sábado, 28 de maio de 2011

Imigrante ou refugiado: diferentes perspectivas de vida

Antropóloga, a pesquisadora Denise Jardim afirma que é importante reconhecer que as pessoas que pedem refúgio não só vivenciaram uma situação de violência, mas tiveram os direitos humanos violados
Por: Anelise Zanoni
Diferentes motivações e experiências de vida movem grupos de estrangeiros a encontrarem um lar no Brasil. As denominações para cada tipo de pessoa envolvida na mudança e o resultado prático e emocional são bem mais complexos do que podemos imaginar. Em entrevista por e-mail à IHU On-Line, a antropóloga Denise Jardim explica que, antes de pensarmos sobre as gêneses que envolvem a imigração, é preciso conhecer as relações feitas em torno das palavras “imigrante” e “refugiado”.

“À primeira vista, os termos são imprecisos e intercambiáveis, mas se ambos parecem sempre buscar melhores condições de vida e, em alguns sentidos, compartilham um sentimento de exílio voluntário ou involuntário, os termos guardam singularidades que devemos conhecer com maior cuidado”, explica.

Sob essa ótica, torna-se necessário compreender que o imigrante tem a perspectiva de retorno, mesmo que imaginada. O refugiado, como diz Denise, “raramente consegue uma reinserção no local de origem, seja porque aquele lugar social não existe mais, ou porque há enormes limitações ao ‘retorno’. Além disso, a situação de violência, de sequela psicológica, também significa um desterro em prol de sua vida.”
Antropóloga associada do departamento de Antropologia e Programa de Pós-graduação em Antropologia Social da Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS, Denise Jardim é mestre e doutora na área. Realizou estágios de pós-doutorado no departamento de antropologia social da Universidad Complutense de Madri e trabalha com identidade étnica e minorias nacionais, com especial atenção à trajetória de imigrantes palestinos na América Latina.

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Em sua opinião, como a sociedade contemporânea deveria perceber o fenômeno da imigração, principalmente tendo em vista a grande produção de refugiados e de pessoas em busca de melhores condições de vida?

Denise Jardim - É preciso pensar um pouco sobre as diferentes motivações que estão na gênese de uma imigração para compreender melhor o que está em jogo quando distinguimos “imigrantes” de “refugiados”. À primeira vista, os termos são imprecisos e intercambiáveis, mas se ambos parecem sempre buscar melhores condições de vida, e em alguns sentidos, compartilham um sentimento de exílio voluntário ou involuntário, os termos guardam singularidades que devemos conhecer com maior cuidado.

Na imigração contemporânea alguém que organiza sua saída e seu destino tem inúmeras dificuldades a enfrentar nesse empreendimento. Pode estar sendo motivado por razões econômicas, se assim reduzirmos a busca de uma melhoria de sua vida material. Mas percebe-se diretamente um sujeito que se desloca e busca reorganizar sua vida e isso implica criar novas formas de maternidade (ao deixar filhos sob cuidados de outros parentes) ou proteger-se e usufruir dos aprendizados em uma rede de conterrâneos - tão estranhos a ele quanto o novo país que busca inserção. Portanto, mesmo que signifique um recomeço, um projeto de melhoria econômica, pode iniciar com um desembolso financeiro importante e custoso e um alto custo na sua vida pessoal e afetiva. Imigrar, por vezes, é parte da solução de problemas (de ordens bastante diversas) no lugar de partida, ou parte de uma dinâmica de reunificação de famílias que vivem em países diversos e que para reencontrar-se têm de imigrar novamente.


Nova percepção

E o que isso difere de nossa percepção sobre refugiados? Queria chamar a atenção para o fato de que o termo refugiado começa a ser concebido já durante a guerra civil espanhola na Europa para referir aquelas pessoas, civis, que saíram de sua casa ou cidade, atravessaram o monte Pirineus no inverno a pé e não tinham perspectiva de retorno à sua moradia. Refiro-me ao bombardeio da cidade Basca (Guernica) por exércitos da Alemanha e a cumplicidade de Franco. O termo emerge após a Segunda Guerra Mundial e, em 1951, é concebido como o estatuto dos refugiados vinculado à criação do Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados – Acnur que trata especificamente sobre a proteção dos direitos humanos e os compromissos entre Estados signatários.

O termo “refugiado” está entrelaçado ao direito internacional, e o compromisso firmado após a Segunda Guerra Mundial quanto à proteção de civis durante conflitos bélicos entre exércitos (militares de ofício). Concentra-se no compromisso firmado entre Estados nacionais em proteger civis que foram vítimas de conflitos armados. Na experiência sul-americana, o estatuto de refugiado inclui a percepção de que os compromissos entre Estados são também relativos à proteção do indivíduo perante a violência do próprio Estado em relação a cidadãos. Portanto, o “refúgio” se torna uma figura jurídica que vai tomando contornos no direito internacional e também, entre os Estados signatários, detalham-se as condições de elegibilidade, quando e que condições um sujeito pode receber a proteção em um refúgio.

