas pelas palavras ver, julgar, agir”
(MM, 236). Segundo o papa, é necessário “que os jovens, não só conheçam esse
método, mas o empreguem, concretamente, na medida do possível, a fim de que os
princípios adquiridos não permaneçam para eles no campo das ideias abstratas, mas
sejam traduzidos na prática” (MM, 237).

Um dos sinais mais evidentes do inverno tenebroso da atual Igreja,
especialmente aqui na América Latina, é o aborto progressivo deste método.
Documentos recentes dos episcopados e das Igrejas locais revelam a intenção
premeditada de enterrar definitivamente este precioso legado consagrado por um
documento tão valioso do Magistério da Igreja.

É triste constatar o recuo evidente dos eclesiásticos nesta questão. E mais triste
ainda é perceber quanto bem deixam de fazer com esse retrocesso. Porém, devemos
conservar a esperança, sabendo que ninguém é dono Espírito de Deus que age
“conforme ele quer” (1Cor 12,11). Quem sabe, de repente, o Paráclito pode suscitar
um novo Pentecostes na Igreja, enviando-nos alguém como João XXIII, capaz de
sacudir a poeira de conservadorismo amontoada nos ambientes eclesiásticos.
Alguém que traga mais liberdade para dentro da Igreja, uma vez que “Cristo
nos libertou para que sejamos verdadeiramente livres” (Gl 5,1). E “ninguém aprende
a viver bem em liberdade, a não ser procurando usar bem da liberdade” (MM, 232).

Vale, pois, concluir este breve texto com mais algumas palavras de João XXIII, que
podem muito bem ser aplicadas também à situação atual da Igreja: o contraste entre
“a perfeita dignidade dos perseguidos e a refinada crueldade dos perseguidores, se
não fez com que estes caíssem em si, tem levado, entretanto, muitos homens à
reflexão” (MM, 216). Portanto, vamos refletir bastante e estimular outros a fazerem a
mesma coisa, pois “quem sabe faz a hora, não espera acontecer” (Geraldo Vandré).

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