quarta-feira, 4 de maio de 2011

O desaparecimento da família tradicional. Entrevista com Mário Fleig

IHU - Unisinos
Instituto Humanitas Unisinos
Adital

Desaparecimento. Na opinião do psicólogo e doutor em Filosofia Mário Fleig, esse é o possível destino para a família tradicional extensa, organizada segundo o modelo patriarcal, com relações de parentesco estabilizadas. Para ele, a formação de catástrofes estruturais no processo de constituição do sujeito seria determinada pelo tipo de grupo familiar, sua composição, sua inserção social e o valor que aí tem seu chefe, o pai. "Ora, a família moderna, desfalcada do pai, propicia as condições favoráveis para a estagnação da maturação subjetiva e para eclosão da psicose”, explica.

Ao longo da entrevista por e-mail à IHU On-Line, o especialista explica o tornar-se mãe e suas consequências, com base em conceitos de Lacan e Freud. "Lacan, de modo mais específico, irá caracterizar o tornar-se mãe como a operação de uma função, e não apenas um papel, a função de ser o primeiro outro para o bebê”, diz. Por outro lado, "Freud já havia se dado conta que o tornar-se mãe tem a ver com a relação da jovem com sua própria mãe”.

Além da discussão teórica, Fleig levanta a polêmica sobre a concepção dos filhos sem a presença da imagem masculina, por meio das fertilizações in vitro: "pai impossível de ser conhecido, incerto e abstrato e por isso mesmo fundador da lei e da tradição e capaz de produzir uma ruptura na certa da evidência sensorial”, denomina.

Graduado em Filosofia pela Faculdade de Filosofia Nossa Senhora Medianeira, em São Paulo, e em Psicologia pela Unisinos, Mário Fleig é mestre e doutor em Filosofia. Atualmente é professor titular da Universidade do Vale do Rio dos Sinos, tem experiência na área de Filosofia, com ênfase em metafísica. Como psicanalista, é membro da Association Lacanienne Internationale e da Escola de Estudos Psicanalíticos.

Confira a entrevista.


IHU On-Line – O que é ser mãe hoje? Falar sobre o papel dela seria suficiente para situar a denominação que fazemos?


Mário Fleig - Podemos tomar como uma constatação aceita que as profundas mudanças que estão em curso em nossa civilização, decorrentes das diversas revoluções sociais e científicas, têm produzido efeitos importantes na família e na vida social e psíquica de cada um de nós. Como toda revolução, estes efeitos são ao mesmo tempo benéficos e problemáticos. A família tradicional extensa, organizada segundo o modelo patriarcal, com os lugares de autoridade estabelecidos, na qual as relações de parentesco, as formas de descendência, de filiação e de laço social tinham uma configuração estabilizada, hoje se encontra em vias de desaparecimento. As novas famílias, desfeitas e recompostas, apresentam configurações inusitadas, como soluções inovadoras, nem sempre satisfatórias para seus membros. Especialmente para aquela que irá ocupar o lugar de mãe, as dificuldades atuais são de outra ordem.