Resumidamente, temos as seguintes informações:

* O Estatuto dos Refugiados, de 1951, trata do compromisso entre Estados com os direitos de civis vítimas da Segunda Guerra Mundial e seu direito a proteção e retorno.

* O protoloco de 1967 detalha o que seria a definição de refugiado e amplia a noção para uma definição calcada na “situação” vinculada ao temor sobre sua vida e, portanto, não se restringe aos fatos da Segunda Guerra Mundial. O protocolo e a carta de Cartagena, de 1984, expressam os desdobramentos de debates sobre direitos internacionais dos direitos humanos no século XX e dos compromissos que estados nacionais deveriam ter com direitos humanos. A declaração de Cartagena deve ser entendida como parte da trajetória dos direitos internacionais dos direitos humanos na América latina, do compromisso com os princípios dos direitos humanos e de uma adesão efetiva, prevista constitucionalmente, aos tratados e protocolos relativos ao refúgio. Mas a singularidade do estatuto de refúgio não esgota tudo sobre a questão; não é um tema somente jurídico.


IHU On-Line – Além da forma regulamentada no direito internacional, para antropólogos e para a maioria das pessoas, indaga-se sobre quem é o refugiado e por que o Brasil os recebe?

Denise Jardim - Pode-se falar do ponto de vista jurídico. Ao firmar tratados e declarações, os Estados assumem tais prioridades. Pode-se pensar somente como pressões internacionais. No entanto, deve-se lembrar que a Constituição de 1988 se define receptiva promoção dos direitos humanos e abertura a normatividades que melhor abarquem a proteção de direitos e cidadania.
Por isso, vale a pena falar de aspectos menos jurídicos que nos colocam diante e sobre parte das dinâmicas do refúgio, aspectos mais gerais que nos permitem diferenciar o imigrante (e as políticas migratórias relativas à permissão de trabalho) dos refugiados.

Para a elegibilidade (jurídica) de um sujeito em condição de refugiado observa-se sua autodeclaração de sentir sua vida ameaçada no seu local de origem, expressando um temor fundado e a impossibilidade de retornar ao local de moradia. Isso quer dizer que os pedidos de refúgio são singulares, pois as fontes de ameaça podem partir da própria vizinhança no local de origem, podendo ser desde ameaças provenientes de milícias, parentes. Mas, o quadro de violência física que incide sobre o sujeito ou em suas relações pode ser o desencadeador do pedido de ajuda.


IHU On-Line – O que significa o retorno de um imigrante ou refugiado à terra natal e qual sua relação com o pertencimento ao local de origem?

Denise Jardim - É importante ter em mente que as pessoas que pedem refúgio não só vivenciaram uma situação de violência - já ouvi brasileiros falarem sobre a banalização da nossa violência como motivo para desautorizar a atenção aos refugiados. Bem, essa situação de violência, de sequela psicológica, também significa um desterro em prol de sua vida. Talvez isso diferencie a violência que potencialmente imaginamos como banal e vivenciada por qualquer brasileiro daquela que faz com que alguém tenha que ingressar em um “programa de proteção” através do qual deverá refazer sua vida. O imigrante tem a perspectiva de retorno, mesmo que imaginada, diante de si. O refugiado raramente consegue uma reinserção no local de origem, seja porque aquele lugar social não existe mais, ou porque há enormes limitações ao “retorno”, entre elas o desejo de não reviver uma situação de violência ou complicações político-ideológicas a serem enfrentadas.

Há programas de retorno de refugiados no Camboja levados por organismos internacionais que demonstram que esse é um novo percurso de enfrentamento de dificuldades emocionais e práticas. O exilado pode ser recepcionado como um “traidor”, e não exatamente como um sobrevivente.


IHU On-Line – Quais semelhanças e diferenças existem entre os imigrantes e os refugiados que são instalados no Rio Grande do Sul?

