terça-feira, 15 de março de 2011

O Antropolixo na era do antropoceno

José Lisboa Moreira de Oliveira
Filósofo. Doutor em teologia. Ex-assessor do Setor Vocações e Ministérios/CNBB. Ex-Presidente do Inst. de Past. Vocacional. É gestor e professor do Centro de Reflexão sobre Ética e Antropologia da Religião (CREAR) da Universidade Católica de Brasília
Adital
Quem visita o Campus I da Universidade Católica de Brasília (UCB), situado na cidade de Taguatinga (DF), poderá, se quiser, chegar até o Bloco L e conhecer a Pró-Reitoria de Extensão. Aqui nesse espaço estão sediados mais de 30 projetos de Extensão da UCB. Entre os trabalhos de Extensão temos o Projeto de Educação Ambiental (PEA), cujo objetivo é contribuir para que toda a comunidade universitária desperte cada vez mais para a questão ambiental e participe ativamente da construção de um desenvolvimento solidário e sustentável.



Ao chegar em frente à sala do PEA, o visitante é surpreendido por um boneco em forma humana, tamanho natural, totalmente construído com "lixo reciclável”, obra dos estudantes do Curso de Engenharia Ambiental. O boneco foi batizado com o nome de Antropolixo, ou seja, homem de lixo ou homem-lixo. O objetivo do boneco é despertar os que visitam a sala do PEA, ou passam em frente a ela, para a quantidade de lixo que é produzido pelo ser humano. Antropolixo é um convite a refletir sobre o modelo de civilização baseada no consumo desenfreado que gera cada vez mais uma quantidade maior de lixo. Propõe ao visitante um consumo responsável e sugere maior cuidado para não permitir que o lixo, inclusive aquele reciclável, termine sendo lançado no meio ambiente provocando todos aqueles danos que já conhecemos.



O senhor Antropolixo, com o seu jeito desengonçado e sério, termina sugerindo aos visitantes maior responsabilidade com a vida no planeta Terra, a nossa única morada. Não há quem não fique pensativo na presença do senhor Antropolixo. Ele provoca a reflexão e denuncia a irresponsabilidade e a falta de cuidado com a nossa moradia comum.



Essa referência ao senhor Antropolixo serviu-me de motivação para iniciar essa reflexão sobre o tema da Campanha da Fraternidade da Igreja Católica programada para a quaresma deste ano, tendo como tema "Fraternidade e a Vida no Planeta” e como lema a frase bíblica "A criação geme em dores de parto” (Rm 8,22). Esta campanha assume dois aspectos interessantes. Por um lado motiva a esperança de que ainda é possível salvar a Terra de uma tragédia. Mas, por outro, nos leva à certeza de que, se não mudarmos nosso atual estilo de consumo e desenvolvimento, em poucos anos milhares de espécies, inclusive a humana, estarão completamente extintas em nosso planeta. Tudo está em nossas mãos. É o que repetem sem cessar os entendidos no assunto e os que se dedicam com paixão a essa causa. "Depende de nós impedir que as atuais crises virem tragédias”, afirma Leonardo Boff. É claro que sempre há esperança: "Não temos medo da noite porque cremos nas estrelas e esperamos a aurora que já se anuncia”, completa Boff. Mas, usando outra metáfora muito cara a este autor, o avião já alcançou a velocidade de decolagem e não há mais como detê-lo.



De fato, mudanças estão em curso e o nosso planeta substancialmente alterado. Tais mudanças são fruto da ação humana e não há como negar isso, embora alguns ainda tentem minimizar essa responsabilidade. Os dados do organismo das Nações Unidas para estudo das mudanças climáticas, conhecido como IPCC, não deixam dúvidas. Essa "crônica de uma tragédia anunciada” poderá ser escrita de outra forma se mudarmos radicalmente e imediatamente o nosso modo de produzir, de consumir e de nos relacionarmos com a Terra. Porém, os próprios dados estão mostrando que existe uma grande resistência por parte daqueles que são beneficiados no momento por esse modelo devastador de progresso.



As pesquisas indicam que, seguindo os atuais padrões de produção e de consumo, a humanidade já consome um quarto a mais dos bens que o planeta pode produzir. Por isso alguns chegam a afirmar que já seriam necessárias duas Terras para produzir o que hoje gastamos e consumimos. E o pior de tudo é que este modelo de produção e de consumo continua gerando enormes desigualdades, de modo que ainda é possível afirmar que cerca de 2/3 da humanidade não tem acesso direto aos bens produzidos por este modelo suicida de desenvolvimento.



