quinta-feira, 10 de março de 2011

Especial: Dossiê Censura. Justiça. Mordaça à Imprensa

Lúcio Flávio Pinto
Jornalista paraense. Publica o Jornal Pessoal (JP)
Adital
O juiz da 4ª vara federal de Belém, Antonio Campelo, tentou impor a mais drástica censura à imprensa já aplicada no Brasil pela via judicial, sendo ele o autor da iniciativa. Três dias depois de ameaçar com prisão, processo criminal e multa de R$ 200 mil, recuou. O caso é tão grave que a história não terminou. Ela é tema desta edição especial do jornal.

Para quem já foi processado 33 vezes, ter um oficial de justiça à sua porta deixou de ser novidade, conquanto continue a ser um constrangimento social (presume-se que o intimado é sempre culpado). Mas no dia 23, ao abrir a porta para receber mais um oficial de justiça, desta vez havia uma novidade: ele era o primeiro emissário da justiça federal que me intimava de uma decisão. Também pela primeira vez, eu não era parte no feito nem estava sendo convocado para depor.

Simplesmente o juiz da 4ª Vara Federal Criminal do Pará, Antonio Carlos Almeida Campelo, estava me comunicando que decretara "o sigilo do procedimento” numa ação que tramitava sob sua responsabilidade. Ele determinara ao secretário da vara para me oficiar "com a informação de que o processo corre sob sigilo e qualquer notícia publicada a esse respeito ensejará a prisão em flagrante, responsabilidade criminal por quebra de sigilo de processo e multa que estipulo, desde já, em R$ 200,00 (duzentos mil reais)”.

Embora datado da véspera, o despacho não demorara nem 24 horas para me ser entregue para ciência e acatamento. Primeiro ponto a assinalar: a tramitação célere da peça, o que não chega a constituir uma característica da justiça – em qualquer das suas esferas jurisdicionais – no Brasil. O magistrado cobrou pressa na providência. Em algumas horas ela se cumpriu. Quem consegue tal feito na justiça brasileira?

Eu podia adotar o procedimento dos meus perseguidores, sobretudo aquele que se tornou a marca registrada dos irmãos Romulo Júnior e Ronaldo Maiorana: fugir ou pelo menos protelar o recebimento do mandado judicial. Na ação que motivou o impulso punitivo do juiz Campelo, Romulo Jr. já faltou a três audiências seguidas e Ronaldo a duas. Isso, a despeito de a justiça federal ser muito temida por seu rigor na aplicação da lei e no respeito às suas formalidades.

Na justiça estadual, raramente os oficiais de justiça conseguem sequer transpor os umbrais da sede de O Liberal, onde os dois dão expediente. Intimá-los está quase sempre fora do alcance desses serventuários. Mesmo que, afinal, arranquem uma ciência em mandado, os dirigentes das Organizações Romulo Maiorana não aparecem nas audiências – e costumam nem se justificar. Não compareceram nem mesmo naquelas em que são autores, o que levou a juíza da 7ª vara penal à indignação e à condenação dos litigantes de má fé, que abusam e desprezam o poder judiciário.

Eu nunca faltei a qualquer audiência, exceto num caso, num dos primeiros processos que Rosângela Maiorana Kzan propôs contra mim, iniciando, em 1992, uma perseguição que se contabiliza em 19 processos, 14 dos quais da responsabilidade de Romulo Jr. e Ronaldo Maiorana, todos estes propostos depois que o mais jovem dos sete filhos de Romulo Maiorana me agrediu, em janeiro de 2005.

A cronologia das ações e seu conteúdo, algumas vezes beirando o deboche (sou acusado de causar dano moral e praticar injúria, calúnia e difamação por ter dito que fui espancado por Ronaldo, quando "apenas” fui "agredido”, o que, para ele, constitui diferença essencial), revela que os donos do maior conglomerado de comunicação do norte do país consideram a justiça como a extensão do seu poder. E vários membros do poder judiciário têm agido de maneira a confirmar essa presunção odiosa.

Ao saber do primeiro dos processos ajuizados por Rosângela Maiorana Kzan, nem esperei pelo oficial de justiça: me apresentei espontaneamente em cartório e me dei por ciente, tratando logo da minha defesa, na certeza de então, de que o julgamento seria imparcial e objetivo, visando a verdade dos fatos.

Esse tem sido meu comportamento desde então, embora, depois de quase 19 anos a padecer os efeitos dessa atitude legalista e respeitosa, meu apreço pelo poder judiciário já não seja o mesmo. Não pela justiça como instituição, que continua a ser instância vital, mas por vários dos seus indignos integrantes, acobertados por um espírito de corpo que ainda resiste ao controle social.

