quarta-feira, 8 de julho de 2009

O submundo da cana

Estado que detém 60% da produção nacional de cana-de-açúcar, São Paulo não divide a riqueza derivada do boom de etanol com seus 135 mil cortadores, que vivem muitas vezes em situações precárias

MÁRIO MAGALHÃES e JOEL SILVA
ENVIADOS ESPECIAIS AO INTERIOR DE SP

Pontualmente às 4h42, a canavieira Ilma Francisca de Souza parte para o trabalho com sua marmita fornida de arroz coberto por uma lingüiça cortadinha. Em outro bairro de Serrana, ainda antes de o sol nascer, Rosimira Lopes sai para o canavial levando arroz com um só acompanhamento: feijão.
Durante o dia, elas vão dar conta da comida, que já terá esfriado. A despeito do notável progresso que ergue usinas de etanol com tecnologia assombrosa, o Brasil segue sem servir refeições quentes aos lavradores da cana-de-açúcar. A bóia continua fria.
Durante dois meses, a Folha investigou as condições de vida e trabalho dos cortadores de cana no Estado que detém 60% da produção do país que é o principal produtor do planeta. Gente como Ilma e Rosimira. Em uma das etapas de apuração da reportagem, por 15 dias percorreram-se 3.810 quilômetros de carro, o equivalente a nove trajetos São Paulo-Rio de Janeiro. Um mapa mostra onde ficam as cidades visitadas.
Pela primeira vez em cinco séculos, desde que as mudas pioneiras foram trazidas pelos portugueses, em 2008 ao menos metade da cana de São Paulo não será colhida por mãos, mas por máquinas. É o que anunciam os usineiros. Como na virada do século 16 para o 17, quando o país era o líder do fabrico de açúcar, a cana oferece imensas oportunidades ao Brasil, em torno do álcool combustível do qual ela é matéria-prima. O etanol pode se transformar em commodity, com cotação no mercado internacional. As usinas geram energia elétrica. A riqueza do setor sucroalcooleiro, que movimentará neste ano R$ 40 bilhões, não atingiu os lavradores.
Em 1985, um cortador em São Paulo ganhava em média R$ 32,70 por dia (valor atualizado). Em 2007, recebeu R$ 28,90. A remuneração caiu, mas as exigências no trabalho aumentaram. Em 1985, o trabalhador cortava 5 toneladas diárias de cana. Na safra atual, 9,3.
Em 19 cidades do interior -na capital foi ouvido um representante dos empresários- , os repórteres procuraram entender por que, entre nove culturas agrícolas, a da cana reúne os trabalhadores mais jovens.Exige alto esforço físico uma atividade em que é preciso dar 3.792 golpes com o facão e fazer 3.994 flexões de coluna para colher 11,5 toneladas no dia. Nos últimos anos, mortes de canavieiros foram associadas ao excesso de trabalho.
Conta-se a seguir o caso de um bóia-fria que morreu semanas após colher 16,5 toneladas. Não há paralelo em qualquer região com tamanho rendimento.
Na estrada, flagraram-se ônibus deteriorados, ausência de equipamentos de segurança no campo, moradias sem higiene e pagamento de salário inferior ao mínimo. Conheceram-se comunidades de canavieiros que dependem do Bolsa Família, migrantes que tentam a sorte e lavradores que querem se livrar do crack e de outras drogas. Descobriram-se documentos que comprovam a existência de fraudes no peso da cana, lesando os lavradores.
Escravidão
No auge e na decadência do ciclo da cana-de-açúcar, os escravos cuidaram da lavoura e puseram os engenhos para funcionar. A arrancada do etanol brasileiro foi dada por lavradores na maioria negros. Assim como os escravos sumiram de certa historiografia, os cortadores são uma espécie invisível nas publicações do setor. Exibem-se usinas high-tech, mas oculta-se a mão-de-obra da roça. Impressiona na viagem ao mundo e ao submundo da cana a semelhança de símbolos da lavoura atual com a era pré-Abolição. O fiscal das usinas é chamado de feitor. Acumulam-se denúncias de trabalho escravo.
É um erro supor que as acusações de degradação passem longe do Estado mais rico do país e se limitem ao "Brasil profundo". Uma delas é narrada adiante. Em São Paulo, localiza-se Ribeirão Preto, centro canavieiro tratado como a nossa "Califórnia". O presidente Luiz Inácio Lula da Silva tem minimizado os relatos sobre trabalho penoso nos canaviais. No ano passado, ele disse que os usineiros "estão virando heróis nacionais e mundiais porque todo mundo está de olho no álcool".
O medo de retaliações é grande entre os canavieiros. Nenhum nome foi mudado nos textos, mas algumas pessoas, a pedido, são identificadas apenas pelo prenome ou nem isso. As entrevistas foram gravadas com consentimento. São muitos esses anti-heróis: segundo os usineiros, há 335 mil cortadores de cana no Brasil, incluindo os 135 mil de São Paulo. No Estado, prevê-se a extinção do corte manual para 2015, junto com as queimadas que facilitam a colheita. Ilma e Rosimira compõem uma espécie em extinção.
Por meio milênio, os cortadores, escravos ou assalariados, viveram tempos difíceis. Nos próximos anos, não será diferente: com baixa qualificação, eles terão de procurar outros meios de sobrevivência. Não há sindicato que não constate queda nas contratações. O canavial não está tão longe quanto parece: ao encher o tanque com 49 litros de álcool, consome-se uma tonelada de cana; quando se adoça com açúcar o café da manhã, milhares de brasileiros já estão na lavoura de facão na mão.

2. A morte cansada
Com produção em alta e salários em queda, excesso de trabalho ronda canaviais

Se dinheiro chama dinheiro, como dizem, então pobreza chama pobreza -e tragédia agoura tragédia. Procurada em Guariba para conversar sobre o marido, morto após passar mal no canavial em 2005, Maildes de Araújo se põe a falar do morto de duas semanas antes: o cunhado, também cortador de cana.

José Pindobeira Santos tinha 65 anos. Colheu cana até o ano retrasado. "Ele reclamava da barriga, de cólicas", diz a filha Ivanir, faxineira. Voltava da lavoura com dor na virilha. Nunca se tratou ou foi tratado.Pindobeira morreu de obstrução intestinal e broncoaspiração. Não se sabe até que ponto a lida na roça baqueou sua saúde. Nos anos 1960 já cortava cana nos arredores de Guariba.

Seu concunhado Antonio Ribeiro Lopes, o marido da baiana Maildes, veio ao mundo em julho de 1950, três dias antes do fracasso supremo do futebol pátrio, a final da Copa. Migrou de Berilo (MG), município da paupérrima região do Vale do Jequitinhonha. Em acidentes registrados -a subnotificação é considerável-, o facão rasgou-lhe perna e joelho. Dores no ombro direito o afastaram da roça. Penava com dor de cabeça. O empenho no trabalho desencadeava cãibras na barriga, nas pernas e nos braços. Sofria da doença de Chagas, mas não o licenciaram. Era funcionário da usina Moreno. Sucumbiu no campo e o levaram para o hospital. Causa da morte: "cardiopatia chagásica descompensada".

