A fazenda de Shouichi Matsumoto é tão antiga, que ele nem mesmo consegue determinar sua idade. “Veja, nenhum terremoto, incluindo o último, a fissurou,” diz o septuagenário, acariciando a magnífica construção. “Ela resistiu a tudo durante séculos, e agora precisamos deixá-la por causa de um risco que nem conseguimos ver”. Por causa da radioatividade emitida pela usina acidentada de Fukushima, a 25 quilômetros de lá, seu espaço no município de Katsurao se situa na parte da faixa de confinamento transformada em “área de evacuação planejada”, que deve ter seus habitantes retirados até o dia 31 de maio.
A reportagem é de Jérôme Fenoglio, publicada pelo Le Monde e reproduzida pelo Portal Uol, 28-05-2011.
Shouichi Matsumoto, sua mulher Shigeko e seus filhos irão no final do mês para o quarto de um complexo hoteleiro, à beira de um campo de golfe, a 50 quilômetros de lá. Mas contemplar os gramados não apagará a dor de ter abandonado seu verde vale. Shigeko fala sobre isso sussurrando: “Começamos a entender que tudo aquilo que sempre fizemos, tudo aquilo que gostamos de fazer, agora será proibido para nós: colher arroz, cultivar tabaco e, sobretudo, cuidar das vacas.”
Quatro vacas no total, cada uma com seu nome, da raça que fez a reputação da pecuária local em todo o Japão. Por elas, Shouichi enfrentou a radiação. Ele permaneceu, sozinho, enquanto a radiação invadia os vales, forçando sua família e os outros habitantes do vilarejo a se recolherem em um abrigo distante. No início, ele ficou tão apavorado que corria do estábulo para casa, para ficar o mínimo de tempo possível do lado de fora. Depois se acostumou, virou o guardião improvisado do vilarejo, zelando pelos habitantes e cuidando dos rebanhos dos vizinhos.
Estes foram voltando aos poucos, ao longo do mês de abril, primeiramente fazendo bate-voltas a partir do centro de refugiados, e depois se reinstalando no local. Para todos, uma obsessão se tornou mais forte que o medo: a saúde de suas vacas, que tanto emagreceram durante essas semanas de abandono. Hiroshi Kanno, 41, fala das suas como se fossem membros da família. Nesta quinta-feira (26), ele empurra de forma afetuosa, para dentro do caminhão, metade de seu rebanho de 14 cabeças. Elas serão vendidas no leilão de Motomiya, durante uma das sessões dedicadas aos animais provenientes das proximidades da usina.
Os animais de Hiroshi Kanno foram testados: eles não apresentam nenhum sinal de contaminação radioativa. Ele espera, portanto, conseguir um preço decente. No mercado de Motomiya, não são os preços que estão desabando, mas sim os criadores, muitas vezes idosos, quando percebem que sua razão de viver desaparecerá junto com a venda de seus últimos animais. Para resistir a essa angústia, Hiroshi Kanno decidiu não se desfazer de todas suas vacas. As outras, junto com as de Shouichi Matsumoto, irão para um estábulo coletivo, fora das regiões muito contaminadas.
Mas os dois criadores sabem que essa solução é só provisória. “Isso nos custará muito caro, especialmente porque a forragem deverá vir de muito longe”, diz Hiroshi Kanno. “E, por enquanto, não estamos recebendo nenhuma ajuda por causa do perverso sistema implantado pelo governo: até o dia 31 de maio, consideram que saímos por iniciativa própria. Portanto, não somos indenizados. Apesar de tudo, todos optaram por partir, porque depois dessa data corremos o risco de nos encontrar na mesma situação em que estão aqueles dentro da zona interditada”.
No centro de refugiados, Hiroshi de fato viveu com outros criadores da parte de Katsurao inclusa no semicírculo evacuado no dia 13 de março. Eles lhe contaram seu terrível dilema: continuar a deixar seus animais morrerem de fome ou abatê-los, como as autoridades estão exigindo agora. “Entretanto, nessa parte da área, suas vacas não estão mais contaminadas do que as minhas a 5 quilômetros de lá,” afirma Hiroshi. “Essas delimitações são absurdas.”
Assim, a faixa dos 20 quilômetros está fadada a se transformar em um imenso abatedouro para os cerca de 3.400 bovinos, 30 mil porcos e 630 mil frangos que sobreviveram ao abandono. Essas mortes se somarão às dos animais de estimação que seus donos não conseguiram salvar.
Nos breves retornos organizados pelas autoridades, essas pessoas usam sufocantes vestimentas antinucleares para passar duas horas em suas casas, abandonadas no auge do pânico, muitas vezes com o único intuito de reencontrar o cachorro ou o gato que elas não foram autorizadas a levar. É comum voltarem emocionadas por terem encontrado um cadáver ou constatado uma ausência. E sua angústia se junta à angústia sem fim dos criadores de Fukushima.
http://www.ihu.unisinos.br/index.php?option=com_noticias&Itemid=18&task=detalhe&id=43735
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