Duas perspectivas

Gostaria de discutir alguns aspectos destas novas dificuldades, a partir do que o trabalho clínico tem me mostrado. Freud se defrontou com as dificuldades do tornar-se mãe em seu trabalho clínico muito cedo. Ele nos relata o caso de uma jovem mãe que não conseguia amamentar seu primeiro bebê, para desespero dela e de sua família. Foi chamado pela família e, diante do impasse, resolve fazer uso do recurso psicológico que dispunha na época. Hipnotiza a paciente e lhe ordena, numa sugestão pós-hipnótica, que ao acordar ela reclamará de sua própria mãe que não está lhe dando comida.
Após terminar a sessão de hipnose, sai imediatamente sem nada a dizer aos familiares. A jovem mãe, logo em seguida se dirige à sua mãe, de modo firme, e reclama por alimento. Em seguida consegue amamentar seu bebê sem nenhum problema, para surpresa de todos. Seu marido vai, então, procurar Freud para lhe contar o sucedido, não entendendo porque sua mulher, sempre tão dócil, havia falado de modo tão firme com sua sogra. Bem, o caso fica resolvido e a continuidade dos comentários de Freud pode ser encontrada em seus escritos. O que aqui quero ressaltar é que Freud já havia se dado conta de que o tornar-se mãe tem a ver com a relação da jovem com sua própria mãe.
Além disso, em seu texto de 1895, denominado Projeto de Psicologia, Freud dá muita importância para a função que denomina de "ajuda alheia”, que a mãe oferece ao seu bebê em estado de desamparo. Lacan, de modo mais específico, irá caracterizar o tornar-se mãe como a operação de uma função, e não apenas um papel, a função de ser o primeiro outro para o bebê. Ele entende "função” em seu sentido lógico-matemático, com um lugar vazio que somente pode ser operado ao ser preenchido com um valor adequado. Qual seria, então, o valor adequado para alguém poder preencher está função e operá-la para o bebê? Precisaria ser um sujeito do sexo feminino?
A segunda pergunta surge em razão das mudanças radicais no campo da biologia, especialmente no tocante à natalidade, à fertilidade, à reprodução e à gestação. Se já temos por certo que uma mulher pode ter um filho sem a intervenção da relação sexual, e antes disso, que a natalidade está sob controle, e também que a fertilização pode ser feita in vitro, assim como a gestação pode se dar em outro lugar e a reprodução talvez possa ser feita por cópia do genoma, resultaria que a intervenção de um terceiro, o homem que se tornaria pai, é dispensada.
Que família se constituiria a partir destas mudanças? Como seria uma família organizada apenas em torno da mãe? Uma mãe, para tornar-se mãe e operar bem sua função, precisaria apenas ter um bebê?
Retomo aqui uma observação de Freud, em O homem Moisés e a religião monoteísta: "Mas esta transição da mãe para o pai define uma vitória da espiritualidade sobre a sensualidade, ou seja, um progresso da civilização, pois a maternidade é demonstrada pelo testemunho dos sentidos, ao passo em que a paternidade é uma conjectura, é edificada em uma dedução e em um pressuposto”.
O progresso espiritual da humanidade teria sido determinado pelo fato de que a causa não era mais o pai da realidade, mas o representante de um outro pai situado no real, ou seja, excluído da existência e por isso mesmo fora da realidade, sem nenhuma positividade. Pai impossível de ser conhecido, incerto e abstrato e por isso mesmo fundador da lei e da tradição e capaz de produzir uma ruptura na certeza da evidência sensorial.
A indicação freudiana da passagem do predomínio da mãe para a referência ao pai aparece no termo utilizado: Annahme, que pode ser traduzido por conjetura, suposição, pressuposição ou hipótese. Ora, seguindo a leitura lacaniana de Freud, percebemos a importância da questão em torno do estatuto de paternidade e sua relação com a questão da suposição, da hipótese, ou seja, do sujeito e de sua constituição. Hoje parece que assistimos o inverso de um progresso da civilização, numa espécie de nova emergência do matriarcado.