Lopes integra a relação de duas dezenas de canavieiros mortos no interior paulista de 2004 a 2007, o caçula com 20 anos. A lista foi elaborada pela Pastoral do Migrante -há mais mortes, não contabilizadas. Dela não constam acidentes de trabalho -em 2005, de cada mil trabalhadores no cultivo da cana, 48 sofreram acidente ocupacional, registraram as pesquisadoras da USP Márcia Azanha Ferraz Dias de Moraes e Andrea R. Ferro.

Naquele ano, segundo o Ministério do Trabalho, morreram de acidentes 84 pessoas no setor sucroalcooleiro, incluindo lavoura e indústria (3,1% das mortes por acidentes de trabalho no Brasil).

O Ministério Público do Trabalho investiga a razão dos óbitos e sua associação com o caráter exaustivo do corte manual.Relatório de 2006 da Secretaria de Inspeção do Ministério do Trabalho enumera dezenas de irregularidades em empresas nas quais trabalhavam os lavradores que morreram. Uma é o não-cumprimento do descanso de uma hora para o almoço. Os cortadores comem em dez, 20 minutos, para logo empunhar de novo o facão. Eles ganham por produção. Nenhum laudo atesta que a atividade foi decisiva para os óbitos. Seria difícil: dos oito esquadrinhados pelo ministério, só em dois houve necropsia.

O texto da Secretaria de Inspeção afirma: "As causas de mal súbito, parada cardiorrespiratória e AVC [acidente vascular cerebral], descritas nas certidões de óbito, não são elementos de convicção que justifiquem a morte natural, como alegam as empresas". Há indícios sobre por que morrem os canavieiros.

Em 1985, os cortadores do Estado produziam em média 5 toneladas diárias de cana. Em 2008, são 9,3 toneladas, 86% a mais. Há 23 anos, um lavrador recebia R$ 6,55 por tonelada e R$ 32,70 por jornada. Em 2007, 1.000 kg valeram R$ 3,29. A remuneração por dia, R$ 28,90 (menos 12%).

A produtividade disparou e o salário caiu. Com a mecanização acelerada do corte e a expansão do desemprego, ficam os mais eficientes. O homem compete com a colheitadeira.Os números de 1985 e 2007 são do Instituto de Economia Agrícola. Atualizados para reais de agosto de 2007, encontram-se em artigo dos pesquisadores Rodolfo Hoffmann (Unicamp) e Fabíola C.R. de Oliveira (USP).

"Penoso" e "desumano"José Mário Gomes morreu em 2005 aos 44 anos. Era empregado da usina Santa Helena, do grupo Cosan, líder da produção de cana no planeta. "O óbito ocorreu nos períodos de maior produtividade, com picos alternados", informa o Ministério do Trabalho.

Valdecy de Lima trabalhava na usina Moreno, como Antonio Ribeiro Lopes. Em 7 de julho de 2005, desabou na roça. Morreu aos 38 anos, de acidente vascular cerebral. Em 17 de junho, decepara 16,5 toneladas. A Moreno alega que as mortes de Antonio e Valdecy "não ocorreram em decorrência do esforço do trabalho". A Cosan diz que as causas do óbito de José Mário "ainda estão sendo investigadas pelos órgãos competentes. A empresa prestou todos os atendimentos necessários e colocou seu departamento de serviço social à disposição da família do colaborador. A Cosan cumpre rigorosamente a legislação trabalhista".

O Ministério Público do Trabalho relaciona as mortes à rotina "penosa" e "desumana" e prepara ação contra o pagamento por produção, quando o grosso da remuneração depende do desempenho. É preciso acumular em oito meses, a duração da safra, o suficiente para 12 -a maioria é dispensada na entressafra.

Usineiros e segmento expressivo dos trabalhadores desejam manter o sistema. O afinco para cortar mais e mais provoca situações como uma acontecida em 2007. Sob o sol, em dia de temperatura máxima de 37ºC à sombra, nove trabalhadores foram hospitalizados após se sentirem mal em uma fazenda de Ibirarema. Reclamavam de cãibras e vomitavam. Algumas usinas fornecem no campo bebidas reidratantes para a mão-de-obra suportar o desgaste. Em áreas de corte manual, os canaviais costumam ser queimados antes da colheita. O fogo queima a palha da cana, e restam apenas as varas, o que facilita o trabalho. Quando o facão golpeia as varas com fuligem, o pó se espalha, entra pelo nariz e gruda na pele. A plantação recebe agrotóxicos. O lavrador não costuma receber máscara.

Em tese de doutorado na Unesp, a bióloga Rosa Bosso constatou que o nível de HPAs, substâncias cancerígenas, expelidos na urina de quatro dezenas de trabalhadores era nove vezes maior na safra do que na entressafra. Em temporada sem colheita, Antonio Lopes sobreviveu como carregador de sacas de açúcar. Maildes o conheceu na lavoura da cana, onde o namoro engatou. Ainda hoje a viúva se orgulha: "Ele não era de enjeitar serviço".

3.Filhos da cesta básica
Estudos divergem quanto ao aumento do IDH em regiões canavieiras

Maria Vanilda Sabino diz que a filha Vitória tem uma boneca. A menina de quatro anos, porém, não sabe onde ela está. Maria mora com o marido nos fundos de uma casa. Cortador de cana, com carteira assinada por usina, Antônio é analfabeto como a mulher. Com o casal dormem três filhas no quarto. Na cozinha, diante do fogão, dois filhos. Não há geladeira. O terceiro cômodo é um banheiro. Os três rebentos maiores estão no Nordeste -são oito no total. A alagoana Maria chegou a Serrana no ano passado. O peso de duas meninas caiu para o nível de desnutrição. Engordaram graças a leite e cesta básica doados pela prefeitura. Em junho, como sempre, Maria recebeu R$ 112 do Bolsa Família. Em mês recente, Antônio ganhou R$ 487 líquidos. Só de aluguel se foram R$ 140. Sua renda é a única do lar.

Artigo inédito dos economistas Francisco Alves (UFSCar) e Marcelo Paixão (UFRJ) analisou 71 municípios paulistas que tinham mais de 40% de superfície total ocupada com cana na década de 1990. Concluiu que nessas cidades a renda é maior, porém apenas sete alcançavam em 2000 IDH (Índice de Desenvolvimento Humano, que contempla também saúde e educação) maior que a média do Estado. Só 13 superavam o IDH médio de suas microrregiões. E em 43 a desigualdade ultrapassava a das microrregiões.