Paul Crutzen, ganhador do premio Nobel de Química em 2000, sustenta a hipótese de que entramos em uma nova era geológica que ele está chamando de período antropoceno. Diferentemente do passado, as atuais mudanças climáticas não são o resultado de um fenômeno natural, mas da ação direta e indireta do ser humano. Isso nos permite fazer um diagnóstico cruel: cerca de 50% da superfície do nosso planeta já se encontra modificada em virtude das atividades da humanidade. Mesmo assim as classes mais abastadas permanecem insensíveis e dispostas a consumir cada vez mais, arrasando completamente o planeta. Para reverter essa situação seria indispensável uma diminuição do consumo. Mas não vemos sinais disso. A proposta de modificar o Código Florestal Brasileiro, atualmente em tramitação no Congresso Nacional, é só um dos inúmeros exemplos que poderíamos citar. E o mais triste de tudo isso é que partidos historicamente comprometidos com as causas dos empobrecidos estão aderindo a essa proposta.



Podemos, então, afirmar que, se não houver uma reação e uma mobilização por parte das pessoas, as condições para a vida em nosso planeta irão se deteriorando cada vez mais e em pouco tempo estaremos seriamente ameaçados e caminhando para a mais completa extinção.



E nessa história toda onde ficam e como ficam os cristãos e as cristãs? Hoje não há mais como negar a responsabilidade do judaísmo e do cristianismo nesse processo de degradação da vida na Terra. Infelizmente falsificamos as primeiras páginas da Bíblia. Confundimos o convite do Criador a cuidar do Jardim do Éden com o exercício agressivo e devastador do senhorio e do domínio. As "civilizações” cristãs de matriz européia devastaram o mundo arrancando dele todos os seus recursos. Em nosso país, por exemplo, a devastação começou com o pau-brasil, passou pelo extermínio de milhões de indígenas, pelo saque de nossos minérios e continua ainda hoje através da ação de multinacionais que implantaram aqui seus projetos ambiciosos e poluidores de geração de bens de consumo. De vez em quando se sabe através do noticiário da mídia que eles ainda pretendem continuar nos devastando, enviando para cá o lixo que não sabem onde colocá-lo.



As comunidades cristãs precisam resgatar essa dívida com a humanidade. Precisam se engajar seriamente nos diversos programas voltados para o cuidado do planeta e para a busca do desenvolvimento sustentável. Não podem continuar indiferentes, como se elas não tivessem a responsabilidade pelo que está acontecendo no mundo. Não basta que se realize nas igrejas um trabalho de conscientização. É indispensável que as suas lideranças estimulem e animem as pessoas a se tornarem ecologicamente responsáveis. Elas devem com toda clareza indicar formas concretas de participação nesse processo de reversão da situação em que nos encontramos.



Além disso, e, talvez, mais do que isso precisam recuperar aquele espírito de sobriedade e de simplicidade do cristianismo primitivo. Vários cientistas falam hoje da necessária e urgente ascese ecológica, entendendo com esse termo um estilo de vida que se contente com o essencial para viver dignamente. Eles acreditam que sem retorno a uma vida simples, sem consumo desenfreado, não há como salvar o planeta. O cristianismo pode contribuir com esse processo, uma vez que na sua origem está essa "ascese ecológica”. De fato, dizem os textos bíblicos, os primeiros cristãos tomavam "alimento com alegria e simplicidade de coração” (At 2,46). O próprio Jesus convida os discípulos a olhar para os pássaros e para as plantas e a aprender com a natureza um estilo de vida que se contente com o indispensável (Mt 6,25-34).



As dioceses, as paróquias e todas as outras formas de comunidade cristã não podem cruzar os braços, deixando a outras instituições a responsabilidade pela vida no planeta. Precisam imediatamente partir para a ação, constituindo-se em espaços ecológicos que sirvam de referenciais para quem quiser se engajar em projetos em favor da sustentabilidade do planeta. No Brasil a Campanha da Fraternidade 2011 se constitui num momento único e propício para isso.



O que se espera é que os cristãos, especialmente os católicos, não percam essa oportunidade. Se não forem capazes de um compromisso sério poderão passar à história como responsáveis diretos pela destruição da nossa casa comum, a Mãe-Terra. E que tal construir um "Antropolixo” e colocá-lo na entrada de cada igreja, pelo menos enquanto durar a Campanha da Fraternidade? Penso que falará às pessoas muito mais do que certas pregações e discursos.



[Autor de 13 livros e dezenas de artigos sobre o tema da vocação e da animação vocacional. Foi assessor do Setor Vocações e Ministérios da CNBB (1999-2003) e Presidente do Instituto de Pastoral Vocacional (2002-2006). Atualmente é gestor do Centro de Reflexão sobre Ética e Antropologia da Religião (CREAR) da Universidade Católica de Brasília, onde também é professor de Antropologia da Religião e Ética. Contato com o autor pelo e-mail: jlisboa56@gmail.com].

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