Egydio Schwade
Casa da Cultura do Urubuí-CACUÍ/Amazonas
Adital
Quando se está discutindo o Código Florestal Brasileiro é salutar recordar a experiência humana já vivida nesta parte do planeta, de antes da sujeição ao modelo de organização política estatal.
A sobrevivência da humanidade está hoje ameaçada pela violência física e cultural que a terra sofre e pela depredação dos recursos alimentícios originários ou próprios a cada região do planeta. Assim a sobrevivência de todos os viventes depende de uma mudança da política e da economia dos Estados Nacionais e, principalmente, de um consciente reconhecimento de economias distintas da crematística* praticada pelos Estados.
Muitos povos, comunidades, organizações e lideranças, vivem hoje preocupados atrás de créditos e de produtos de mercado para sustentar necessidades artificiais e ficções criadas ao longo da História humana. E nesta ânsia se esquecem da alimentação e da saúde das pessoas, esquecem-se da preservação da natureza, da sua cultura e da economia da reciprocidade, fundamentos da abundância, da autonomia e da razão do seu viver. A quem interessa mesmo o PIB?
Quando os portugueses chegaram à costa brasileira mais de 500 gerações já haviam vivido uma consciente adaptação ao ambiente desta terra. A sua vida se orientava, sabiamente, na perspectiva de um futuro ilimitado e comum a toda a vida na terra: humana, animal e vegetal. A natureza não era entendida apenas como o espaço antropocêntrico, mas como espaço comum de todos os viventes, todos igualmente importantes. Não lhes ocorria sentirem-se donos absolutos de tudo a ponto de poderem a seu bel-prazer, capricho ou interesse, destruir ou fazer comércio com a Criação.
Milhares de pequenas comunidades espalhavam-se pelo continente, se auto-sustentavam por meio de uma economia de reciprocidade. Grandes roçados cercavam todas as comunidades. E o que neles faltava era colhido da floresta, dos campos e das águas comunitárias. Quando em algum local a presença humana encolhia a vida animal e vegetal as comunidades transferiam a sua sede para que a vegetação nativa e os animais se pudessem reconstituir no seu vigor original.
A presença das pessoas, amigos ou parentes, trazia, normalmente, ao seio das comunidades, uma mensagem de bem-estar e de fartura. Os visitantes traziam amor e esperança, a partir dos frutos da terra, principalmente de novos alimentos que domesticavam ou descobriam na floresta. Assim, a mensagem das aldeias, de perto e de longe, vinha acompanhada com o gesto da mão cheia de vida, pela permuta de conhecimentos, saberes, técnicas e de espécies vegetais. Desta forma, os povos pré-colombianos se moviam garantindo espaço igual, não só para os humanos, mas para todos os seres vivos.
Todas as histórias sobre a origem do mundo desses povos americanos, falam do deslumbramento das pessoas diante da beleza da terra e diante da variedade de animais e vegetais. A pessoa comportava-se como chegante e não como dona de tudo. Na sua mitologia as pessoas se confundem, muitas vezes, propositadamente, com animais e plantas.
Para os povos indígenas a beleza, a variedade e a abundância da terra não podiam acabar jamais e deveriam ser enriquecidas pela presença humana. A Mãe-terra era vista numa amplidão e temporalidade indefinidas, cujo habitat o homem procurava melhorar sempre, principalmente em fartura de alimentos. Assim, quem tivesse visitado a Amazônia 9.000 anos a.C. e tivesse acompanhado a expedição de Orellana em 1.540, se teria admirado muito com as melhorias introduzidas e com os alimentos novos criados, tudo sem causar impacto negativo na dinâmica do ambiente.
Toda a cultura espiritual dos povos indígenas reflete a preocupação pela manutenção das variedades, da beleza e da abundância como patrimônio de todos. Lendas, como a do Curupira, educavam grandes e pequenos em filosofias preservacionistas. As comunidades zelavam pelas fontes, pela diversidade e pela abundância de proteínas e vitaminas, animais e vegetais.
Fr. Carvajal, o cronista da expedição de Orellana, em 1540, escreveu:
"grande quantidade de carne, peixe e biscoitos, tudo com tanta abundância que era suficiente para alimentar uma força expedicionária de mil homens durante um ano inteiro”. E 100 anos depois, em 1641, o jesuíta Acuña, que acompanhou a expedição de Pedro Teixeira (um exército 2.000 índios, 87 soldados, mais os tripulantes), de Quito até Belém do Pará, acrescenta:
"Y lo que más
admira es el poco trabajo que cuestan todas estas cosas, como se puede colegir de lo que cada día experimentáramos en nuestro Real, de donde, después de llegar a la dormida, y después de ocupados los Indios amigos que nos acompañaban, en hacer barracas suficientes para todo el alojamiento, en que se consumía mucho tiempo, se repartían unos por tierra, con perros, en busca de caza, y otros por agua, con solo sus arcos y flechas; y en pocas horas veíamos venir a éstos cargados de pescado, y a aquéllos con caza suficiente para que todos quedásemos satisfechos. Lo cual no era un día o otro, sino todos cuantos duró el viaje, que fué tan cumplido como ya dije. Maravilla digna de admiración y que sólo se puede atribuir a la Paternal Providencia de aquel Señor, que con solos cinco panes y pocos peces sustentó cinco mil hombres, quedándole el brazo sano y las manos llenas, para mayores liberalidades” (Monumenta Amazônica: "Informes de jesuitas en el Amazonas 1660-1784”. Iquitos: CETA,1986).
Não era apenas à Providência Divina que se devia essa abundância, mas principalmente a uma Economia Divina, respeitada pelos humanos.
Casa da Cultura do Urubuí, 30 de abril de 11.
Nota: *Aristóteles distingue "Economia” de "Crematística”. "a economia se limita à obtenção dos bens necessários à vida e úteis à família ou ao Estado”. "Crematística é a arte de fazer dinheiro” (Apud Marx, Karl. O Capital 21ª. Edição Vol. I pg.183).
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