Também com base em dados do IBGE de 2000, os professores da USP Alceu Salles Camargo Júnior e Rudinei Toneto Júnior chegaram a constatações opostas. Pesquisa da dupla sustenta que os municípios com pelo menos 28,8% de cana-de-açúcar plantada, no conjunto da área da lavoura (não da superfície total), têm IDH maior que os sem esse perfil agrícola.

Em sentido contrário, estudo do presidente do Ipea, Marcio Pochmann, afirma que 81% das famílias dos trabalhadores do setor sucroalcooleiro de SP (agricultura e indústria) tiveram em 2005 rendimento de até dois mínimos. "É o público do Bolsa Família, de renda equivalente", diz Pochmann.

4.Operário-padrão
Após começar a trabalhar aos 13 anos, ex-campeão de corte está hoje, aos 35, com uma hérnia e a coluna "travada"

Valdecir da Silva Reis, o graveto que consome seus dias deitado na cama a ver TV, já foi um campeão. Não tinha para ninguém. Na lavoura, batia recorde em cima de recorde. Em 20 de março de 2006, colheu 21 toneladas. Em 17 de maio, 28. Oito dias depois, rasgou 560 metros lineares de plantação, cortando cinco linhas de cana para receber por uma -é o critério legal. A rigor, derrubou 2,8 km lineares.O contracheque da empresa Meia Lua imprime a marca da jornada: 52,47 toneladas. Quase uma tonelada por quilo de gente -ele pesava 56 kg. Hoje diz ter 49 kg. Parece menos. O cortador que arrancava suspiros dos colegas incrédulos definha na casa onde vive de favor em Engenheiro Coelho. Na roça, não sentia dores.

Em 2006, a coluna "travou" e ele não retornou ao canavial. Aos 35 anos, sonha com o dia de voltar ao trabalho em que se tornou o herói dos amigos. Por maior que seja a vontade, ele desconfia de que não empunhará o facão novamente. Os exames diagnosticaram problemas na coluna lombar, hérnia de esôfago e desequilíbrios nos indicadores de urina. Valdecir se queixa de dores de cabeça, na barriga, no peito (não fez avaliação cardíaca), no saco escrotal, no ombro direito, nos braços, joelhos e pernas; de falta de força para levantar uma garrafa d'água; de cansaço após caminhar 800 metros; de ouvir mal por um ouvido. O lado esquerdo do tórax é mais desenvolvido; com o braço esquerdo ele atirava a cana na leira, o corredor aberto na terra onde fica a cana colhida.

Segunda divisão
Ainda que o farrapo humano que fala baixinho e sem fôlego sobre seu infortúnio fosse criação de um magistral ator stanislavskiano, ultra-realista, nem assim seria possível bolar uma história com princípio, meio e fim como a dele -os repórteres escarafuncharam o caso com base em fartura de documentos e depoimentos.

Valdecir começou a cortar cana aos 13 anos. Empresas premiavam seus feitos com bicicleta e aparelho de som. Após "travar" em 2006, obteve auxílio-doença da Previdência. Na perícia de 5 de maio passado, no entanto, foi considerado apto para o trabalho. Sua renda é zero. Mora com uma filha de casamento anterior e a mulher, Helena. Ela ganha R$ 30 por faxina. Faz duas por semana.

O trabalho para o qual o INSS não identifica "problema grave" para Valdecir exercer "não se pode comparar ao de um escriturário", diz um executivo de usina. Anunciam-se vagas para escriturário com 30 a 40 horas de carga semanal. Em período idêntico, o cortador de cana em SP trabalha, no papel, 44 horas, em seis dias.

De escriturários e cortadores se exigem 35 anos de serviço para se aposentar. A maioria desses, contudo, é safrista: trabalha oito meses por ano na atividade. Não soma 12 meses de contribuição. O desempenho de alguns é tão exuberante que os célebres campeões cubanos das campanhas de corte de cana aqui pegariam segunda divisão. Em 1965, Fidel Castro condecorou cinco deles, de marcas de 14 a 19,7 toneladas. Na Meia Lua, ex-empregadora de Valdecir, um cortador bateu 35 toneladas em 20 de junho. Os repórteres tentaram falar com a empresa, mas não encontraram seus endereço e telefone.

Os campeões, como são chamados na lavoura os de melhor performance, costumam ser magros e fortes. Valdecir tem 1,65 m de altura. Samuel Gomes, 38, é um dos recordistas de Guariba. Mede 1,85 m. Barack Obama, 1,86 m. O peso do senador americano é estimado em 77 kg a 82 kg. Samuel, que tem 68 kg, conta ter cortado neste ano 27 toneladas em um dia na usina São Carlos. Com tanta exigência física, há nove homens (92%) por mulher na lavoura canavieira do Brasil.
Em nove culturas relevantes, os trabalhadores de menor média etária são os da cana, 35,5 anos -dados compilados pelos pesquisadores Rodolfo Hoffmann (Unicamp) e Fabíola C.R. Oliveira (USP).

Rotina
Ônibus das empresas apanham os cortadores em casa entre 5h e 6h. No campo, a jornada inicia às 7h. Muitos "almoçam" antes de começar a colheita. Há direito a intervalos de dez minutos, de manhã e à tarde. Pelas 10h ou 11h, reserva-se uma hora para almoço -poucos cumprem todo o tempo. O serviço termina às 15h ou 16h, mas há excessos. Os trabalhadores chegam às suas casas entre as 17h e as 19h. Dormem pelas 20h, 21h, para acordar entre as 3h30 e as 4h30.

Pesquisa de análise ergonômica em fase de conclusão, financiada pela Fapesp e coordenada pelos pesquisadores Rodolfo Vilela e Erivelton de Laat, descreve os movimentos dos cortadores. Um deles, que colheu 11,5 toneladas, deu em um dia 3.792 golpes com o facão e fez 3.994 flexões de coluna. O facão pesa 600 gramas. Golpeia-se a cana no pé, onde se concentra a sacarose. O cortador destro abraça o feixe de cerca de dez canas com o braço esquerdo (ou, vara por vara, com a mão), curva-se e golpeia com o braço direito. Com o esquerdo, atira a cana na leira, de onde a máquina carregadeira a leva. Em um grupo, a freqüência cardíaca média em repouso era de 57,4 batimentos por minuto. No trabalho, de 112, variação exagerada, conforme os pesquisadores (a diferença deveria se limitar a 35).

A atividade dos lavradores é comparada à de maratonistas, com repetição fatigante de movimentos. Maria Zeferina Baldaia, campeã da Maratona de São Paulo em 2008, foi cortadora de cana no interior. "Uma coisa tem muito a ver com a outra", confirma.