Exemplos para refletir

Uma jovem mãe, bem sucedida profissionalmente, me procurou por causa de seu filho, que aparentava estar muito bem. No entanto, sua queixa era de que o menino se recusava obstinadamente a aceitar qualquer alimento que ela lhe oferecia, alimentando-se exclusivamente de produtos que eram anunciados na mídia, especialmente "aqueles que não tinham nada de nutritivo”. Sua preocupação, diante desta posição de recusa obstinada de alimentos supostamente nutritivos que ela lhe oferecia era a de que ele estaria sofrendo de uma preocupante desnutrição.
Parecia que ela descrevia uma criança anoréxica, tendo já feito a habitual peregrinação pelos especialistas, sem nenhum resultado que a contentasse. Ao lhe perguntar a respeito da história de seu filho, relata que ele era fruto da realização de seu sonho de ter uma produção independente, dispensando assim as complicações, que julgava desnecessárias, de ter que conviver com um homem.
O pai do menino era um colega de trabalho, com o qual havia "ficado” e me dizia que este "não significava nada” para ela, pois ela mesma se achava "em condições de ser tudo para seu filho”. Isso havia acontecido em outra cidade, onde trabalhara na época e logo depois pedira transferência, deixando assim para trás a relação com aquele homem.
Afirmava, sem vacilação, que "podia perfeitamente ser o pai e a mãe para seu filho, visto que tinha uma vida organizada, um trabalho estável e que assim nada poderia faltar para ele.” Além do mais, se sentia muito feliz assim, sendo que a única coisa que a preocupava, e muito, era a dificuldade que seu filho tinha em aceitar os alimentos que ela lhe oferecia.
Este recorte clínico, do qual não vou expor sua continuidade, deixou muitas interrogações, especialmente sobre a posição da demanda materna e seus efeitos na organização das pulsões em seu filho, com incidência particular na oralidade. Qual a função que a recusa do alimento materno tinha para o menino? O que poderia significar o alimentar-se com aquilo que "não tinha nada de nutritivo” e a recusa pela qual oferecia um "não quero nada” para sua mãe? Esta aparente anorexia seria um modo de se defender da voraz demanda materna, colocando um limite à mesma? O que poderia significar o projeto de produção independente desta mulher, com a pretensão de efetivar a abolição do sexual em benefício da procriação e da transmissão da vida?
Estas interrogações iniciais me levaram às questões a respeito dos determinantes fundamentais da estruturação da demanda e do desejo na constituição do sujeito. O que pode acontecer quando uma mulher é tomada na suposição de que, para ter um filho, bastaria encontrar um genitor e que ela mesma poderia ocupar os lugares de "ser mãe” e de "ser pai”? Não estaríamos diante de um indício do retorno do matriarcado mítico, descrito por Freud, em detrimento do patriarcado?
Ora, o patriarcado, como propõe Freud, é uma organização simbólica oriundo do judaísmo e do cristianismo, e que implica que o pai, como instância simbólica e referente (o falo simbólico), não se encontra na realidade, mas no real. Então, por estar no real, expulso tanto do imaginário quando do simbólico, o pai (e seus equivalentes, o patriarca, o rei e os deuses, etc.) é impossível de ser conhecido. Deus, a exceção fundadora e causa primeira, só pode existir ao simbólico e ao imaginário, como indica o mito freudiano do pai da horda primitiva que somente subsiste enquanto morto. Este, situado no real, não deixa de ter consequências coercitivas e, ao mesmo tempo, determinantes para que possa haver língua, identidade, tradição, povo, etc. Ou seja, enquanto instância fálica ele determina a vetorização de todos aqueles que estão submetidos a ele. O que se passa com este pai no real em nossos dias?
Se for acertada a constatação de que estamos presenciando um retorno da sensualidade e do predomínio do testemunho dos sentidos, indicadores do que Freud denomina de matriarcado, em detrimento da espiritualidade, considerada com um progresso da civilização, então podemos apreciar o alcance da afirmação freudiana a respeito do lugar determinante de relação com o pai. A especificidade dos sintomas prevalente na cultura e dos sintomas particulares teria, então, sua chave de leitura na função do pai. Este seria o ponto central da explicação freudiana do mal-estar na cultura, ou seja, do sintoma do homem moderno. Lacan não se afasta desta direção tomada por Freud, ainda que abandone qualquer pretensão de restabelecer o vigor perdido do modelo patriarcal. Mais do que isso, ele busca extrair as consequências da queda irreparável da consistência do pai, expressa na figura do pai humilhado. A formação de catástrofes estruturais no processo de constituição do sujeito seria determinada pelo tipo de grupo familiar, sua composição, sua inserção social e o valor que aí tem seu chefe, o pai. Ora, a família moderna, desfalcada do pai, propicia as condições favoráveis para a estagnação da maturação subjetiva e para eclosão da psicose. Em seu artigo sobre a família, afirmara Lacan já em 1938: "A clínica mostra que, efetivamente, o grupo assim desfalcado é muito favorável à eclosão das psicoses, e que aí encontramos a maioria dos casos de delírio a dois”.
Ora, é nesta família desfalcada do pai, na qual se apresentam as condições para um retorno do que pode ser denominado de matriarcado, que as jovens de hoje se defrontam com os impasses no tornar-se mãe. Tornar-se mãe sempre foi uma passagem complexa, visto que, segundo nos indica Lacan, uma mãe não sabe como transmitir isso para sua filha, assim como não sabe como transmitir o que seja a feminilidade. Além disso, nas novas configurações familiares, ou seja, na família monoparental, para quem a mãe, ao operar a função materna com seu bebê, ofereceria seu filho? Se o oferece ao seu homem, introduz para seu bebê um terceiro, que permitirá a inscrição do sexual e de uma falta simbólica que o lançará nas vias do desejo.


IHU On-Line – Quais as consequências para uma relação em família quando a mãe vive como detentora de poder e do saber?


Mário Fleig - Uma mãe, como a primeira ajuda alheia para o bebê em seu estado inicial de completo desamparo, tem que lidar com o real do corpo de seu filho. Este, por sua vez, se vê imerso em uma língua completamente estrangeira. É um encontro de dois estrangeiros. Como a mãe introduz seu bebê nesta língua que ele desconhece? Entra em jogo aquilo que se denomina de "mãe pré-especular”, nas trocas com o corpo estranho, ao pôr em funcionamento por meio de uma antecipação tanto as funções tônico-motoras quanto a circunscrição dos orifícios do corpo. Isso permitirá que o bebê se organize na precipitação de uma imagem unifica de si que apreende na imagem que o outro materno lhe remete, ou seja, ele se apreende no espelho.
Neste percurso fundador, há um momento em que se supõe que a mãe faça a suposição de que seu bebê é tudo para ela e vice-versa. Ela é tudo para seu bebê, ou seja, detém todo saber sobre ele. Contudo, quando no estágio do espelho o bebê se reconhece na imagem unificada de si que apreende no outro, a mãe lhe escapa, ou seja, ela não lhe obedece mais, e, consequentemente, ele não a obedece mais. É um momento de júbilo, verificável nos bebês entre oito e 18 meses, e ao mesmo tempo um momento de depressão, resultante da perda irremediável da onipotência. Esta perda é preparada, do lado materno, por seu endereçamento a um outro que não apenas seu bebê, no caso, seu homem. Ou seja, ele já coloca em jogo com seu bebê sua falta de algo, ao reconhecer que não tem tudo e nem detém todos os significantes. Quando isso não acontece, quando a mãe, na operação de sua função, não tem a inscrição subjetiva de que ao menos um significante não está em seu poder, ou seja, que não detém o significante pai e que apresentar este significante a seu bebê implica em remetê-lo a outro, seu homem e pai presumido, quando isso não está em operação, temos então as condições para que seu filho possa vir a se organizar subjetivamente em uma psicose ou outros transtornos subjetivos graves, como, por exemplo, anorexia ou bulimia, etc.