Ao receber o papel das mãos do oficial de justiça, ainda na manhã seguinte ao despacho vespertino do juiz Campelo da véspera, demorei um pouco até me dar conta do que significava aquele documento. Uma característica, porém, se impunha de imediato: o juiz estava dominado pela fúria punitiva, da qual não conseguem se libertar alguns magistrados para examinar com bom senso e isenção as questões submetidas ao seu julgamento.

Um pequeno erro já dava uma medida do ânimo da autoridade. O juiz escreveu o valor da multa em R$ 200,00 e a fixou, por extenso, em duzentos mil reais. O diretor de secretaria da 4ª vara, Gilson Pereira Costa responsável pela expedição do ofício, ou não percebeu o erro ou preferiu mantê-lo para não alterar a integridade do texto original.

O próprio valor da multa refletia a disposição intimidatória do despacho. Eu jamais teria condição de suportá-la, a não ser que me desfizesse do meu patrimônio material, o mesmo desde 1988, ano em que teve a sua última variação positiva (não por coincidência, também o ano do meu desligamento da grande imprensa). O peso da multa seria para me fazer acatar sem reservas a determinação judicial. Para me curvar de pronto a ela.

Ainda mais porque, em caso de insubmissão, eu poderia ser preso em flagrante, o que autorizaria a Polícia Federal a até me algemar, fornecendo aos Maioranas uma cena que eles anseiam por registrar e estampar nas suas páginas, como fizeram com a sentença bem utilitária do juiz da 4ª vara cível de Belém. Processado 19 vezes por três dos oito integrantes da família, continuo como réu primário em função da batalha que tenho travado nos tribunais em defesa da minha dignidade, decência, honradez e lisura. Com prejuízo enorme ao meu trabalho de jornalista e à minha vida privada.

O juiz não hesitava em me ameaçar com os instrumentos de maior rigor à sua disposição para me compelir a acatar sua ordem: multa de 200 mil reais, prisão em flagrante e processo criminal por quebra de sigilo processual. Toda essa fúria tinha que origem? Alguma das partes requerera a providência? Foram os quatro réus, os Maiorana e seus diretores, João Pojucan de Moraes e Fernando Nascimento, que pediram a medida? Ou fora o Ministério Público Federal, autor da denúncia?

Não: a iniciativa era pessoal do juiz Antonio Carlos Almeida Campelo. Ele agira de ofício. Não eram as partes que se sentiam ofendidas ou desrespeitadas pela matéria "Ronaldo confessa. ‘Rominho’ viaja”, publicada na edição passada deste jornal, da 1ª quinzena de fevereiro. Ou pelo menos não eram eles formalmente, assumidamente. Era o próprio juiz agindo como se fora parte, sem ser provocado, de moto próprio.

Ele podia argumentar que, mesmo sem esse chamamento, sua intervenção era legal, legítima e correta. Ao escrever sobre o processo a que respondem os irmãos Maiorana e seus diretores, por crime contra o sistema financeiro nacional, eu estava quebrando o sigilo de justiça, que o magistrado me informou no ofício ter decretado às folhas 1961 dos autos.

Sua excelência, porém, não especificou a data da sua decisão nem a razão de havê-la adotado. De resto, não fez a menor referência legal em todo o seu curto e enfático despacho, deixando assim de cumprir uma das regras básicas de qualquer manifestação nos autos. Limitou-se a seguir aquele bordão popular: quero, mando e posso. Quem não pode que se submeta.

Só no segundo ofício, de três dias depois, sua excelência haveria de se dignar a informar que decretou o sigilo exatamente no dia em que Ronaldo Maiorana, Pojucan e Fernando depuseram, 2 de fevereiro (e Rominho fez forfait, permanecendo em férias em sua confortável residência em Miami, nos Estados Unidos, recentemente adquirida). Antes ou depois da audiência? Não se sabe. O que os três disseram que exigisse o segredo?

Provavelmente, nada de importante, já que o doutor Campelo, no seu segundo despacho, revogou o sigilo quanto ao depoimento dos réus, mantendo-o apenas "quanto aos documentos bancários e fiscais constantes dos autos”. Por isso, a revogação foi parcial e não plena, como devia ter sido.

Ora, na minha matéria o único fato novo em relação a muitas outras reportagens já publicadas neste jornal e em outros veículos de comunicação dizia respeito ao que houve durante a audiência. Neste particular, só o Jornal Pessoal divulgou o que aconteceu na sessão. Não por outro motivo, foi o único destinatário da inusitada mensagem do juiz do feito, ao contrário do que ocorreria com o segundo despacho, que, segundo o magistrado, foi encaminhado aos demais órgãos da imprensa local.