Sindicatos de empregados pedem a redução da carga semanal para 40 horas, com dois dias de descanso. Cristina Gonzaga, pesquisadora da Fundacentro, fundação de pesquisas do Ministério do Trabalho, defende 30 horas, com cinco jornadas de seis horas por semana. As empresas rejeitam as reivindicações.É essa vida que Valdecir fantasia retomar. Ele se esconde em casa. "As pessoas vêem a gente na rua e falam que é vagabundo. Não vêem o que a gente tem por dentro, o que a gente sente."

5.Crack, cachaça e maconha mascaram esforço e dor
O primeiro fumava maconha na colheita da cana porque "ficava com o corpo mais leve. Dava vontade de trabalhar". O segundo escondia cachaça em sua mochila. "Quanto mais eu bebia, mais tinha energia. Eu me sentia forte."O terceiro "ia embora" com maconha ou crack, subproduto barato da cocaína ainda mais destrutivo e capaz de criar dependência. "Quando usava, ninguém me segurava. Cortei 21 toneladas em um dia.

"Na Casa do Caminho, um centro de recuperação de dependentes químicos em Barrinha, na maioria trabalhadores do cultivo da cana, eles tentam voltar à tona. O primeiro trocou a maconha pelo crack. "Na roça, vinha a sensação de ser perseguido, eu ficava com medo, via revólver, dava vontade de atirar em mim mesmo. Não trabalhava. Comecei a perder o serviço. "O segundo foi do fermentado de cana-de-açúcar para o crack. Se fumava a droga, misturada com fumo, faltava ao trabalho. "No crack, o fim é o cemitério, uma cadeira de rodas ou a cadeia." O terceiro "ficava louco e continuava trabalhando. Viajava no serviço. Gritava e zoava a cabeça dos meninos. Cantava reggae". Seu plano para quando sair: cortar cana.

Não se conhecem estatísticas de consumo de drogas ilícitas nos canaviais ou o índice específico de internação de cortadores. O fato novo é a disseminação no interior de São Paulo de clínicas de recuperação de trabalhadores da cana. Contam-se ao menos dez. Os depoimentos dos lavradores associam o consumo de drogas à impressão inicial de superação dos limites físicos. Na largada, elas parecem ajudar. Depois, debilitam. A Casa do Caminho abriga 40 internos. Seu presidente, Arnaldo Garcia, afirma que as fontes de financiamento são diversas. As usinas contribuem com açúcar e lenha.

6-Salário no olhômetro
Cálculos complexos e fraudes no peso lesam trabalhadores analfabetos ou semi-alfabetizados

O trabalho na colheita da cana-de-açúcar vale quanto pesa a cana cortada. Pelo menos deveria valer. Documentos obtidos em duas regiões de São Paulo indicam que uma desconfiança atávica dos trabalhadores não se trata de paranóia: fraudes -ou erros- provocam o pagamento abaixo do previsto nos acordos com as empresas. A remuneração dos cortadores é uma equação complicada mesmo para quem tem formação superior. Para a esmagadora maioria dos lavradores, é ainda pior: na média, eles não completaram nem a quarta série do ensino fundamental.

Anualmente, empresários e sindicatos de assalariados definem quanto vale a tonelada colhida. As cifras variam de acordo com o tipo da cana. Embora o pagamento seja por peso, o desempenho dos cortadores é aferido por distância. Usinas e fornecedores de cana fixam o peso existente por metro colhido. O peso depende de altura, espessura e outras características da cana. Multiplicam-se os metros colhidos pelo peso de 1 metro. O resultado é o peso da cana cortada. Este é multiplicado pelo valor da tonelada, determinando o ganho do dia. Às vezes as contas não fecham.

O trabalhador rural Adelfo da Costa Machado cortou 132 metros lineares de cana na quinta-feira 12 de junho. A Indústria e Comércio Iracema Ltda., proprietária da destilaria Iracema, de Itaí (SP), pagou-lhe R$ 0,20 por metro. A jornada deu direito a R$ 26,40. Daquele tipo de cana, uma tonelada valia R$ 2,7462. Os demonstrativos da balança da Iracema revelam que na roça onde Machado trabalhou o rendimento por hectare foi de 138 toneladas. O desembolso pela mão-de-obra seria de R$ 379 por hectare (área pouco menor que o campo de futebol de dimensões máximas). Com o espaçamento de 1,4 metro entre as fileiras de cana (ruas, como se diz na lavoura paulista), em um hectare há 7.140 metros lineares plantados. O lavrador tem de cortar um metro de cinco ruas -5 metros, portanto- para que se compute um metro na sua produção. Cada cortador deveria receber R$ 0,2653 por metro -33% a mais do que foi pago. Em vez de R$ 26,40, Adelfo Machado tinha direito a R$ 35,02 pelas 12,8 toneladas que abateu.

Deu para entender? Imagine os cortadores. Para fazer o cálculo, precisou-se cotejar a "planilha de ponto de produção", preenchida no canavial por um fiscal da empresa, com o contracheque do empregado e um documento da firma assinalando as toneladas por hectare. Foi o procurador do Trabalho José Fernando Maturana, de Bauru, quem garimpou e cruzou as informações. Em um documento co-assinado com o procurador, um funcionário da Iracema reconheceu que no "talhão 35" o rendimento foi de 138 toneladas por hectare. Talhão é uma subdivisão, de dimensões diversas, da área do canavial. Na terça, outro executivo da Iracema afirmou que estava errada a tabela da empresa. Por engano, computaram-se 138 toneladas, mas "a produção por hectare foi menor". Os trabalhadores teriam recebido corretamente.

Instrumento primitivo
Ao contrário do vendedor consciente dos sapatos que vendeu, o lavrador ignora as toneladas que colheu. Com a balança nas usinas, longe da roça, ele só sabe depois. Na lavoura, o terreno cortado é medido por um instrumento primitivo: um compasso de madeira, com pontas de ferro e raio de 2 metros. O fiscal caminha girando o compasso gigante.

"Enquanto as usinas utilizam modernos sistemas de monitoramento por GPS para projetar a colheita, os trabalhadores são remunerados no "olhômetro", acusa o Ministério Público do Trabalho. Indagado sobre as toneladas que corta e o valor do metro, um canavieiro respondeu, em Pederneiras, como os colegas: "Não sei".

Nas greves de 1984 a 86, os cortadores reivindicaram sem sucesso o pagamento por metro, e não por peso. "O trabalhador sempre foi roubado", acusa José de Fátima Soares, líder das antigas mobilizações em Guariba. Zé de Fátima aderiu ao petismo e ao trotskismo e trocou-os pelo malufismo. Hoje é do PPS. O Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Cosmópolis acionou o Ministério do Trabalho em 2005. Com base em anotações da performance em metros no canavial e da pesagem nas usinas, descortinaram-se diferenças entre cana colhida e pesada. Em 4 de agosto daquele ano, a empresa A.P. de Freitas Neto fixou a relação de 30 kg por metro. A cana se destinava à usina São José. Na balança, o metro pulou para 49 kg.