Denise Jardim - Em pesquisas anteriores à chegada dos refugiados, conheci as dinâmicas familiares de imigrantes palestinos em Pelotas, Rio Grande, Chuí e, posteriormente, o tema foi tratado por Roberta Peters em Canoas e Porto Alegre (todas cidades gaúchas). A diferença já se sente no modo como organizam redes de relações, contatos e, portanto, são famílias que mantêm relações com famílias locais e, ao mesmo tempo, gerem uma parentela em diferentes cidades do Brasil e em países sul-americanos. No início dos anos 1990, os filhos de imigrantes palestinos nascidos no Brasil atingiam a fase adulta, o que fazia com que o Chuí fosse um pouco diverso da experiência porto-alegrense e canoense. Era uma migração mais antiga e estabelecida no comércio local. Relatavam inclusive que declinaram o estatuto de refúgio, tinham possibilidades de conseguir vistos permanentes para sua saída em busca de uma vida melhor. As condições de ingresso na ida nacional de outro país não andam muito boas; é o bastante obter um visto permanente já no país de origem na atualidade. Por meio dos itinerários dos imigrantes contemporâneos aprendemos que o mundo mudou muito.

Segundo nota explicativa do Acnur, vieram 86 palestinos de um campo de refugiados, na maioria muçulmanos, de famílias diversas e com experiência também muito diferente com relação a itinerários. A questão palestina é algo que precisamos dimensionar em um tempo mais longo. Há uma migração regional no Oriente Médio que, até então, era possível para os palestinos, mas também com restrições. Eles eram recebidos como cidadãos de segunda classe na Jordânia ou Iraque, países que também se valem da questão palestina como argumento de enfrentamento geopolítico. A diferença entre esses palestinos e os imigrantes é que, de fato, estão experimentando uma série de intermediações institucionais, processos de seleção e translado que os imigrantes que entrevistei não quiseram se submeter ou não percebiam como uma “boa saída”. Isso também decorria do fato de não haver, nos anos 1950 e 1960, políticas de reassentamento. Ou seja, um terceiro destino providenciado pelos organismos internacionais. Só havia duas possibilidades como refugiado: ir e depois decidir-se pelo retorno. A trajetória das famílias imigrantes no Rio Grande do Sul, hoje, é de inúmeras redes que seguem o fluxo da vida familiar e da busca de pontos comerciais mais favoráveis.


IHU On-Line - Os palestinos são um terço da população refugiada do mundo. Existem características e premissas que acompanham essas pessoas quando exiladas na América Latina?

Denise Jardim - Não me arriscaria a fazer uma teoria geral das premissas de um exilado. Mas acho que todos nós aprendemos muito quando paramos para escutar como as pessoas refazem suas vidas em outro lugar. Infelizmente, nosso ouvido prefere escutar sobre “como o Brasil é bom” e reduz as narrativas e reflexões do exilado a um processo frio de “adaptação” ao nacional.


IHU On-Line – Como você percebe o Rio Grande do Sul como porta de entrada para esses imigrantes e refugiados de origem palestina? Há identificações entre o Estado e os sujeitos?

Denise Jardim – Quando, em 2007, a ASAV me consultou sobre o acolhimento dos palestinos, minha primeira preocupação era com nossa dificuldade idiomática, e não a deles. O árabe é quinto idioma mais falado no mundo atual e o português é o sexto. Do meu ponto de vista, ao mobilizar intérpretes, mediadores e especialistas em saúde, eu tinha expectativa que a vitalidade da comunidade palestina em Porto Alegre, que tem profissionais formados e capazes de comunicar-se em árabe, fosse uma vantagem a ser usufruída no acolhimento. Não sei como isso se passou. Mas para os imigrantes na atualidade e, especialmente, para sujeitos que estão refazendo sua vida no mundo, o mundo já é bem maior do que o nosso Estado.


IHU On-Line – Em seus estudos sobre imigrantes palestinos, quais são as maiores dificuldades de adaptação registradas?

Denise Jardim - As pessoas falam da dificuldade de comunicação e pressupõe que religião ou relações de gênero seriam fronteiras muito nítidas e que deveriam ser observadas como fonte de dificuldades. Na realidade, essas diferenças devem ser conhecidas e reconhecidas como fonte de aprendizados recíprocos. Penso que a primeira dificuldade é sempre idiomática e de expectativas divergentes entre os que recepcionam e os que chegam. Aprender idiomas como o inglês e o espanhol seriam ferramentas de reinserção laboral mais sintonizadas com a ideia de colocar esses sujeitos em contato com carreiras e reencontros familiares mais amplos. Creio que ainda navegamos de forma muito provinciana, na perspectiva da integração e adaptação, como se torná-los parte de nossas vidas fosse uma forma positiva de adaptação. A perspectiva bem intencionada da integração corre o risco de reduzir a capacidade desses sujeitos, a longo prazo, de reconectarem-se com familiares em outros países. Mas, por certo, as pessoas que levaram a recepção a esses refugiados vivenciaram aspectos mais sensíveis sobre esse período de reconstrução de vidas de pessoas vítimas de violência e que foge de qualquer teoria geral sobre os refugiados. Cada caso é uma vida sendo reconstruída.

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