IHU On-Line – Diante dos compromissos profissionais e da necessidade de cumprir tarefas como mãe, a mulher contemporânea entra em crise. Como esse comportamento pode ser explicado e compreendido?

Mário Fleig - Freud percebeu que a organização psíquica do sujeito masculino não é idêntica à do sujeito feminino. Quando as tarefas sociais estavam distribuídas de modo padronizado, como nos nossos índios (para as meninas, cestas; para os meninos, arco e fechas), ou antes da revolução industrial (o sustento e o trabalho fora do lar é dos homens; as mulheres são "do lar”), o destino esperado de uma menina era se tornar mãe, e pela maternidade se supunha que o ser feminino encontrava sua plena realização. Isso tudo mudou. Ser mulher, o que é? O que é a feminilidade? O que quer uma mulher? Esta pergunta Freud a colocou e afirmou que não sabia responder. Alguém sabe? Haveria um gozo específico do sujeito feminino? Em todo caso, parece haver uma diferença entre o devir feminino pela maternidade e pela feminilidade. Além disso, a mulher contemporânea é convocada a ter que dar conta de um lugar no mundo do trabalho fora do lar, lado a lado com os homens. Então, como conciliar trabalho, maternidade e feminilidade?
Vemos que no mundo do trabalho as mulheres já avançaram muito na conquista de seu espaço. Quanto à maternidade, alguns dos impasses explicitamos acima. E quanto à feminilidade? Lacan trouxe algumas formulações que podem nos auxiliar. Com base na dialética hegeliana, ele nos indica que alguém estabelece sua posição subjetiva pelo modo como se endereça ao outro. Assim, como um sujeito se endereça ao outro sexo conforma o desenho de sua posição sexual. Por exemplo, o que determina a posição masculina de um homem é seu endereçamento a uma mulher, ao passo que, se ele quisesse saber de sua masculinidade diretamente, cairia num beco sem solução. Contudo, as coisas se complicam, visto que para um homem, afirma Lacan, uma mulher é um sintoma, ao passo que para uma mulher, um homem é uma devastação. Deste modo, as dificuldades contemporâneas nos endereçamentos ao outro sexo são notáveis, a começar pela fluidez das relações.
Lembro que Freud se referia a uma passagem importante e misteriosa na sexualidade feminina do gozo desencadeado pelo clitóris (semelhante ao gozo masculino) para o gozo vaginal, que seria especificamente feminino. Lacan retoma esta formulação, referindo-se que o sujeito feminino está não-todo submetido ao gozo fálico (masculino). Ou seja, que o sujeito feminino não se situa dentro do mesmo modelo do sujeito masculino, estando então dividido entre um funcionamento do lado fálico (o que lhe permite ocupar funções antes restritas aos homens) e um outro funcionamento ou um outro gozo não submetido às limitações do gozo masculino. Este outro funcionamento poderia se manifestar em certos traços que encontramos em algumas mulheres: são etéreas, inventivas, com uma sensualidade e um erotismo fascinante, etc. Creio que o relato da mitologia grega pode nos indicar esta diferença. Na disputa infinda que ocorria entre Zeus e sua esposa Hera sobre quem gozava mais, o homem ou a mulher, a solução foi dada por Tirésias, o cego adivinho: se são dez partes, ao homem cabe apenas uma.
Enfim, vemos hoje que muitas mulheres temem perder sua feminilidade em função da maternidade. Talvez este temor seja uma das razões pelas quais tantas mulheres brasileiras só aceitem serem mães com a condição de estarem totalmente ou parcialmente ausentes na hora do parto de seu bebê, assim como não se dispõem a amamentá-los. Por outro lado, sabemos como a passagem para a posição de mãe pode pôr fim ao erotismo no casal, e até mesmo determinar a ruptura do laço conjugal ou sua transformação em uma relação fraterna. Esta problemática precisaria de um outro espaço para ser desenvolvida.
A pergunta retorna: como alguém pode se tornar e ser uma mãe suficientemente boa? Como foi a mãe que cada um de nós teve? O que devemos à nossa mãe?

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