Em 1998, greve em Cosmópolis conquistou um sistema pioneiro para conferir a produção: na usina de Cosmópolis, a Ester, três funcionários do sindicato se revezam 24 horas na sala de operação da balança. Eles monitoram, caminhão por caminhão, as toneladas que os computadores da empresa registram. O controle da produção, com sindicalistas conferindo o peso, só existe lá. Nas grandes usinas, o método é o do caminhão-campeão. Selecionam-se três amostras do canavial, pesa-se e define-se o valor do metro. O cortador não testemunha a pesagem. Certas empresas nem esse recurso empregam. "Por que, no Brasil, só uma usina faz o controle da produção?", pergunta Carlita da Costa, presidente do sindicato de Cosmópolis. "Para mim, há fraudes [em outras usinas]".

A União da Indústria de Cana-de-Açúcar afirma que há um esforço com a Federação dos Empregados Rurais Assalariados de SP para assegurar "transparência e confiabilidade" e "apurar se aquilo que se está produzindo se está recebendo". Patrões e empregados não sabem de punição criminal por manipulação de peso. A usina São José foi procurada, mas não se pronunciou. A Freitas Neto não foi encontrada. O contador Fábio Urrea, contratador de mão-de-obra, disse em Agudos que, "se o cara for sério", é difícil fraudar o peso. "E existe quem não seja sério nesse meio?", ouviu dos repórteres. Urrea sorriu: "É duro falar. Complicado".

7-Terceirização freia aplicação de medidas de segurança
A edição de março de 2007 do jornal "Contato", da usina Nova América, divulgou suas operações na lavoura, por meio da Nova América Agrícola: "Hoje 100% do plantio manual, incluindo os terceiros, já conta com o cinto de segurança". No mesmo mês, uma blitz do Grupo Móvel de Fiscalização Rural visitou uma fazenda em Maracaí (SP). Flagrou funcionários da Nova América em cima de um caminhão, a mais de 2 metros de altura, jogando cana para ser plantada por quem seguia no chão. O pessoal sobre o veículo não usava cinto. A empresa comprometeu-se a assegurar equipamento a todos. A realidade da roça nem sempre corresponde 100% à propaganda das usinas de etanol.

No mês passado, o presidente da União da Indústria de Cana-de-Açúcar, Marcos Jank, participou da Mesa de Diálogo com governo e sindicalistas para tratar do trabalho na cana. Jank afirmou, segundo a Agência Brasil: "Já 100% das usinas não estão terceirizando o corte da cana, mas ainda há problemas nos fornecedores de cana em São Paulo". Três semanas depois, o procurador do Trabalho Silvio Beltramelli Neto acusou a usina Santo Antônio de terceirizar ilegalmente a produção de cana. A Justiça determinou em liminar que a usina "abstenha-se de contratar terceiros". A Santo Antônio diz "não ter trabalhadores terceirizados". A Cooperativa dos Plantadores de Cana da Zona de Guariba promoveu campanha com seus funcionários para prevenir câncer. No canavial, quase 100% dos cortadores não recebem protetor solar para evitar o câncer de pele.

8-Riqueza e senzala
Estado mais rico do país tem casos de trabalho escravo; procurador fala em "apartheid" nos canaviais

Quando os fiscais do Ministério do Trabalho e os procuradores do Ministério Público do Trabalho partem para diligências nos canaviais, as chances de encontrarem irregularidades equivalem às dos clientes dos serviços de "pesque-pague" disseminados pelo interior paulista fisgarem tilápias sem dificuldades: nos lagos, há profusão de cardumes; no campo, as condições de trabalho dos cortadores estão longe de cumprir plenamente a lei. Mesmo sem os instrumentos legais de investigação à disposição dos servidores públicos, os repórteres não passaram por lavoura onde não houvesse infrações.

Em Taiaçu, os trabalhadores saíram para a roça de madrugada, em ônibus com luzes dianteiras e traseiras queimadas. Em Serra Azul, não havia água gelada, banheiros móveis, área coberta para as refeições e muitos canavieiros não usavam alguns EPIs (equipamentos de proteção individual). Em Pederneiras, uma lavradora estava com luva cirúrgica de borracha, não de couro com reforço metálico, como determina a norma de segurança. Ela pegou as luvas emprestadas com uma amiga que atuou como mata-mosquito na campanha de combate à dengue. Uma das luvas foi cortada pelo facão na véspera, ferindo um dedo (o acidente não foi registrado, o que contraria a legislação). As botinas com bicos metálicos de boa parte dos peões estavam destruídas. Em Limeira, também não se viram alguns EPIs. Idem em Piracicaba e Charqueada. Em Dois Córregos e Guariba, cortadores vivem em pardieiros sem conforto e limpeza -falta até papel higiênico. Em Agudos, em uma rescisão contratual, um casal apresentou os contracheques comprovando remuneração inferior a um salário mínimo mensal. Marido e mulher ainda deviam mais de R$ 100 cada um ao contratador de mão-de-obra, que retinha documentos dos funcionários havia três meses.

Hoje são proibidos e ficaram mesmo para trás os caminhões que transportavam os bóias-frias da cana em São Paulo. Mas perduram frotas de ônibus deteriorados e inseguros, sem autorização para rodar. As empresas são obrigadas a fornecer de graça equipamentos de segurança. Às vezes não fornecem e às vezes cobram. São pequenos inconvenientes, se comparados aos episódios de "redução a condição análoga à de escravo". O crime é tipificado pelo Código Penal. Ocorre quando se submete alguém a "trabalhos forçados ou a jornada exaustiva, quer sujeitando-o a condições degradantes de trabalho, quer restringindo, por qualquer meio, sua locomoção em razão de dívida contraída com o empregador ou preposto". A pena é de multa e reclusão de dois a oito anos, além de sanção correspondente à violência.

Resgates e libertações
Desde 1995, quando entrou em ação, o Grupo Especial de Fiscalização Móvel do Ministério do Trabalho "resgatou" -é o verbo oficialmente empregado- 30.036 trabalhadores no Brasil. As indenizações somam R$ 42 milhões. São raras as condenações judiciais. O recorde foi batido no ano passado, com 5.999 "libertações", outra expressão adotada pelo governo. Neste ano, até junho, 2.269 pessoas foram encontradas em condições análogas à de escravo.

Fiscais e procuradores se transformaram em uma espécie de caçadores de escravos ao contrário -não para confiná-los, mas para livrá-los da desgraça. Em São Paulo, é comum eles exigirem que empresas paguem a viagem de volta de migrantes contratados em seus Estados para o corte de cana. A maioria -3.117- dos libertados em 2007 no país trabalhava no setor sucroalcooleiro, como a Folha informou em fevereiro passado. Em Brasilândia (MS), na usina e na fazenda da Companhia Brasileira de Açúcar e Álcool, 831 empregados indígenas foram descobertos em situação qualificada como degradante.