O que aconteceu de destacável na audiência? Ronaldo Maiorana se tornou réu confesso do crime de que foi acusado pelo Ministério Público Federal. Admitiu que ele e seu irmão retiravam o dinheiro que depositavam no Banco da Amazônia assim que os recursos dos incentivos fiscais da Sudam eram creditados. Fizeram isso três vezes. Graças à fraude, os 3,3 milhões de reais que aplicaram no projeto de sua fábrica de sucos eram todos oriundos da Sudam, sem a contrapartida do capital próprio, que devia equivaler a metade da colaboração financeira do poder público.

O dirigente do grupo Liberal, mesmo sendo advogado e tendo presidido por muitos anos a Comissão em Defesa à Liberdade de Imprensa da OAB do Pará, alegou ignorar que seu procedimento constituísse crime. Embora ninguém possa alegar desconhecimento da lei, ele logo providenciou para devolver o dinheiro fraudulentamente recebido e passou a utilizar seus próprios recursos no empreendimento.

Sua defesa alegou, equivocadamente, que esse arrependimento seria eficaz para anular o delito. Mas já sabia que o arrependimento eficaz não se aplica a um crime que se consumou. Esse foi um dos motivos que levaram o Tribunal Regional Federal da 1ª Região, em Brasília, a negar, no ano passado, um habeas corpus impetrado pelos Maioranas para trancar a ação penal conduzida em Belém pelo juiz Antonio Campelo. A alegação era falaciosa e já não mais de boa fé.

Outro fato marcante na audiência foi que ela nada acrescentou às provas produzidas pela Receita Federal e pelo MPF, que acompanharam a denúncia, recebida pelo juiz em agosto de 2008, depois de oito anos de inquérito meticuloso. Talvez se as perguntas fossem mais diretas e incisivas, algum dado inédito pudesse ter surgido. Mas o clima da sessão foi cordial, talvez até demais, como disse a matéria. Um tom contrastante com o que se deduziu da designação da audiência, em setembro do ano passado, quando o juiz afirmou que a instrução do processo "vem sendo postergada por razões diversas. A pedido dos réus”.

Qualquer leigo, mesmo o mais ingênuo, não tem dúvida sobre a estratégia adotada pela defesa dos Maioranas: é justamente postergar ao máximo o andamento do processo para que os réus, um dos quais já confesso, ao invés de cumprirem a pena pelos seus crimes, sejam beneficiados pela prescrição, o fim do direito estatal à punição dos criminosos (o prefeito de Belém, Duciomar Costa, por exemplo, foi condenado pela justiça federal por falsificar diploma de médico, mas não cumpriu a pena por causa da prescrição;continuou réu primário).

Se já ficou nítido ao juiz que há esse procedimento, por que aceitar a terceira falta seguida do réu Romulo Maiorana Júnior? No seu segundo despacho, do dia 25 de fevereiro, o magistrado decidiu prosseguir a audiência anterior, marcando a nova sessão para três meses depois, ainda que sob o cuidado de mandar intimar o réu faltoso e desidioso "pessoalmente por mandado com urgência”. Por que não sob coação legal? Por que não sob vara? Se o réu fosse um cidadão sem qualquer poder, um homem comum, haveria essa tolerância?

Ao invés de impor os rigores da lei aos que a fraudaram, o juiz voltou suas armas contra o jornalista, visto nestas circunstâncias como o mensageiro das más notícias, invariavelmente sujeito aos humores do destinatário da mensagem. Se o magistrado não gostou do teor da matéria da edição anterior deste jornal, devia ter feito como fez duas semanas antes, em relação ao Diário do Pará.

Na sua edição do dia 3, o jornal da família Barbalho acusou o juiz Campelo de ter antecipado de um dia a audiência para proteger os Maioranas da grande cobertura que certamente o seu rival e inimigo faria, com fotos que pudessem se equivaler à famosa cena de Jader Barbalho preso por algemas pela Polícia Federal, já tantas vezes republicada por O Libera, inclusive neste dia 28.

No dia seguinte o juiz mandou não uma intimação nem um despacho, mas uma carta de esclarecimentos ao jornal. Negou que tivesse antecipado a sessão, mostrando que desde 23 de setembro a data marcada era a de 1º de fevereiro. Foi o jornal que errou. O magistrado garantiu que não concederia privilégios a ninguém, cumprindo a sublime missão da justiça de ser imparcial na apreciação dos contenciosos e litígios entre os homens.

No entanto, sua excelência não acrescentou ao seu informe que já decretara o sigilo de justiça, conforme iria revelar só no último dia 25, já no seu segundo despacho. Se fizesse a ressalva, toda a imprensa já estaria avisada de que publicar alguma matéria sobre o conteúdo dos autos era crime de quebra do sigilo de justiça. Foi uma omissão deliberada, maliciosa, ou apenas esquecimento?

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