Se os votos de mudança para o Haiti do presidente Michel Martelly devem se tornar realidade, eles terão que ser sentidos por jovens como Mikency Jean. Aos 22 anos, nascida em Cap Haitien, Jean foi para a capital Porto Príncipe aos 11 anos de idade para trabalhar como empregada doméstica (ou restavek) para sua tia. Jean não gosta de se demorar muito sobre esse trabalho – há pouco a dizer sobre os dias de 12 horas na limpeza e na cozinha sem remuneração.
A reportagem é de Chris Herlinger, publicada no sítio National Catholic Reporter, 27-05-2011. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Ao contrário, Jean prefere falar sobre a sua participação em um programa de treinamento promovido pela igreja para as jovens restavek e sobre as possibilidades de um trabalho remunerado e de uma carreira como cozinheira de restaurante.
O sonho inicial de Jean era de ser enfermeira, embora ela não pense mais sobre isso, porque ela não tem os meios para estudar enfermagem. Mesmo assim, sua formação atual tem lhe dado um sentido de direção e os sonhos para uma vida melhor.
No entanto, Jean disse que ela e outras pessoas da sua idade estão temerosas com relação ao futuro. Elas não têm certeza se a sua formação irá finalmente lhes garantir os empregos que querem. "Falamos sobre isso o tempo todo", disse ela, "e não sentimos que há um futuro brilhante para o país".
É precisamente esse sentimento de pessimismo – baseado na realidade e no pragmatismo e fortemente sentido entre os jovens do Haiti – que Martelly enfrenta ao começar a sua presidência em um país que ainda se recupera de anos de incerteza política, inquietação econômica, agitação social e, claro, 16 meses de recuperação de um terremoto devastador.
Em seu discurso inaugural no dia 14 maio, o ex-cantor de carnaval pediu o fim do que ele chamou de humilhante "política da mendicância", em uma aparente referência aos anos de dependência haitiana à ajuda internacional. "Nós somos trabalhadores, nós trabalhamos muito bem quando nos são dadas as oportunidades", disse ele. "Haitianos, este país é nosso, vamos nos unir para refazer o nosso país".
Ao mesmo tempo, Martelly convocou a uma restauração da "autoridade do Estado, o Estado de Direito". Ordem e disciplina, disse, "vão prevalecer em todo o território nacional". A ordem, disse, será necessária para que, fora do país, os "investidores [possam] ganhar confiança, venham investir, construir, para que possamos encontrar o desenvolvimento que eu busco" – o desenvolvimento, explicou, que permitirá que os haitianos "saiam da pobreza, para que vocês possam viver de outra forma".
Martelly pediu que a comunidade internacional tenha confiança nele, encontrando em seu novo governo "transparência e honestidade. Este é um novo Haiti, um novo Haiti aberto aos negócios agora".
Qualquer presidente do Haiti deve se dirigir a públicos diferentes – por isso, o apelo à unidade nacional interna e a promessa de mudança, enquanto, ao mesmo tempo, são atraentes para os investimentos externos, dificilmente parecem ser surpreendentes, embora os dois objetivos raramente tenham estado em sincronia em um país onde a dominação externa tem sido uma norma atroz.
O futuro do Haiti
Martelly terá sucesso? Pode ser difícil – o pessimismo de Jean Mikency mal chega perto da apreensão e da decepção que muitos haitianos sentem com relação ao seu governo.
Em termos de serviços de saúde, por exemplo, o governo haitiano é uma presença vaga, particularmente em áreas rurais pobres. "O governo não existe", disse o Dr. Jean-Gardy Marius, um médico haitiano que supervisiona uma clínica em Rousseau, cerca de 70 quilômetros ao norte de Porto Príncipe. A clínica recebe ajuda de igrejas dos EUA e da Europa.
"O governo haitiano nem sabe quantas pessoas vivem neste país", disse Marius. "Nunca tivemos um governo que tenha pensado no povo haitiano. O governo apenas trabalhou pelas suas famílias ou amigos. Nunca houve uma política nacional. Nunca".
"Você trabalha contra muitos fatores neste país. As pessoas das áreas rurais não têm nada. Nada. Eles não têm esperança. Inúmeras pessoas estão vivendo pela bondade de Deus".
Os haitianos frequentemente invocam a bondade de Deus, e um sentimento de esperança na vida social realmente existe. As cooperativas de alimentos nas regiões do noroeste haitiano e de Artibonite, por exemplo, têm conseguido, desde a década de 1990, cultivar e colher juntando recursos expressamente porque o Estado não forneceu aos agricultores coisas básicas como terra ou sementes.
A questão dos alimentos e da fome no Haiti tem uma distinta "conotação política, porque o governo não está presente e não tem um sistema para fornecer crédito agrícola aos agricultores", disse o organizador de cooperativas Cher-Frere Fortune. Um Estado operante e que funciona – "um Estado estruturado" – deveria ser capaz de "levar os serviços às áreas onde as pessoas vivem", disse. O governo haitiano não tem sido capaz de fazer isso, acrescentou.
Compromisso real ou promessa vazia?
Em seu discurso inaugural, Martelly abordou a questão dos problemas rurais e da dependência quase paralisante do Haiti em Porto Príncipe, dizendo que não é só a capital atingida pelo terremoto que "deve ser reconstruída, é todo o país que precisa ser construído, reconstruído... reflorestado, ser desenvolvido". O novo presidente ainda disse especificamente que sementes devem ser disponibilizadas aos agricultores.
Isso representa um compromisso real ou é apenas mais uma promessa política vazia? Fortune, assim como diversos outros na casa dos seus 40 anos que trabalham para as agências de ajuda humanitária no Haiti, têm uma abordagem bastante fria com relação Martelly, ainda conhecido pelo seu nome artístico de "Sweet Micky".
Enquanto Fortune e outros admiram o novo presidente por ter conquistado a política haitiana com uma plataforma populista de mudanças durante as recentes eleições nacionais, eles também tiveram muitos desapontamentos políticos em suas vidas para abraçar Martelly plenamente.
"Um dos problemas que temos no Haiti – e temo por causa disso pelo presidente Micky – é que os presidentes tentam mudar o sistema, mas é o sistema que os muda", disse Polycarpe Joseph, um leigo de formação jesuíta e líder católico do Centro Ecumênico para a Paz e a Justiça, centro educacional de Porto Príncipe que promove o programa de formação para as jovens restavek.
"Veja o [ex-presidente Jean-Bertrand] Aristide", disse Joseph. "O sistema o devorou. É a forma que o sistema está construído. Suas mãos estão amarradas".
Talvez sim. Mas em uma clínica de cólera católica na área de Wharf Jeremie na Cité Soleil – uma das mais áreas complicadas da capital haitiana – parece haver uma esperança comedida para o novo presidente, especialmente entre aqueles que uma vez apoiaram Aristide.
"Aristide foi o único presidente que se preocupou com os pobres", disse a vendedora Doudeline Surena, 45 anos. "Não sei se ele [Martelly] vai ser assim. Mas certamente eu espero isso".
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