Neste ano, 55 funcionários de outra usina da CBAA foram descritos pelo Ministério do Trabalho como vítimas de servidão por dívida, o que configura trabalho escravo. Ao contrário da maioria das autuações, concentradas nas regiões de expansão da fronteira agrícola no Norte e no Centro-Oeste do Brasil, esta aconteceu no Estado de São Paulo, em Icém. A companhia, do grupo J. Pessoa, nega responsabilidade por problemas. Em seu site, afirma que "busca garantir sustentabilidade na produção e relações responsáveis no crescimento, visando sempre a melhoria e a qualidade de vida dos seus colaboradores e de seus familiares". Empresas do grupo foram excluídas do Pacto Nacional pela Erradicação do Trabalho Escravo, um programa de organizações que se comprometem a não aceitar esse crime em sua cadeia produtiva.

O procurador do Trabalho Luís Henrique Rafael destacou em ação civil pública o que considera abismo entre os componentes contemporâneos e arcaicos do negócio da cana e seus derivados: "A tecnologia de ponta que se observa nas usinas contrasta com as "senzalas" nos canaviais, explicitando bem o verdadeiro apartheid, fruto da inescrupulosa equação de distribuição das rendas geradas pelo tal "petróleo verde'".

A Organização Internacional do Trabalho mantém no Brasil o Projeto de Combate ao Trabalho Escravo. O procurador Mário Antônio Gomes coordena "inquérito-mãe" sobre o que chama de degradação do trabalho nos canaviais de São Paulo. Para ele, "o nível de educação mais baixo [dos cortadores] facilita a exploração". O combate ao trabalho degradante é limitado pela escassez de recursos. Na região de Ribeirão Preto, há dois procuradores para acompanhar 39 usinas. É pouco, mas, graças (também) às ações de fiscalização, hoje está quase erradicado um fenômeno do passado, o trabalho infanto-juvenil no corte da cana no Estado.

9-Filhos não reconhecem os pais
Cerca de 40% dos trabalhadores na colheita de cana-de-açúcar em SP são migrantes provisórios

Houve um dia em que Raimundo Francisco foi contar a história da sua vida aos seis companheiros com quem divide uma casa no interior de São Paulo. Nenhum ficou até o fim. "Para não chorar", diz. Todos são do Maranhão. Seis vieram de Codó, um de Timbiras, municípios cujos índices sociais fazem dos bairros pobres de SP o melhor lugar do mundo.

Reginaldo trabalhava na roça própria. Fora da época da colheita, "o pior do dia era chegar em casa e não ter o que comer". No fim do ano, ele reencontrava os amigos que desde abril estavam para os lados do sul colhendo cana. Apareciam com "uma motinho, um som". "Eu queria ter também."Como os outros maranhenses que se apertam em dois cômodos. O mais novo tem 22 anos. O mais velho, 46. São casados, com quatro filhos na média. Dois são alfabetizados. Dizem ganhar de R$ 700 a R$ 900 mensais brutos, mantêm contratos de safristas com usinas -em novembro rumam para o Maranhão. Sustentam-se longe de suas terras, mandam ajuda e persistem no sonho de não retornar de mãos vazias. Falam dos filhos que não os reconhecem na volta. Dois garotos de Raimundo choraram e fugiram ao vê-lo.

A União da Indústria da Cana-de-Açúcar estima que pelo menos 54 mil cortadores de cana do Estado (40% da mão-de-obra) sejam migrantes provisórios. Deve haver mais, porque muitos já são inscritos com seus endereços paulistas. Milhares desembarcam em ônibus alugados por eles ou por "gatos", os intermediários da contratação para o corte. Na leseira da folga semanal, os colegas inventariam estragos. Edizon cortou um dedo amolando o facão. Com dor na coluna, Manoel não comparece à lavoura há dois dias. Pedem que não se diga em que cidade moram, mas permitem a gravação da entrevista. Sabem de quem arruma outra família, "local". E de conhecidos que voltaram oito meses depois e deram com a mulher recém-barriguda. As moças paulistas da vizinhança não estão nem aí para os cortadores. Amigos lastimam que, no prostíbulo, a rameira menos cotada cobre o equivalente a um dia e meio de salário do trabalhador.

10-Lida subjetiva
Para entidade que representa produtores, mídia tende a generalizar maus exemplos pontuais

Na sala do décimo andar de um edifício da avenida Brigadeiro Faria Lima, onde o diretor técnico da União da Indústria da Cana-de-Açúcar concede entrevista em São Paulo, as paredes estampam seis fotografias emolduradas. Três mostram caminhões descarregando cana; duas focam outros ângulos de uma usina; e uma descortina o canavial imponente -sem vivalma à vista. Esse mundo o administrador de empresas Antonio de Padua Rodrigues, 56, conhece bem. Aos oito anos, nas férias escolares, ele cortava cana no interior. "Falar que é fácil é mentira", reconhece. Uma tia morreu na mesma lida, picada por uma cobra cascavel. Hoje o sobrinho dela, nascido em família modesta, é um fabuloso banco de dados cerebral, uma das duas vozes mais reconhecidas da entidade que reúne usinas de São Paulo -Estado produtor de 60% da cana do país-, Mato Grosso do Sul, Minas Gerais, Goiás e Espírito Santo.

A outra face mais visível da Unica (pronuncia-se "única", proparoxítona) é a do seu presidente, Marcos Jank. Do que morrem os canavieiros? O corte de cana "não mata", afirma Padua. "Pode-se morrer em qualquer situação, local e hora." Na sua opinião, "o serviço não leva à exaustão. Ninguém é obrigado a cortar cana ininterruptamente". Movimentos como as flexões não causam problemas? Complicações com a coluna "também tem quem trabalha em escritório diante do computador", sustenta o executivo. Mesmo assim, algumas companhias promovem ginástica laboral para os funcionários no campo, como comprovam imagens em publicações. Ao acompanhar turmas de empregados de usinas e fornecedores de cana, os repórteres não testemunharam lavradores se exercitando -a não ser com o facão.

A associação dos usineiros rejeita projeções sobre a vida útil dos cortadores. Nem sabe definir quanto tempo eles permanecem na atividade. O pagamento por produção não incentiva o trabalhador a ultrapassar seus limites? "Não existe esse absurdo de que falam", diz Padua. Ele estima o piso salarial no Estado em uma faixa de R$ 480 a R$ 550. "O trabalho é difícil, penoso, mas não é desumano." Segundo o Instituto de Economia Agrícola, em 2007 a remuneração média pelo corte em São Paulo foi de R$ 720. Nas contas da Unica, por volta de 95% do emprego local no cultivo da cana é formalizado. A Unica contesta igualmente as autuações do Ministério do Trabalho por submissão, em canaviais, de trabalhadores a condição análoga à de escravo. Há excessiva subjetividade na interpretação dos fatos, diz Padua. "Pagar abaixo do salário mínimo é trabalho escravo?", indaga. Propõe revisar a legislação para torná-la mais clara -o Código Penal prevê o crime referente ao trabalho escravo.

"Heróis" de Lula
Um problema do setor sucroalcooleiro, aponta Padua, é a terceirização da produção de cana. Protocolos definem o fim da prática para 2010 em São Paulo. Ela "traz desconforto", diz, porque as usinas "têm que responder [na Justiça] como se fosse trabalho próprio".

Na visão dos usineiros, pesquisas sobre o impacto nocivo do trabalho padecem de limitação severa: o universo pequeno dos indivíduos analisados. É o caso, exemplificam, de tese sobre o nível elevado de substâncias cancerígenas na urina de 41 cortadores durante a safra. Outra crítica se dirige contra organizações civis e o jornalismo. Do ponto de vista da Unica, tomam-se como padrão alguns maus exemplos pontuais de gestão do trabalho. A agremiação e seus 117 associados (eram menos de 90 um ano atrás) mantêm 154 iniciativas de qualificação de mão-de-obra. O segmento de cana, açúcar e álcool deve movimentar R$ 40 bilhões neste ano no Brasil, diz a Unica. O valor corresponde a pouco mais de 1,5% do PIB.

A Secretaria da Agricultura e Abastecimento avaliou que a cana-de-açúcar representou no ano passado 36% do valor da produção agropecuária de SP. O Estado deve fechar o ano com 181 usinas, sete a mais que as já em funcionamento. No centro-sul, incluindo o Sudeste, de 80 a 90 devem começar a operar em três anos. No país, há em torno de 370.

A imagem dos usineiros, que já foram sinônimo de irresponsabilidade social e paradigma de beneficiários de benesses do Estado, vem mudando. Pelo menos para o presidente da República, natural de Pernambuco, área canavieira tradicional. Luiz Inácio Lula da Silva disse em março de 2007: "Os usineiros, que até seis anos atrás eram tidos como se fossem os bandidos do agronegócio neste país, estão virando heróis nacionais e mundiais porque todo mundo está de olho no álcool". Neste ano, Lula minimizou o trabalho degradante na roça: "Vira e mexe, estamos vendo eles [europeus] falarem do trabalho escravo no Brasil, sem lembrar que no desenvolvimento deles, à base do carvão, o trabalho era muito mais penoso que o trabalho na cana-de-açúcar".

Os usineiros são mesmo heróis? Padua cita o jogo duro do mercado mundial, as pressões ambientais e sociais. Sua síntese: os empresários "têm coragem de se expor. O setor não é de aventureiros". Na despedida dos jornalistas, a Unica entregou publicações, algumas em inglês. Nelas cintilam fotos de usinas e de canaviais. Em nenhuma aparece um só trabalhador cortando cana.

11-Manual antiquado
Máquinas já colhem 50% da safra em SP; a cada 1% de área mecanizada, 2.700 pessoas perdem emprego

Moradores de cidades litorâneas praguejam contra o estrago que a maresia faz nos eletrodomésticos. Mas não têm idéia do inferno que é, para a limpeza de casa, a sujeira nos municípios onde se cultiva cana. Limpa-se de manhã, e, à noite, a fuligem das queimadas encobre tudo de novo. A imundície vai acabar, bem como o fogo e os cogumelos de fumaça que lançam gás carbônico e outros poluentes que conspiram para o aquecimento global.

Protocolo ambiental do governo do Estado com as usinas prevê para 2014 o fim das queimadas em áreas passíveis de colheita mecanizada de cana e, para 2017, nas não mecanizáveis (acima de 12 graus de declive). Conforme a Unica, estas representam em torno de 7%. Antonio de Padua Rodrigues, diretor técnico da entidade, afirma que o prazo será antecipado: "2014 será quase o fim". A produtividade dos cortadores é maior em lavouras submetidas antes à queima. O fogo preserva as varas, e o corte manual fica mais simples. E menos perigoso -as queimadas eliminam animais peçonhentos. Na cana crua, a colheitadeira é ainda mais rentável que o homem. A safra deste ano (denominada 2008/2009), de abril a novembro, é a primeira em que pelo menos metade da cana será colhida mecanicamente, anuncia a Unica. O custo da operação da colheita mecanizada é 20% menor. A s máquina substitui cerca de 80 homens. O conjunto de equipamentos que inclui a colheitadeira sai em média por R$ 1,2 milhão, calcula a Unica. Há 1.650 em ação em SP.

Em 2006, o Estado produziu 299 milhões de toneladas de cana e empregou 189,6 mil pessoas no corte manual. No total, contando a colheita mecânica e a indústria de etanol e açúcar, havia 260,4 mil empregados. Em 2015, dizem os usineiros, será zero o emprego em colheita manual. Na cadeia produtiva, haverá 127,8 mil funcionários, mesmo colhendo 457 milhões de toneladas. Os cortadores são 135 mil em São Paulo em 2008, estimam os empresários. No Brasil, ao todo seriam 335 mil.

A Unica adota estatísticas de um estudo que, baseado no IBGE, quantificou em 566 mil os trabalhadores no cultivo da cana no país em 2006. No Nordeste, os cortadores serão mantidos por mais tempo que em SP. No centro-sul, que concentra o setor sucroalcooleiro e inclui o Sudeste, a colheita na safra é 11,57% maior que em 2007 no mesmo período. A produção de açúcar caiu 2,51%, mas a de álcool se expandiu 15,61%. Destina-se ao etanol 60% da cana. O Instituto de Economia Agrícola, da Secretaria de Agricultura e Abastecimento de SP, avalia que, a cada 1% de área mecanizada, desempregam-se 2.700 pessoas.

12-Vestígios arcaicos
Cor da pele, vocabulário e analfabetismo remetem cortadores de cana de São Paulo aos tempos do escravismo

O cenário verdejante que pigmenta as fotografias e colore o horizonte não passa de ilusão -o tom do canavial é outro. A fuligem das queimadas ensombrece as varas de cana-de-açúcar e torna rubro-negra a terra roxa em que outrora se fincavam cafezais. Fragmentos da palha incinerada se amalgamam com o suor dos rostos e desenham máscaras escuras. A cor predominante dos canavieiros, de banho tomado, não muda. São negros -a soma de "pretos" e "pardos"- 63,7% dos trabalhadores no cultivo da cana no país. A proporção supera os 43,4% de negros na PEA (população economicamente ativa) e os 55% na PEA rural.

A característica se repete em São Paulo, onde a presença negra na labuta da cana beira os 49%, o equivalente a 76% mais que na PEA geral do Estado e 54% mais que na sua fração do campo -conforme o Censo de 2000, em dados colecionados pelo economista Marcelo Paixão (UFRJ). Os números frios ganham vida nas plantações. De perto, o canavial é mesmo negro. Como eram os escravos que no Brasil moviam as moendas de cana, como documentou aquarela de Jean-Baptiste Debret em 1822. Ou, em gravura de William Clark de meses depois, os cativos que decepavam com facão a cana em Antígua.

Traços raciais e instrumentos de ofício se mantêm, mas o anacronismo vai além da semelhança de personagens dos retratos atuais com os das pinceladas do século retrasado. É como se estatuto e cultura escravistas teimassem em permanecer, assim como um pé de cana se agarra ao solo e por vezes rende dez safras. "Já conversei com o meu feitor", diz um canavieiro, sobre a autorização para que ele fosse fotografado para a reportagem (pedido negado). "O meu feitor é bom comigo", concede outro. Inexiste conteúdo pejorativo, na boca dos cortadores, ao pronunciar a palavra. No Houaiss, uma acepção de feitor: "Diacronismo: antigo. Diz-se de encarregado dos trabalhadores escravos". É arcaico -ou velhaco-, porém os chefes de turma assim são chamados na roça. Imprimiu-se a expressão "feitor" em ação civil pública e em decisão judicial recentes. Em meio ao canavial, o cortador cuida do seu "eito". "Não paro até acabar o meu eito", conta um. O dicionário define eito como "plantação em que os escravos trabalhavam".

Analfabetismo
Assim como na escravidão africanos e descendentes cantavam, a cantoria hoje desafia o silêncio nas fazendas. Não são tristes os canaviais. Em Serra Azul, um peão embala os golpes de podão com refrão da dupla sertaneja Gino e Geno: "Não é bebendo que você vai esquecer de mim; não é fugindo que o nosso amor vai chegar ao fim". Cortadores de cana apegam-se ao copo, reconhecem muitos deles. A convivência longe da roça confirma. A caninha não era tabu pré-Abolição.

Na década de 1820, Carlos Augusto Taunay recomendava aos senhores, no "Manual do Agricultor Brasileiro", distribuir cachaça aos escravos após o jantar (reedição da Companhia das Letras, 2001, organização do historiador da USP Rafael de Bivar Marquese). Naquele tempo, confinava-se a escravaria no analfabetismo. Na Revolta dos Malês, levante negro na Bahia de 1835, os líderes se distinguiram pelo domínio, raro, da leitura e da escrita. Colhe-se o semeado.

Com base em estatísticas de 2006, os pesquisadores Rodolfo Hoffmann (Unicamp) e Fabíola C.R. de Oliveira (USP) constataram que a escolaridade média dos trabalhadores da cana é de 3,7 anos. Na classificação de educadores, isso os reduz à condição de analfabetos funcionais. No país, a média de estudo é de 6,9 anos. Na indústria do álcool, de 8,6. Acumulam-se contratos em que a impressão digital do funcionário substitui a assinatura. "Não vou mentir, nunca fui à escola", conforma-se uma lavradora. Ela não pode ler os relatórios do Ministério do Trabalho e da Organização Internacional do Trabalho que descrevem cortadores de cana "resgatados" e "libertados".

Em maio, a Justiça Federal do Maranhão condenou um fazendeiro por reduzir seres humanos a condição análoga à de escravo. Ele foi acusado de torturar um funcionário com ferro de marcar gado. Também por trabalho escravo, em 2005 a Justiça Federal de Piracicaba sentenciou à prisão um aliciador de paraibanos para o corte da cana em Nova Odessa (SP). Cabem recursos.

Escravidão
Como interpretou Gilberto Freyre em "Casa Grande & Senzala", a cana "trouxe em conseqüência uma sociedade e um gênero de vida de tendências mais ou menos aristocráticas e escravocratas". No canavial, o "mais ou menos" deu lugar ao paroxismo. No livro clássico de 1933, o sociólogo pernambucano anotou que, nos idos de 1850, anúncios apregoavam preferência por negros com todos os dentes da frente. Nas plantações contemporâneas, multiplicam-se banguelas. No finzinho do século 17, o jesuíta Jorge Benci pregava que os escravos não dessem duro aos domingos, como cita Bivar Marquese no livro "Feitores do Corpo, Missionários da Mente" (Companhia das Letras, 2004).

Hoje o Ministério Público do Trabalho combate o regime de cinco dias por um, adotado em muitos canaviais, no qual poucas folgas caem nos domingos e feriados. A escala impede os oriundos de Minas Gerais e do Nordeste de celebrar datas que lhe são caras em virtude da religião. No passado, batia o aperto, corria-se ao matinho. Segue assim: muitas empresas não instalam banheiros móveis obrigatórios ou, por inibição, os lavradores os evitam. Se antes os filhos da casa grande se iniciavam nos dengos da cama com as moradoras mais formosas da senzala, agora se protocolam denúncias de assédio sexual de feitores contra as cortadoras.

Nas famílias canavieiras, mulheres vivem de outra profissão herdeira do Brasil colonial: são empregadas domésticas. Nessa atividade, elas têm mais tempo pela frente. A socióloga Maria Aparecida Moraes Silva (Unesp) estima que a vida útil dos cortadores seja de 15 a 20 anos. É menos que a dos escravos nas décadas derradeiras do cativeiro no país. É como se os lavradores "estivessem em uma galé", escreveram os professores Francisco Alves (UFSCar) e Marcelo Paixão. Em 13 de maio de 1888, a princesa imperial firmou a lei nº 3.353, com dois artigos: "É declarada extinta desde a data desta lei a escravidão no Brasil. Revogam-se as disposições em contrário".

No interior paulista, evoca-se a história. Em Dois Córregos, um migrante pernambucano sobrevive em uma espécie de cortiço na rua 13 de Maio. Em Guariba, uma habitação degradada de cortadores maranhenses fica na avenida Princesa Isabel. Em Piracicaba, uma blitz oficial parte de outra rua 13 de Maio. Vai para a roça, onde aves de rapina perseguem os roedores que as queimadas expulsaram das tocas. Sem dar pelota ao duelo entre ratos e urubus, homens e mulheres cortam cana.

Publicado em agosto no caderno Mais!.
Na Maison des Arts et Métiers, na capital francesa,
o prêmio foi entregue a Magalhães por Lyse Doucet, apresentadora da BBC.
O Every Human Has Rights Media Awards foi criado para celebrar
os 60 anos da Declaração dos Direitos Humanos.
O prêmio tem o apoio do grupo The Elders,
capitaneado pelo ex-presidente da África do Sul Nelson Mandela.
Houve inscrições de 108 países -30 trabalhos foram premiados pelo júri presidido
pelo jornalista americano Jimmy Briggs.
Do Brasil, também venceram "Terra do Meio"
(de Fátima Baptista, Marcelo Canellas e equipe, da TV Globo)
e "Favela S/A" (de Paulo Motta, Carla Rocha e equipe, de "O Globo").

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